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18 de janeiro de 2002 |
Texto da Oxfam para discussão Propriedade intelectual e «brecha de conhecimento» Rets. Brasil, janeiro de 2002.
Este texto discute os impactos das regras de propriedade intelectual nos países em desenvolvimento, e possíveis estratégias de campanha para alterá-las. Estas regras são muito importantes porque afetam o acesso das pessoas a medicamentos, sementes e materiais educativos, e também a habilidade de países pobres de se desenvolverem e participarem efetivamente de mercados globais. A Oxfam espera que este texto seja útil a outras organizações que trabalham com estas questões, e que provoque retroalimentação para seu próprio trabalho sobre as regras de patente da OMC.
Seção 1 - O problema Uma da lutas mais intensas da campanha para mudar o processo atual de globalização diz respeito ao controle do conhecimento. O conhecimento será monopolizado por interesses corporativos em prol do lucro privado e moldado pelo mercado de consumidores ricos, ou será mantido dentro do domínio público e usado para combater a pobreza, a fome e as doenças? Em uma época em que milhões de pessoas são privadas de seus direitos básicos à saúde, alimentação e educação e em que a desigualdade vem crescendo, esta questão não poderia ser mais oportuna. O Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio, introduzido em 1995 após um intenso lobby corporativo, está no centro desta controvérsia. Ele é o principal tratado internacional determinando os direitos sobre propriedade intelectual (PI), que inclui patentes, direitos autorais e marcas comerciais. O TRIPS obriga todos os membros da OMC a conceder aos detentores de patentes - que são na sua maioria grandes corporações do hemisfério norte - monopólios temporários por suas "invenções". Este sistema é visto como capaz de estimular a inovação, uma vez que permite que os detentores de patentes evitem a competição, aumentem os preços e, assim, recuperem os custos de seu investimento. Os acordos de comércio bilateral e os acordos regionais, como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), também estão sendo usados para elevar os padrões nacionais de proteção da PI para níveis ainda maiores do que aqueles requeridos pelo TRIPS. Todas estas regras afetarão a vida de bilhões de pessoas e, no entanto, até recentemente, elas têm sido introduzidas sem um mínimo de debate público. 2 - Seus impactos A proteção da PI pode ser um incentivo útil, juntamente com outros incentivos, para estimular o investimento e inovação. Infelizmente, o TRIPS e outros acordos comerciais requerem que todos os países fixem altos padrões de proteção, independentemente de seu nível de desenvolvimento ou da potencial contribuição do setor para a realização de direitos humanos. Essa abordagem do tipo "tamanho único que serve a todos" está prejudicando tanto o bem-estar social como as inovações. A balança está pendendo para os interesses privados dos detentores corporativos de PI e tem se afastado dos usuários do conhecimento. Muitos dos efeitos prejudiciais das regras internacionais de PI serão sentidos, principalmente, pelos países pobres. A Oxfam acredita que o novo regime irá: Excluir as pessoas pobres do acesso a "mercadorias do conhecimento" vitais, tais como medicamentos, sementes e materiais educativos. O TRIPS resultará em preços mais altos para bens intensivos em conhecimento, excluindo ainda mais as pessoas pobres do acesso a medicamentos, sementes, programas de computador e materiais educativos. O alto preço de medicamentos para HIV/AIDS ilustrou de forma contundente o efeito injusto das patentes. Preços mais altos também limitam a habilidade dos governos de países em desenvolvimento de assegurar às pessoas os direitos humanos básicos de alimentação, saúde e desenvolvimento. Aprofundar a divisão tecnológica. Já existe uma ampla brecha tecnológica entre os países ricos e pobres. Embora os países em desenvolvimento sejam ricos em conhecimento tradicional, eles são importadores dos bens de alta tecnologia e know-how protegidos pelo TRIPS. Os países industrializados, por sua vez, respondem por 90 por cento dos gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) global, apresentam um percentual ainda maior de patentes e são os principais exportadores de PI. O TRIPS irá aprofundar esta divisão ao aumentar o custo dos bens intensivos em conhecimento importados por países em desenvolvimento. As taxas dos direitos autorais e de licença pagas pelos países em desenvolvimento aos detentores de patentes nos países industrializados têm subido rapidamente desde meados da década de 80. Em 1998, os EUA tiveram um superávit líquido de mais de US$23 bilhões com as exportações de PI. Distorcer ainda mais a P&D em direção ao mercado de consumidores ricos ao invés das necessidades básicas das pessoas pobres. Existe uma grande "falha de mercado" em P&D nas áreas de medicamentos e agricultura. A maior parte da P&D global visa o mercado de consumidores ricos ao invés de priorizar as necessidades básicas das pessoas pobres. Menos de 10 por cento dos gastos globais em pesquisa na área de saúde são dirigidos a 90 por cento dos problemas globais de doenças. Da mesma forma, grande parte da pesquisa agrícola visa melhorar a aparência e o sabor de produtos para consumidores de mercados ricos ao invés de apoiar a produção sustentável de produtos agrícolas básicos, como o sorgo e a mandioca, dos quais dependem milhões de pequenos agricultores. As regras globais sobre PI irão agravar este problema ao concentrar ainda mais a P&D em áreas lucrativas, tais como a cura da obesidade ou impotência. Mesmo com a forte proteção de PI em vigor, mulheres e homens vivendo na pobreza em países em desenvolvimento simplesmente não têm poder de compra suficiente para influenciar significativamente na direção da P&D. Apenas fundos públicos em larga escala e parcerias públicas/privadas irão garantir que a P&D seja direcionada para atender suas necessidades básicas. Restringir a habilidade dos países pobres de inovar e participar efetivamente em mercados globais. Os defensores do TRIPS dizem que as perdas em termos de bem-estar social de curto prazo causadas por preços mais altos serão compensadas por benefícios de mais longo prazo, através de uma maior transferência de inovação e tecnologia aos países pobres. Mas a falta de capacidade tecnológica significa que companhias estrangeiras irão captar a maior parte dos benefícios de uma maior proteção da PI. Além disto, ao restringir o escopo dos países em desenvolvimento de imitar e adaptar novas tecnologias, o TRIPS irá inibir inovações futuras, o desenvolvimento e a habilidade dos países de competir efetivamente nos mercados globais. Existe pouca evidência de que níveis mais altos de proteção de PI nos países em desenvolvimento irão gerar maiores investimentos diretos estrangeiros ou licenças de corporações transnacionais, mesmo na área farmacêutica e química. Incentivar a pirataria de recursos biológicos e do conhecimento tradicional dos agricultores e indígenas de países em desenvolvimento. O TRIPS foi criado para evitar a chamada pirataria de invenções e produtos de países ricos cometida por países em desenvolvimento. No entanto, se mantém em silêncio sobre a apropriação sistemática de conhecimento biológico e formas de conhecimento tradicional de países em desenvolvimento feita por grandes companhias do hemisfério norte. Seção 2 - Estratégias de Campanha Esta seção baseia-se na recente experiência da Oxfam em relação ao trabalho de campanha sobre a questão de patentes e acesso a medicamentos (campanha Baixem os Preços), e levanta algumas questões sobre o futuro foco das estratégias de campanha da sociedade civil. 1 - Qual deveria ser o foco da campanha sobre o TRIPS? Uma questão fundamental seria definir se é mais efetivo fazer uma campanha em prol de uma reforma ampla/abolição do TRIPS, ou concentrar na busca por mudanças em áreas específicas, tais como o patenteamento de medicamentos, o patenteamento de recursos genéticos de plantas ou o patenteamento de formas de vida. A Oxfam tende a focalizar sua campanha popular no que ela chama de "pontos de entrada". Um ponto de entrada oferece uma ilustração concreta de um problema causado por políticas globais de uma forma que pode ser facilmente entendida pelo público em geral. A idéia é a de que, quando as pessoas entenderem o impacto humano de políticas específicas, elas serão incentivadas a promover campanhas por mudanças de políticas mais amplas. Assim, por exemplo, o problema de patentes e do acesso a medicamentos é um ponto de entrada para a reforma do TRIPS e outros acordos da OMC. O fato dos países pobres não poderem pagar por medicamentos caros e patenteados contra o vírus HIV/AIDS ofereceu uma ilustração particularmente dramática do problema. Antes do lançamento da campanha Baixem os Preços, uma pesquisa da Oxfam realizada no Reino Unido mostrou que poucas pessoas sabiam o que era uma patente e, quando sabiam, tendiam a pensar que a patente era algo bom. Um número ainda menor de pessoas sabia o que era a OMC ou o Acordo TRIPS. Por outro lado, muito mais pessoas estavam preocupadas com a questão da saúde nos países pobres. Focalizar as campanhas populares sobre problemas específicos e tangíveis não faz com que a Oxfam deixe de levantar preocupações mais amplas em suas publicações e trabalho de lobby. A Oxfam também acredita que é importante formar alianças inter-setoriais com diferentes grupos fazendo campanhas sobre o TRIPS - seja em relação a sementes, medicamentos, genes ou programas de computador. Isto permite que os grupos coordenem a campanha sem que se perca a especificidade de cada uma. A Rede de Ação sobre TRIPS (TAN) formada no ano passado é um bom exemplo desta abordagem. A Rede tem coordenado dias internacionais de ação sobre o TRIPS e elaborou uma declaração reivindicando uma ampla reforma do Acordo. 2 - Uma mudança incremental ou fundamental? Várias estratégias de campanhas sobre as regras de PI são possíveis e podem ser complementares. No caso do TRIPS, as demandas vão desde a abolição completa do acordo até a sua reinterpretação (como na declaração de Doha sobre TRIPS e saúde pública). A Oxfam busca uma estratégia de duplo caminho, concentrando-se em mudanças concretas que são alcançáveis no curto prazo, enquanto também pressiona por uma mudança mais fundamental no longo prazo. Nossa experiência é a de que os ganhos pequenos podem fortalecer ao invés de prejudicar o ímpeto por uma mudança mais fundamental. No caso da campanha Baixem os Preços, a política focalizada é a de reformar o Acordo TRIPS em favor da saúde pública. Os objetivos de curto prazo são fortalecer as medidas de salvaguardas sobre saúde pública existentes no TRIPS e fazer com que os países ricos e as companhias transnacionais parem de perseguir os países pobres através de suas leis de patente. O objetivo de mais longo prazo é uma revisão substantiva do TRIPS visando introduzir períodos de transição mais longos para os países em desenvolvimento cumprirem com o Acordo, e permitir que os países em desenvolvimento tenham uma flexibilidade muito maior para determinar a duração e a abrangência do patenteamento farmacêutico, incluindo a opção de isentar todos os medicamentos. Embora alguns grupos e governos temam que a reabertura do TRIPS possa resultar em algo pior, a Oxfam acredita que o aumento da pressão pública irá evitar que isso aconteça. Alguns grupos têm expressado a preocupação de que a declaração de Doha sobre TRIPS e saúde pública poderia prejudicar a opção de uma reforma mais radical ao legitimar o Acordo. A Oxfam, porém, acredita que a declaração, embora limitada, resultará em alguns ganhos concretos para a saúde, criará um precedente para a reinterpretação do TRIPS em favor de outros direitos fundamentais e fortalecerá a pressão do público e dos países em desenvolvimento para futuras reformas adicionais do Acordo. 3 - O TRIPS fora da OMC? A Oxfam não escolheu até agora a retirada do TRIPS da OMC como foco de sua campanha popular devido a três motivos. Primeiramente, embora exista uma forte racionalidade para tal proposta, em grande parte porque o TRIPS é inerentemente protecionista, parece improvável que estes argumentos mobilizem a opinião pública. Em segundo lugar, é improvável que essa idéia receba apoio efetivo dos países em desenvolvimento que são membros da OMC - uma condição necessária para um sucesso na OMC. Finalmente, uma campanha pública com tal posição também iria requerer que uma alternativa coerente fosse levada adiante. Deixar o controle dos tratados de PI à Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO), por exemplo, não seria necessariamente desejável dada a sua posição estreita pró-PI. A Oxfam, contudo, irá argumentar em seu trabalho de lobby que a revisão futura do TRIPS deve avaliar seriamente esta questão, e dará as boas vindas a outros grupos que fazem campanha defendendo esta posição, porque isto oferece uma forte indicação da preocupação das ONGs e aumenta a pressão por mudança. 4 - Campanhas Globais, regionais ou nacionais? As campanhas não deveriam parar ou começar no TRIPS. Grandes campanhas sobre regras de PI em níveis regional e nacional são também vitais. Muitos países em desenvolvimento têm sido ou serão pressionados a introduzir leis nacionais que garantam níveis de proteção da PI que vão além do TRIPS. Cada vez mais, os países estão assinando acordos econômicos bilaterais ou regionais, que determinam níveis de proteção de PI que são, no mínimo, comparáveis ao TRIPS; se não, ainda maiores. Isto significa que mesmo que o TRIPS fosse reformado no futuro, os países ainda teriam regras de PI que comprometem o desenvolvimento. A campanha em nível nacional pode ser construída sob uma ampla base social, incluindo pequenas e médias empresas que são prejudicadas pelo alto custo da tecnologia. Os Estados Unidos têm sido particularmente agressivos na busca por regras de proteção da PI que vão alem das estipuladas no TRIPS (o chamado 'TRIPS plus'). Para isso, têm usado de pressão política e econômica direta e tratados comerciais formais como, por exemplo, o acordo EUA-Jordânia e a ALCA. Se os países em desenvolvimento ganhassem mais concessões em relação ao TRIPS, poder-se-ia prever a conversão do atual Conselho TRIPS na OMC em um organismo cujo objetivo seria fiscalizar um teto para os padrões de PI ao invés de um mínimo - um papel inteiramente consistente com a filosofia pró-competição da organização. No caso dos medicamentos, agora que temos mais clareza sobre aquilo que o TRIPS permite e não permite, é importante que os governos utilizem a flexibilidade existente para implementar uma legislação nacional em apoio ao acesso a medicamentos. Grandes campanhas nacionais na África do Sul, Brasil e Tailândia têm mostrado o que é possível neste nível. 5 - Setor Corporativo É essencial que as campanhas para mudança das regras globais de PI estejam direcionadas não somente para os governos, mas também para as companhias do Norte, as quais têm sido as principais responsáveis pelas atuais políticas de PI. As companhias precisam ser persuadidas a mudarem as políticas de preços e patentes, além de suas posições de lobby. No caso de patentes e acesso a medicamentos, as campanhas públicas e a ampla cobertura da mídia criaram riscos para a reputação das companhias farmacêuticas que não puderam ser ignorados. Embora essas empresas continuem defendendo fortemente o TRIPS, os preços de medicamentos vitais para HIV/AIDS foram reduzidos em alguns países em desenvolvimento, o caso na Corte de Justiça contra África do Sul foi retirado e, não menos importante, estão começando a perder algumas de suas influências sobre decisões governamentais. 6 - Outras Ações Para que as reformas do TRIPS se traduzam em ganhos reais para as pessoas pobres, os ativistas de campanhas precisarão também pressionar por uma maior redução na dívida externa, por mais ajuda internacional e pelo financiamento dos governos à P&D nas áreas de saúde e agricultura relevantes à pobreza. São urgentemente necessários mais fundos para ajudar a financiar a compra de medicamentos em países menos desenvolvidos. Também poderia ser feita uma campanha por um fundo de transferência de tecnologia financiado por uma pequena taxa sobre patentes, a fim de ajudar as nações mais pobres. Conclusão Uma preocupação no mundo inteiro em relação aos efeitos das patentes sobre os preços de medicamentos capazes de salvar vidas tem levado a vitórias na Corte de Justiça da África do Sul, na disputa EUA-Brasil na OMC e em Doha. Isto tem criado um clima político no qual é muito mais difícil para os países ricos intimidarem os países em desenvolvimento sobre a questão de patentes, embora sigamos com a tarefa de mudar as regras. Os ventos estão mudando no debate sobre patentes. Existem mais oportunidades para as pessoas comuns aprenderem como as regras atuais de PI contribuem para a pobreza e para o subdesenvolvimento e de se aumentar a pressão política por mudanças. Este será um importante passo em direção a um mundo onde o conhecimento e a inovação são bens sociais que servem às pessoas, acima de tudo às pessoas que necessitam, e não bens corporativos que servem a acionistas. |
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