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14 de janeiro de 2002


Brasil: Entrevista com Gildo Marçal Brandão

Lula, se eleito, precisará do PSDB


Jamil Nakad Junior
Valor Econômico. Brasil, janeiro de 2002.


Na disputa pela candidatura do governo à Presidência da República, a governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), tem chances desde que saia em busca de um vice paulista. "Se o candidato do governo não tiver força em São Paulo, não ganha", resume o cientista político Gildo Marçal Brandão, de 52 anos, professor da Universidade de São Paulo (USP).

A importância de São Paulo, diz, é recente. No período democrático de 1945 a 1964, só Jânio Quadros veio do Estado e foi um "desastre". Agora, explica Gildo Brandão, o tamanho do eleitorado e a força que São Paulo teve na luta pela redemocratização o reforça na Federação. "É mais natural que o candidato seja de São Paulo. O candidato não tem que ser de São Paulo, mas um candidato paulista sai na frente." Na briga governista, o ministro José Serra leva vantagem: além de ser de São Paulo, tem um histórico de disputas eleitorais.

Para o cientista político, o próximo presidente vai encontrar um Congresso fragmentado e para governar terá de contar com pelo menos três partidos. Caso vença Lula, o PT vai ter que se unir ao PSDB, numa aliança estratégica, negociando cada caso.

Brandão diz que a eleição de 2002 será pautada por três temas principais: crescimento, desenvolvimento e inserção social. A retomada da economia vai ser premente para que o país não patine e, assim, não regrida. A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Valor:


Valor: O fato de o ministro José Serra estar numa pasta social não deveria ser suficiente para alavancar sua candidatura?

Gildo Marçal Brandão: É um elemento forte. Não só pelo social, mas pelo fato de Serra ser o ministro melhor avaliado. Mas não é o determinante. Para a Presidência, precisa-se de carreira política, como a do Serra. Política tem fila e o próprio sistema vai filtrando quem pode chegar lá. Precisa ter lutado eleitoralmente, não dá para cair de pára-quedas. O contraponto desse argumento são os caciques paulistas que sempre inventaram candidatos. Quércia inventou Fleury, Maluf inventou Pitta, Covas inventou Serra ou o Aloysio Nunes Ferreira como candidatos a prefeito. Nenhum deles deu certo. Os que foram eleitos - Pitta e Fleury - foram um desastre. Na eleição solteira de Collor, os partidos não funcionaram. A televisão ocupou o lugar dos partidos. Isso jamais voltará a existir.

Valor: Roseana Sarney é o principal obstáculo de Serra?

Brandão: Roseana está crescendo e mudou o jogo. Ela reforça o poder de fogo do PFL que estava abalado com a derrota de ACM. O PFL volta a ter na mão um poder muito grande.

Valor: Como se explica que Serra, eleito com 6,5 milhões de votos pelo maior Estado, esteja em desvantagem em relação à governadora de um Estado que tem 2,9% do eleitorado nacional?

Brandão: O importante é saber quem tem votos em São Paulo e em Minas Gerais, os dois maiores colégios eleitorais. Collor ganhou a eleição em São Paulo. Qual é o medo de Itamar disputar pelo PMDB? Porque ele leva Minas. Nas duas eleições de FHC, fechou-se o cerco a esses dois Estados. Em São Paulo o arco de alianças de FHC foi muito amplo, ia do Maluf à boa parte da esquerda. Juntava Deus e o mundo e isolava o PT. Se Itamar for candidato, a situação em Minas complica. Aí se o candidato do governo não tiver força em São Paulo, não ganha. Qualquer candidato vai ter que ter força em São Paulo. Roseana pode ser candidata? Pode, talvez se tiver um vice de São Paulo ou todo esquema governamental montado em São Paulo para isso. Uma coisa do sistema político brasileiro, que é recente, é a muita importância dada para São Paulo, dado o tamanho do eleitorado, pelo papel que as forças políticas do Estado tiveram na luta contra a ditadura. Isso era impensável de 1945 a 1964. O Estado nesse período só elegeu um, Jânio Quadros, que foi um desastre e durou sete meses. O sistema de 1945 a 1964 estava montado numa troca em que São Paulo tinha a benesse econômica, mas o poder político não estava com eles. Era uma regra tácita. São Paulo tinha os ministros da Fazenda, mas não a Presidência. Isso mudou com a industrialização, a urbanização, o aprofundamento do capitalismo. São Paulo tem enorme vantagem desse ponto de vista para apresentar candidato à Presidência. Não quer dizer que tem de ser um candidato do Estado, mas o candidato tem muito mais força. É mais natural que seja um candidato de São Paulo do que antes.

Valor: O fato de o ministro Serra nunca ter ocupado um cargo de prefeito ou governador importa?

Brandão: Não. FHC e Serra foram ministros, passaram por cargos executivos, além da experiência eleitoral. Vamos fazer um raciocínio oposto. Digamos que Lula ganhe a eleição. Vão dizer que ele não ocupou nenhum cargo executivo. Bom, ele é presidente de partido; segundo, já tem uma longa experiência eleitoral. Ele não é um desconhecido, é um dos principais líderes do país, tem vôo próprio. O fato de não ter sido prefeito ou governador não importa. Serra tem força para ser candidato.

Valor: Como o sr. vê a indefinição na base governista?

Brandão: Primeiro, é um jogo de forças dentro do governo, que não é monolítico. A disputa interna é grande. Depois, é um esforço do próprio presidente, interessado em postergar a campanha, já que quanto mais cedo definir, menos poder terá. FHC quer manter o controle do processo sucessório. O candidato do governo não virá do bolso do colete, mas também não vai ser um candidato contra ele. Também não quer dizer que FHC vai fazer um candidato, ele não tem condições de fazer isso pela natureza da política.

Valor: Como o sr. avalia as pesquisas eleitorais neste momento?

Brandão: É muito cedo. A novidade é a ascensão da Roseana. A pesquisa pesa como um instrumento de barganha. A opinião dos eleitores se dá em cima da eleição. Há casos históricos, como o de Lula, que se mantém em alto patamar e cai depois. Fica no alto porque tem uma estrutura enraizada. Esse é um argumento forte num voto que é muito mais coeso, muito menos volúvel do que o resto. É natural que nessas pesquisas esteja em primeiro. Da mesma maneira os outros candidatos, sobem e descem. Tudo se define dois, três, quatro meses antes. Não há candidato do governo que seja candidato natural. Na primeira eleição de FHC, não se tinha dúvida de que ele era o candidato natural. Ser "natural" é importante para não provocar cisões. Esse é o problema do Serra, que tem muita resistência, pelo jeito, pela capacidade de trabalho. Serra é visto como alguém que não articula muito, alguém duro.

Valor: O que Lula em 2002 é diferente das outras eleições?

Brandão: Jamais acreditei antes que Lula tivesse chances de ganhar. Agora, o PT não é mais só de oposição, tem experiência de direção de cidades, de Estados. Não é mais o fulano das posições de briga e experiência administrativa zero. Os governos do PT não foram catastróficos, pode ter um melhor, outro pior. O PT saiu das eleições municipais como vencedor porque tinha um bloco de propostas concretas. Foi tão exitoso que os outros partidos o copiam. Como é que o Malan polemiza com o PT? Ele discute a proposta do PT, querendo desqualificá-la. Além da experiência tem uma direção política muito consolidada e muito coesa em torno de um programa: Lula, José Dirceu, José Genoino, Aloizio Mercadante e uma série de assessores. Não se vê muita divergência. Essa direção vem sendo gestada desde os anos 90. O PT não é o mesmo dos anos 80. Hoje são quadros profissionais, de classe média, profissionais da política. Essa gente afinou um certo discurso, uma certa atuação. Eles têm uma coisa que o FHC individualmente tinha e o PSDB tem também: quadros políticos, comprometidos com determinada visão. Se o PT hoje for para o governo, sabe-se com quem vai governar. Por exemplo, se Ciro Gomes ou Itamar ganham, não sei com quem eles vão governar.

Valor: Dá mais segurança ao eleitor saber quem vai ser ministro, com quem vai se governar?

Brandão: Não é só isso. Quem é que vai tomar conta dos ministérios. Como é que vai ser a articulação de alianças, a máquina, a operação do governo, os técnicos, os que formulam a política. Fernando Henrique nesse ponto é uma grande novidade na política pois vem para o governo com gente que estava com ele desde os anos 70, quadros técnicos qualificados. Não se vê isso no PMDB de hoje. Mesmo o PFL, que é um partido de parlamentares e alguns técnicos, não tem nenhum nome. O PT tem. É só ver as reuniões do Instituto Cidadania e do Instituto Florestan Fernandes. Pode-se concordar ou discordar, mas sabe que tem gente com experiência de governo, com capacidade de formulação e com experiência acadêmica. Isso dá maior confiança e torna mais previsível a ação do partido. Se pensar no mercado, nas relações internacionais, PSDB e PT são mais previsíveis. Toda briga e disputa do governo é fazer o PT se comprometer antes com determinadas coisas. É o 'hedge'. Pode ganhar, mas vai ter de fazer essa política. Tem de dar garantias. Isso reflete uma situação real, que é a escassa área de manobra que os governantes brasileiros tem diante do cenário internacional. Imagine se um governo do Lula, ou do Serra, ou do Ciro inventem algo do ponto de vista financeiro muito fora do esquadro. No momento seguinte será bombardeado. O espaço de manobra é muito curto. Por isso que os atores políticos tratam de tornar a ação do outro mais previsível. Tentam-se montar alianças que obriguem o outro, mesmo se opondo, a ter um razoável grau de segurança.

Valor: Essa previsibilidade não deixa o PT mais próximo do PSDB?

Brandão: Deixa. O PT é cada vez mais um partido social democrata em estilo clássico, aquilo que o PSDB não foi. O PT é no mundo um dos raros exemplos de partidos que sobrevive com formação popular. Mas hoje está ligado à classe média, com uma base operária. É um partido policlassista no jargão clássico. O PSDB nunca teve uma inserção operária tão sólida quanto o PT. O PSDB, por conta da reforma do Estado, e ao se juntar ao PFL, foi mais à direita. O PT está sendo ainda um partido social democrata de velho estilo.

Valor: Qual é o resultado disso?

Brandão: O resultado é que o PT vai ter que cada vez mais disputar realisticamente dentro de um jogo de forças dado. O PT não pode ir para uma ruptura, vai governar dentro desse jogo dando uma inclinação mais social. Vê-se isso pelas declarações. Não vai ter revisão das privatizações - pode ter uma aqui, outra ali- mas a privatização veio para ficar. Não tem retorno ao velho esquema. O PT tem vários constrangimentos que o farão operar dentro. E a força do PT hoje, que o torna mais confiável às forças da ordem, é que tem dado sinais que vai governar dentro de limites.

Valor: Por que todos os candidatos querem polarizar com o Lula?

Brandão: Primeiro porque tem um dado factual. Ninguém tira Lula do segundo turno. A vaga que está em disputa é a segunda. Não tem a direita clássica nesta disputa. ACM está abalado e jamais voltará a ter a força nacional que já teve. Maluf está com um golpe mortal em cima dele. A direita clássica foi esvaziada e absorvida pelo esquema de FHC. Os conservadores vão para o candidato do governo. Essa área de centro-direita precisa fazer candidato e o candidato do governo inevitavelmente irá para o segundo turno. Tem muita gente que não gosta do Lula e do PT.

Valor: A candidatura de Ciro Gomes se complica ao não ter quadros técnicos?

Brandão: Teria problemas, mas, além de alguns líderes como Roberto Freire e a direção do PPS, o partido agregaria parcela do tucanato. Não acredito que o PPS fará o presidente, mas a candidatura de Ciro vai alavancar o PPS nos Estados. Não tenho a menor idéia de que tipo de partido vai sair daí, mas não tem mais nada a ver com o PCB. O passado não continua. Se Ciro fosse eleito, não me parece que ele se diferenciaria muito do programa tucano. Além disso a candidatura de Ciro tem alguns aspectos complicados. Nos textos do Mangabeira Unger, o lado de pressão extraparlamentar, a decisão presidencial com um certo tom plebiscitário assusta de certa forma as forças políticas que de fato detém o poder no país. Às vezes Ciro dá a impressão de alguém que não vai negociar.

Valor: Isso pode o aproximar de Collor?

Brandão: Não. Collor era um aventureiro, Ciro não é. Collor não tinha equipe. Zélia tinha sido do 3º escalão do Funaro, o resto, nem isso. Cooptou alguns políticos. Ciro está mais sólido, porque tem alguns quadros do PPS e atrai gente do PSDB e de outros partidos. Até porque para governar vai ter que ter apoio do PSDB, como o próprio Lula. No Brasil, tem que se governar com três partidos no Congresso.

Valor: O PT conseguiria governar com o PSDB? Isso não está acontecendo na cidade e no Estado de São Paulo.

Brandão: O problema é que no Congresso não tem jeito. Na hora do voto, tem que ter maioria. Maioria neste sistema, que é muito pulverizado, tem que ter três partidos e uma aliança muito ampla. Neste governo, com uma aliança ampla, FHC tem de negociar e muitas vezes come na mão. Os parlamentares negociam mesmo. A aliança é estratégica e não eleitoral. Essa aliança no Congresso tem que ser negociada caso a caso. Nisso, FHC tem razão. Ele diz: "os partidos no Brasil são muito fracos, o Congresso é muito forte". Não se pode governar contra o Congresso, a não ser que se feche como medida militar. Toda a vez que tentou-se governar sem o Congresso, o governo federal foi derrubado. Esse é o receio que muita gente tem do Ciro, aparentemente ele pode ser tentado à afirmação da Presidência em relação ao Congresso. Não quer dizer que o Congresso dirija, mas tem poder de veto. FHC conseguiu implantar seu programa primeiro porque tinha ganho na sociedade e segundo porque pode articular a maioria no Congresso. As pessoas queriam ter mais telefone, por isso FHC conseguiu a privatização. Quando FHC não tinha consenso ele não conseguiu: previdência, reforma tributária. Sem consenso não conseguiu avançar. Se o PT ganhar, terá que convencer as pessoas que o programa dele é melhor, o que vai fazer é melhor, que o modo de lidar com a política econômica é melhor.

Valor: Qual é o tema principal que vai nortear os debates na eleição de 2002?

Brandão: Crescimento e desenvolvimento. Sem a retomada da economia, vamos ficar patinando, o que significa regredir. Outro tema é o social, que inclui uma política de inserção social. Dos anos 30 para cá, segundo o Ipea, a desigualdade social continua a mesma. A sociedade vai ter que fazer uma política de combate à pobreza específica para poder ter fôlego para a disputa internacional. Os indíces de pobreza melhoraram, mas a desigualdade continua a mesma.

Valor: A volta da intervenção do Estado na economia pode estar em jogo?

Brandão: A retomada do crescimento se faz com um Estado mais ativo. Muitas das coisas que se dizia que o Estado estava se retirando, na verdade, está mudando a função do Estado. É só ver o papel do BNDES, que financiou a troca de patrimônio. Hoje, o discurso contra o Estado está sendo derrotado. O fracasso do neoliberalismo se dá por causa da realidade. Sem um Estado afirmativo e planejador não se consegue. Esse tipo de economia não se autoregula. Mas isso não quer dizer que vai se retornar ao velho Estado dos anos 30 aos 80, seria uma outra coisa que não descartaria a capacidade de intervenção do Estado. Todos os candidatos que estão aí são de um perfil mais afirmativo. Serra é mais afirmativo que FHC. Os próximos anos levarão primeiro a um discurso e depois uma ação mais afirmativa. O Estado precisa fazer política industrial, precisa fazer política tecnológica... A ação também, até porque o próximo governo vai se beneficiar por muito da estrutura armada no governo Fernando Henrique. Quem pegar não vai desmontar, nem virar de ponta cabeça, vai operar dentro das regras.



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