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La insignia
14 de janeiro de 2002


Desesperadamente realistas


Rui Bebiano
Non!. Portugal, janeiro de 2002.


Chegaram notícias da violência dos bandos juvenis percorrendo as grandes metrópoles. Ouvíamos falar dos gangs de Los Angeles ou Berlim, da forma como eles podiam também ser vistos em muitas áreas do Rio, Joanesburgo ou Lima, mas isso era longe daqui, onde nos levavam os telejornais, uma ou outra viagem casual, mas jamais as portas das nossas próprias casas. Depois soubemos que circulavam pelo metro de Paris ou por certas zonas de Birmingham. Até que os vimos ao nosso lado. Percorrendo, de anoraques e calças largueironas, ou de blusões em cabedal e botifarras à skin, as ruas dos bairros-dormitório. No preciso instante em que, após um dia de trabalho e doses de Big Brother ou de Marcianos, cidadãos aparentemente pacatos dormiam sob os cobertores, podíamos vê-los como sombras, fugindo a correr para a escuridão à frente de polícias nervosos e em fúria.

Vai para dez anos, nas vPerspectivas da Guerra Civil, Hans Magnus Enzensberger observava a agressividade aparentemente inexplicável desse crescente número de grupos, que, no coração das principais cidades dos países industrializados, lhe parecia prepararem-se para banalizar a violência. Os acontecimentos da última década deram todo o sentido a esse temor, como o comprova o aumento do ruído das sirenes nocturnas, o medo de circular por certas áreas, as grades de aço de lojas e residências, a proliferação de alarmes nos edifícios e nos carros, o inquietante negócio das empresas de segurança, a venda de armas de defesa pessoal, as "milícias populares" selvagens que organizam as comunidades para o combate aos intrusos.

São grupos de jovens - sempre do sexo masculino e com menos de 25 anos - que encontram na violência uma forma de vida. Seja ela o pontapé rebelde no caixote do lixo, à James Dean, ou o pneu furado, ou o telefone público inutilizado com um alicate. Às vezes o pequeno furto, o uso da faca de ponta, do revólver, da seringa. Alguns deles, mais particularmente excluídos e conscientes dessa exclusão do que outros, pertencem a minorias étnicas - os negros, os ciganos, em outros países também árabes ou hispânicos - sendo este um aspecto que a polícia e os média sublinham sempre. Outros são europeus, de branquíssima cútis, baptizados cristãos, em alguns casos oriundos até de famílias estáveis. Frequentemente unidos por vínculos tribais relacionados com a música que consomem, a linguagem oral da qual se servem, a roupa que vestem ou os bares que frequentam. Outras vezes apenas gente sem ordenado certo ou futuro visível, aqui e ali relacionada com o consumo de drogas e o álcool. Mas sempre em condições de não acharem especialmente importante a justificação das suas acções, como nos anos 60 e 70 ainda tinham o cuidado de fazer os guerrilheiros, os terroristas e mesmo certos criminosos comuns.

Recebemos o impacte directo dessa revolta no nosso quotidiano de cidadãos presumivelmente respeitadores da polícia e dos tribunais. O massacre tornou-se um entretenimento de massas. Desde 71, com a Laranja Mecânica, de Kubrick, filmes e vídeos das séries A ou B rivalizam entre si para fazer do arruaceiro, do assassino profissional, do sequestrador, do serial killer, anti-heróis que são objectos do culto de um público fiel e secretamente cúmplice. O Clube da Luta, película relativamente recente (1999) de David Fincher, é um bom exemplo. Os netos transviados dos sixties, filhos dilectos do punk, formam agora grupos que se chamam Public Enemy, Primal Scream (Grito Primitivo) ou Kahlschlag (Zona Devastada), enquanto os Guns N'Roses venderam mais de 15 milhões de exemplares do álbum Apetite for Destruction. Os tablóides vão mostrando sangue e equimoses até à exaustão. E The Hate Directory (www.hatedirectory.com), que procura identificar na Internet a presença de páginas cujo objectivo é a promoção explícita da violência social, encontra-se em condições de apontar para dezenas de milhares delas.

Os sectores mais conservadores da sociedade - desde os defensores dos rigorismos religiosos até às correntes retrógradas que aceitam a contra-gosto, subvertendo-o sempre que podem, o jogo democrático - descrevem a sua aparição como resultado da derrocada de um "antigo regime" imaginário. No qual supostamente imperara a moral e os bons costumes, a ordem e a disciplina, a contenção, imposta por um Estado que era pai e tirano, da divergência e da revolta. A degradação do mundo ficaria assim dever-se, para esta gente de má-fé que só recorda o que lhe convém, aos movimentos emancipalistas e revolucionários dos últimos dois séculos - empenhados em inventar quimeras e em criar a desordem - bem como ao declínio das sociedades tradicionais e dos valores de Deus, Pátria e Família. No renascimento da prática sublime e virtuosa da obediência e da resignação estaria então a salvação, sendo o rigor das hierarquias o caminho a seguir.

Mas o ódio gritado por estes "rapazes maus" resulta precisamente da clivagem social que potencia a exclusão. A violência parece-lhes, por isso, a única forma acessível de preencher vidas vazias e sem destino, de enganar o extremo tédio, de sobreviver numa insuperável marginalidade. De suprir também a pequena mas irreprimível necessidade: um par de ténis novos, dinheiro para uma noite de copos e engate, importunar o bom burguês. E ainda como maneira de mostrar ao resto da sociedade que existem e são gente, como forma de contornar a repulsa da qual se sentem objecto, como modo de se verem temidos e por isso menos desgraçados. Franz Fanon escrevia, há cerca de quarenta anos, que os "condenados da terra" não se rebelam apenas contra a miséria e a fome, mas também contra a contínua humilhação a que são submetidos. Só que, neste tempo sem grandes causas, fazem-no sem uma meta política: nada está de facto em jogo, para além da pura revolta e da raiva diante das manifestações provocatórias do dinheiro e do poder.

Muitos dos bandos são, evidentemente, manipulados por forças que os utilizam como tropa de choque contra as democracias, como ficou demonstrado em Julho passado com a actuação dos pró-nazis do Bloco Negro durante as manifestações anti-globalização de Génova. Porém, a iniciativa destas fracções apenas existe porque elas actuam como parte menor de um movimento mais geral e complexo de rebelião contra a marginalização económica, política e cultural que cruza as cidades "mundializadas" do planeta. Este movimento tem, aliás, contribuído para dar um sentido ligeiramente mais organizado e portador de plataforma política, à insurreição de rua, ao exprimir a repulsa por um modelo de desenvolvimento e pela imposição repressiva - centrada na escola, no trabalho e no papel dos média - do conformismo e da submissão dos indivíduos. Perante uma educação para o trabalho sem trabalho no horizonte, frente à ostentação do luxo e do sucesso diante de quem jamais os terá para si, a violência pode assim ser lamentável e perturbante, mas é compreensível.

Nas páginas de Trainspotting (1993), o romance de Irvine Welsh que serviu de argumento a um filme de culto e de inspiração a uma banda sonora que vendeu bastante bem, ficciona-se sobre a vida de um grupo de jovens de Edimburgo "tão desesperadamente realistas que para eles o futuro é inconcebível". Reconhecemos aqui que o problema não se encontra nessa gente revoltada, mas no mundo triste que lhe é oferecido e pelo qual não pode ser responsabilizada. E podemos compreender a alegria breve que lhe é dada pelos instantes de uma violência que aos outros apenas parece gratuita e condenável. Convém que o lembremos antes de açularmos os cães, respondendo ao ódio com mais ódio. E lavando depois as mãos, no calor dos nossos lares.

Janeiro de 2002



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