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4 de janeiro de 2002 |
Periferia é feminino Carla Guimarães
Tereza desperta cedo, sempre muito cedo, antes do galo e antes mesmo do sol. Os grilos da noite ainda cantam na sua janela, quando ela coloca a mesa do café da manhã. O leite, na caixa de papelão, caduca no dia do seu aniversário, mas ela nem percebe. Molha um pouco o pão no café quente e acorda, um a um, os sete filhos. Tereza teve sete filhos, mas poderia ter tido mais. O primeiro aos quinze anos, quando ainda descobria os prazeres do sexo furtivo. Casou-se em seguida. Os outros filhos vinheram como consequência, um atrás do outro. O último quase nasce na subida do morro. Com a imensa lata de água na cabeça, Tereza sentiu as primeiras dores, e quase decidiu parir ali mesmo simplesmente baixando a lata e abrindo um pouco as pernas. Isso de parir já era rotina. No ano passado, ela ligou as trompas. Foi recomendação do médico que evitava novos partos no hospital lotado de nascimentos.
Depois do último filho o marido partiu, sedento por carne nova, cansado da família, e Tereza jurou nunca mais se enredar com esse arremedo de gente chamado homem. Sozinha, trabalha de sol a sol para criar os muitos filhos e por isso acorda sempre bem cedinho, pois a madame, patroa da casa onde trabalha lavando, passando e cozinhando por um salário mímino, precisa sair às sete e meia para a aula de ginástica. Cada filho também toma sua direção, os dois mais velhos são peões de obra e os demais dividem o tempo da escola, onde aprendem a ler um pouco e a codificar os sinais do dia a dia, com a venda de guloseimas pelas ruas, onde a moeda corrente é a necessidade e, por tanto, aceitam real, vale transporte ou ticket alimentação. Aos sábados, Tereza comparece ao candomblé de mãe Regina, faz suas obrigações para os santos e sempre um mesmo pedido: sua casa própria. Tereza vive na periferia em uma casa armengada e construída com os poucos dotes do ex - marido para a engenharia, que na época de chuvas só se mantém de pé graças a um Santo Antônio que ela coloca na sala para qualquer emergência. Ao lado do santo, só a foto do governador que todos os anos repete as mesmas promesas e distribui fotos ao invés de feijão. Quem sabe ano que vem ela muda de candidato. A distância da periferia à cidade para Tereza se resume em um trem e dois ônibus lotados. As vezes parece levar uma vida, as vezes passa voando. É que Tereza, além dos sonhos, leva muita preocupação na cabeça e ainda tem que pensar no porteiro do prédio onde trabalha que, apesar de ser um homem como seu ex-marido, talvez seja diferente, talvez não. Tereza bem que merecia uma vida melhor, diz a vizinha, e complementa: mas nessa vida, pior que ser pobre é ser mulher, que além da carga diária leva consigo as crias. A vizinha se chama Maria, mas no bairro também vive Claudete, Jurema, Das Dores... E em toda a periferia os nomes são tantos e se repetem tantas vezes que o mundo parece ter a mesma cara e, ao mesmo tempo, muitas caras diferentes. Tereza também é como todas e, como todas, é alguém muito especial. Nisso pensa todas as madrugadas quando prepara o café antes do trabalho, sem perceber que a caixa de leite comemora, em segredo, seus anos de vida. |
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