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22 de dezembro de 2002 |
Urariano Mota
Samuel, como tantos jovens em formação nos anos 60, muito se impressionara com a leitura de A Mãe. As palavras calorosas de Gorki caíram-lhe na alma e germinaram. "Revoltai-vos, esfomeados", tinha a simplicidade da vida por ele vivida todos os dias, em sua casa de três cômodos e um quarto puxado, com um jardinzinho à frente, defendido por ripas e arame. Morava na Ladeira do Sapoti, no bairro do Porto da Madeira. "Todos os dias, na atmosfera esfumaçada e triste do bairro operário, o apito da fábrica lançava aos ares o seu grito estridente..". Ele sentia o seu bairro assim, triste, operário, ainda que sua rua não estivesse envolta em atmosfera de fábrica, ainda que sua vizinhança fosse composta de biscateiros. O céu na ladeira era azul, e as manhãs desciam sobre as casinhas baixas com luz e sol. Isto ele via, como um quadro secundário. Pois o esfumaçado e o sombrio eram um sentimento, nascido da carência de mal ter o básico, nutrido e crescido na inteligência que não se conformava com o limite baixo, da altura da calha para os dias de chuva. As palavras de Gorki inseriam um novo tipo de gente, entre o nascer na lama e o morrer, que apodrecia carnes e fibra em outra lama. Nesse espaço entre o nascimento e a morte o que havia no seu cotidiano, manhãs, luz, sapotis e risos? Não, havia uma grande e fenomenal injustiça, sequer percebida, uma domesticidade íntima de escravos mordendo-se, que, em seus melhores momentos, tinham um sorriso que transitava de uma alegria sem substância a uma felicidade realizada em quinquilharias. Qual o futuro daquela gente (pois Samuel já se referia à própria gente como àquela gente)? - Se prevenidos, sensatos, uma mocidade de privação para na velhice terem um mínimo. Ou, quem sabe, na sorte, jogarem no bicho pela manhã para aguardar o prêmio à tarde. Ou se quisessem pular etapas, supondo que em suas vidas houvesse etapas, serem desonestos em pequenas e miseráveis trapaças. Em tudo um suor, uma catinga, uma desarrumação que se comprazia em barulho, rádio ou radiola em alto volume, berros, uma repulsa total ao silêncio, um corte no tempo longo que se enche de humanidade na duração. A vida parecia uma sucessão de flashes, um espocar de momentos breves, um teatro de vaudeville, com tiros, facadas, gemidos, pancadas, baixa a cortina, levanta a cortina. A vida somente serenava no definhamento, na doença, até o último silêncio.
Foi ler A Mãe e Samuel começou a ter febre. Procurava um canto, para aí ser deixado quieto, calado, passando e repassando jornais e revistas velhos, que não mais o satisfaziam. Passou a exigir silêncio na casa, pedindo, reclamando à mãe que baixasse o volume do rádio. Sentiu necessidade de outros livros, que recebeu emprestados dos colegas mais velhos, no Colégio Estadual de Beberibe. Ele se sentia mudado, e muito o irritava que as pessoas ao redor não o notassem. Então ele chegou ao nível da exigência, para mostrar o quanto havia mudado. A um matraquear inconseqüente em casa, a um fala-fala, certa vez ele pôs as mãos nos ouvidos e gritou: - Parem! Calem essa boca! Eu preciso pensar! (Sua mãe e os vizinhos calaram-se, entreolhando-se surpresos). A sua febre não era do gênero de ele sentir frio em manhãs tropicais. Era uma elevação de temperatura no pescoço que, pegando-o nos maxilares, subia-lhe à nuca. Um torpor nos músculos. De um ponto de vista que não cabe numa descrição clínica, era uma tristeza sem rumo, um mal sem remédio, uma inicial alegria que achava que havia descoberto a chave do mundo, mas que descia ao melancólico porque se revoltava do mundo não se adaptar à sua chave. Pelagué não era a sua mãe, ele não era Pavel, embora sentisse uma vontade imensa, uma fome de que Samuel e dona Maria fossem como no romance. Os pontos de contato existiam, entre o mundo que poderia ser, que era o mundo que preparava o céu, e o mundo real dos seus dias, porque os dois mundos se comunicavam na injustiça. Antes de um sentimento grande, de empatia e solidariedade pelo mundo narrado, o seu sentimento era o de descoberta da própria inadaptação. Passou a sentir, aqui e ali, dores de cabeça. A causa imediata dessa dor não era nem a indignidade e humilhação que começou a perceber, que começou a arrumar num modelo explicativo, até porque esse modelo, satisfazendo-o como explicação, era como se as humilhações já estivessem resolvidas, como um céu prometido que consola a morte. O imediato dessa dor era o que não conseguia explicar: a vida lhe entrando pelos olhos como uma agitação que pune a miséria no miserável. Como no dia em que viu um pequeno ladrão, uma criança ladra, correr, fugir com uma bolsa na mão, para ser atropelado, morto e quebrado nos pneus gigantes de um ônibus. O motorista poderia ter evitado, lhe pareceu. Pior, lhe pareceu que o motorista vendo aquele vultinho atravessar a avenida com uma bolsa na mão, arremessou o coletivo em cima dos pequenos ossos. Não quis ouvir, mas ouviu um saco de pedras que se esmaga numa britadeira. Fatos assim lhe davam uma dor de cabeça insuportável, que não era somente impotência, era a falta de uma explicação razoável para tão estúpida crueldade. O criminoso jamais seria punido. A punição vinha sempre para o ladrãozinho que corre. - Silêncio, calem essa boca. Eu estou pensando! Samuel vinha adquirindo uma sensibilidade de vidro. Se alguém pudesse ouvir seus pensamentos, poderia parecer a esse alguém que a alma de Samuel fosse revestida de vidro, uma vez que "por ser matéria sutil e delicada, o vidro trabalha a alma com mais prontidão e eficácia que a carne, pesada e grosseira". A sua irritação, no ambiente doméstico, vinha num crescendo. E ele, que vinha maturando e digerindo as idéias mais generosas, de abraçar toda a humanidade, necessitava cada vez mais de isolamento. Nisto residia também a vontade de mostrar à mãe, aos vizinhos, que ele não mais era, aos dezenove anos, o velho Samuel. A mãe o percebeu, mas de um modo que ainda mais o irritou: - Esse menino está com umas idéias de rico. Este insulto, de tão estúpido, Samuel não respondeu. Apenas contemplou a sua mãe, com frieza, sentado na cadeira de fios plásticos entrançados. Aquela era a mãe. Gorda, com as mãos nos quartos, os cabelos partidos ao meio, justos numa risca. Cabelos negros, com mesclas de caspa e fios brancos, secos por natureza mas quase sempre úmidos de óleo. Esta era a sua mãe. Esta mulher possuía com ele uma intimidade que o vexava, um conhecimento anterior a suas mudanças que o perturbava, como se ele ainda não se houvesse apartado do seu colo, e fosse menor e menos que o velho Samuel. Ela sorria, desmontando-o . Isso mais ainda o irritava. A vontade que lhe dava era a de esbravejar blasfêmias cabeludas, para que ela o respeitasse, quer dizer, para que ela o estranhasse, e dessa estranheza viesse a percepção do quanto ele era o novo Samuel, distante séculos do Samuca, a que ela ainda por cima vinha fazer afagos. Baixou a vista, evitando-a . Essa mãe o destronava. Dona Maria, no tempo em que era Maria, era uma mulher agradável, bela. Samuel teria dela a lembrança, alguns anos mais tarde, da mulher que ela era quando ele tinha oito anos. Por quê, não o sabia. Era como se ela fosse lembrada somente em sonho, assim como se faz uma recusa com a vista e a percepção ao corpo tragado pela doença de alguém que se ama. Nessa imagem de sonho ele a veria de corpo oculto por névoas, rosto sem boca, apenas olhos cabelos e fronte da mulher com quem se comunga uma irresistível e mansa intimidade. Ele estava nela, ela era dele, e isso era uma afirmação do humano que ele era. Eram anos que lhe chegavam como de harmonia. Com efeito, a mulher que o perturbava agora, em pose de suave megera, era uma mulher que nascida para o amor, para a dignidade e respeito que se exige no amor, fora brutalizada pelo casamento, transformada em fêmea de parir. Dissemos casamento, mas nem essa violentação cerimoniosa ela alcançou, pois fora jogada a um ajuntamento carnal com um macho bêbado. A sua mãe e seu pai foram amigados, palavra frágil, pois nem amigos foram nos anos em que viveram juntos, juntos, como dizer?, habitantes inimigos sob um mesmo teto. Os anos que Samuel tomava como harmônicos, e com isso ele apenas lembrava os anos em que seu corpo mal se deslocara do colo morno de Maria, foram os anos em que ela resistira no físico e no ardor às imposições de fazê-la um animal de parir. Foram os anos em que ela, trabalhando como cobradora de ônibus, fora uma pessoa. Isto quer dizer que ela comia o alimento ganho com suas próprias e gordas mãos. Mãos quentes, coração bravo. Ela então possuía os mesmos um metro e cinqüenta e cinco, mas punha saltos altos, e sua pele tinha cor e era fresca, os seios tinham farto leite para a maternidade, e nisso um só ponto em sua graça e elegância ela não decrescia. A sua beleza era a exuberância, chegando à pletora, de vida. Não era ela feita de traços suaves, como ele a idealizaria na lembrança. Ela era bela do que nela se movia. Os seus minutos tinham a duração da intensidade. A uma pessoa assim, com essa ânsia de ultrapassar o instante, a uma pessoa com essa exuberância, de impulsos e abandono à vontade dos impulsos, a vida mata na altura dos trinta anos, ou prolonga os dias retirando-lhe o que é belo, numa dilação desonrosa. Pessoas assim lembram cordas tensas de um violão que se romperam e foram emendadas, cujo som agora emitido não é mais música. O destino lhes dá uma segunda chance, mudando o transbordamento em pântano. A torrente que não mais é, estagna, vira lama. Compreendê-las nesta segunda fase é o mesmo que um "analise esta sombra". Maria perdera o encanto dos seus rompantes. Tornara-se viúva quando se libertara da ditadura do marido. Para quê? - ela ganhara a liberdade quando não mais podia fazer uso dela. Estava adaptada, queremos dizer, a sua beleza se curvara à sobrevivência da frouxidão. De Maria, pessoa bonita desde o nome, ela se transformara em dona Maria, gorda, chorosa e brincalhona. Uma viúva, sem a hipocrisia e mau gosto das que se vestem de preto quando ainda são fêmeas disponíveis, mas uma viúva que era um galho retorcido, que se consumira nos deveres da maternidade. Quem a imagina nessa altura de sua vida, aos cinqüenta e três anos, cai em erro se lhe põe uns óculos, curva a espinha, costurando. Maria vive de sua arte na cozinha, fazendo bolos e doces, que entrega para a venda a meninos da vizinhança. A isto ela acrescenta o oferecimento de calças, camisas e blusas a moradores do subúrbio, que lhe compram a prestação. Ela se diz, "o marido se foi, que descanse". No dia em que viu o caixão do falecido na sala, teve um crise de riso, que sufocou a custo, para não explodir na mais libertadora gargalhada. Ao espanto e censura dos vizinhos, ela respondeu: - É que eu olho pra ele e só penso que ele está se fazendo de morto. Mas vai morrer assim mesmo - e redobrou o riso. Nesse dia Samuel descobriu uma nova faceta em sua mãe. Depois do enterro, ao voltar para casa, e ver os cômodos ocos, como sempre acontece quando uma casa perde um dos seus moradores, ela lhe disse: - O que você quer comer? Vamos tratar de comer. A partir de hoje o meu filho é quem manda. E abraçou-o. E chorou, sentida, desvalida e calorosamente, como a Maria dos seus oito anos. Samuel percebeu, no íntimo, que as lágrimas de sua mãe caíam sobre o seu ombro como as lágrimas de uma mulher infeliz que encontrou o seu amor. Ele a sentiu em seu peso e sua graça, graça pela solidariedade que o invadiu, peso no entanto por ele saber que não poderia suportar tamanha esperança. Esta era a mulher que o destronava. (*) Do romance Os Corações Futuristas |
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