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15 de dezembro de 2002 |
Urariano Mota
.... / ..../ ..... , à noite
A massangana a que eu fechava os olhos com o tempo passou a dar sinais de sua presença, ainda que não a desejasse. Quando foi isto, mais precisamente? Num daqueles espaços entre uma arremetida e outra rumo às alturas. A gente forceja, fracassa, e cai sentado em cima do próprio eclipse. É algo assim como ficar sentado, contrariando a lei da gravidade, em cima de um buraco negro. Isto é uma abstração de artifício. Explico. Qualquer indivíduo, por mais são ou doente, tem sua zona de eclipse. São as regiões escuras em que ele esconde o que o envergonha ou martiriza. São quartos de despejo, muito grandes. Neles cabe não só o que ao indivíduo envergonha, como também aquilo que ele deseja, por método, deixar escondido. Agora mesmo, neste diário, entre a supressão de um parágrafo e outro vou criando minhas regiões de eclipse..... Calo-me. Voltemos ao primário. Parti em viagem à minha própria Massangana. Num domingo logo cedo peguei um ônibus e desci em frente ao antigo mercado público. Vi. Toda a Massangana cabe numa rua, por onde se vai, passeando, de um extremo a outro em quatro minutos. Há sessenta anos, toda ela era muito grande. E isto não é só proporcional a meu tamanho físico de criança. É coisa mais fina, sutil. É a visão do que nos cerca em sua primeira e fundadora vez. Fui olhando o que antes eu não desejava olhar. O que estava em eclipse. Os objetos, as pessoas mortas, mudas, em silêncio foram se apresentando. A porta da venda, verde-escura, da casa 49 onde nasci, à tarde se fechava. Minha mãe tirava a sesta. A casa ficava em penumbra, porque nela não existia janela. O chão era iluminado por réstias das telhas frouxas, por frestas que chamávamos de brechas, que filtravam o sol da tarde. O teto era e continua sem forro. Na parede da sala havia um cromo, uma gravura de mulher vestida em discreto maiô. Foi a minha primeira noção de que sexo era pecado. Com a casa no silêncio da tarde, subi em uma cadeira, tirei o cromo da parede. Deitado no chão fiquei a esfregar a bimbinha no que eu julgava um, o corpo, sobre a mulher que eu via nua. Lembro que a mulher possuía os cabelos curtos (e os cabelos curtos da mulher eram então, pelo que deixavam descobertos, um anúncio de nudez). Ela era loura e se curvava, quase agachada, como uma serpente se insinuava, insinuando ao mesmo tempo bunda e peito. As coxas eram roliças, de um diabinho mignon. Não tenho certeza, mas devia sorrir em batom laranja. O fundo da gravura era azul, do mar e do céu. Um azul claro, norte-americano, de pouco sol, como ameaça o nosso azul tropical em dia de chuva. Eu me esfregava naquele presente da tarde. Sobre os seios, sobre as coxas, sobre todo o diabinho mignon, no maiô cor de sorvete de mangaba, sobre os pontinhos de sarda dos ombros nus. Com o movimento que eu fazia, o cromo se arrastava no chão como uma lixa. Foi a perdição. O ruído despertou minha mãe, que se surpreendeu, e me surpreendeu com um chinelo. Seis anos? Novamente cai o eclipse. A casa cai em sombras, fica totalmente escura, mergulha no mais profundo sono. Há um lapso, um vasto espaço negro na memória, e ainda que eu saiba que a minha vida continuou depois, essa continuidade eu só posso realizar me encarnando em pessoas distintas. Há um corte, no sentido cinematográfico e cirúrgico. Os lapsos dos alcoólatras se abrem no escuro em recordações difusas. São recordações de imagens indefinidas, de atos remotos, desconexos, blocos espalhados de que não conseguem retornar a gênese de tempo e lugar. Se alguém lhes conta o que fizeram, eles não só ouvem o relato com atenção, como também lhes parece que o relato é verdadeiro, que faz sentido. O alcoólatra age como se a recordação do que fez o atingisse usando a boca do interlocutor. O que é diferente de um sono de anos, vindo depois de um choque. Para ser grosseiro, eu diria que este sono é um baque de bêbado, seguido de perda de consciência. Mas ser grosseiro não é ser preciso. Ser grosseiro é apenas delimitar um campo, e dizer, "o ponto que queremos está em algum lugar deste campo". É como a derrubada de uma parede onde se pendura um alvo. Então eu digo que neste sono não existe perda de consciência. Existe um embuçamento, de defesa. O passar dos anos, a crescente seleção da memória, seleção que já é uma montagem interessada, porque deixa à vista apenas o que nos convém, o passar dos anos faz o primeiro embuçamento ser revestido de outros, até o ponto em que os sucessivos embuçamentos querem ser a nossa cara. O disfarce reclama os seus direitos. Ele nos convence do absurdo de que não tínhamos nenhuma cara enquanto estávamos de capuz. Então o olhar para trás, na memória, faz a ligação de uma cara de disfarce a outra de disfarce - uma ligação de dois indivíduos distintos. O que somos, uma parte substancial do que fomos, é uma cara em eclipse. Os olhos fazem a narração de uma voz que não é a minha. Um outro indivíduo parecido comigo vem me guiando. "A sala era aqui. Havia um sofá, de forro cor de vinho, de flores de jardim pobre, de cinco pétalas que um dia foram brancas. Havia um carrinho, movido a corda, trazido de navio americano. Uma mesa, alta, algumas cadeiras. Esta sala, que hoje é um salão, devia ter um biombo, frágil, de compensado, criando um compartimento onde estava o quarto de sua mãe. O sofá, durante o dia, era para as visitas (supondo, sua mãe, que viriam). À noite, o sofá era a sua cama." Meu Deus, digo à voz, eu era espantosamente pobre. Como alguém tão destituído podia sonhar que estava em terras do Massangana? Isto é mais que um pombal e menos que uma casa. A voz não se detém. "A cozinha ficava a quatro passos. Venha, veja. É uma pia suspensa, um fogão e um filtro. A isto se somavam coisas miúdas, panelas, uma peneira, canecos, alguma louça, com que os pobres enchem o vazio de sua miséria. Mais dois passos. Aqui começa o quintal, aqui termina. Aqui, neste muro que hoje bate em seu peito." - E o pé de sapoti, que ainda está depois deste muro, dele você não fala? O sapoti é o melhor e a melhor da melhor das frutas. Você não fala que eu nunca fui tão rico do bom e do melhor em toda a minha vida. Eu ganhava todas as manhãs sapotis maduros, caídos desse pé, neste mesmo quintalzinho em que você hoje chafurda. Você sabe o que é ganhar um presente, com os olhos ainda cheios de ramela, todas as manhãs? Você sabe o que é ganhar bom-dia de uma fruta que se abre à pressão de mãos de criança? A voz se torna mais afável. É uma afabilidade persuasiva, que conheço dos tempos em que me falava a minha mãe. "Da infância você lembra o que é confortável. A sua infância, nesta quase casa, não era uma estação de sapotis todas as manhãs. Os sapotis que lhe chegavam, e quando chegavam, eram roubados do sítio que vai além deste quintalzinho. Eram sobras, que excediam a voracidade dos morcegos à noite. Frutos roubados do proprietário do sítio. Mas eram sapotis, fresquinhos, já abertos na queda, você me diz. De açúcar e mel amadurecidos na seiva. E depois, na sua infância, o que vinha, mais um sapoti? E depois? Você já nota que a sua vida, para ganhar sentido, um sentido que esclareça os seus gaguejos, há de ir além destes dois compartimentos, o do salão e o do quintalzinho. O seu Massangana, por mais que você o faça crescer, jamais se construiria por entre estes toscos quadradinhos. Venha. De parede afora vamos atingindo as terras do engenho. Venha. Quando você batia nesta parede da sala, do outro lado lhe respondiam. Quem lhe respondia era seu Luís, que era dono de uma leiteria aqui junto. O Mudo. Na confusão de fatos distantes, você pensava que o Mudo, empregado de seu Luís, fosse o dono da leiteria. É que o sentimento briga com questões práticas. Num bairro popular, como poderia um deficiente ser dono de um negócio, de uma atividade com empregados, se não a tivesse recebido por herança, ou não tivesse ganho da natureza mais deformações compensatórias? O Mudo, nesse tempo e lugar, era um fracasso." - Como fracasso? Neste lugar não já estamos todos fracassados? Todos não já estão mortos, sem nenhum vestígio de passagem das suas vidas? Só lhes sinto o cheiro de suor, nestas casas. Existirá uma hierarquia do fracasso? Um fracasso-sargento, um fracasso-tenente, e um portentoso fracasso-general? "É por isso que lhe pesa a passagem pelo eclipse. A ele você só vem se estiver em depressão. Na verdade, desses que há pouco falamos, nem se pode dizer que eram um fracasso. Sequer tentaram sair dos limites do que você chama o seu Massangana! Na forma de uma proporção, responda: se alguém coaxa com os sapos na lagoa, e nos horizontes de sapo dá-se por satisfeito, pode-se dizer desse alguém que fracassou como gente?" - Ficar na lagoa, coaxando, não é nem pode ser um destino. Nem muito menos uma opção. Isto vai de encontro a tudo que conhecemos como natureza humana. "Mas a natureza humana, para você, é o que sobre ela você aprendeu nos livros. Estamos na região do eclipse. A região a que você fecha os olhos. Estamos na sua região. A região da humanidade dos sapos. Antes que você engulhe, abra bem os olhos e toque-os, com o espírito desarmado de livros." - Eu sou gente. Eles também são gente. "Inverta a ordem. Toque-os para que você mesmo se reconheça, como sapo ou como gente. De uma forma ou de outra, digamos que eles, os outros, é que não eram sequer um fracasso. Eles, os outros, você me entende..." - Eu vi seu Nestor. Seu Nestor era um barbeiro que estudou filosofia. Naquele tempo. Certa vez um barbeiro estudou filosofia. Isto é como uma história de Andersen. "Havia também um mudo, de quem você nem lembra o nome. O mudo não era nenhum vilão, porque nele não havia nenhuma crueldade pensada. Era apenas um mudo, que grunhia, agoniado, para se fazer entender. Esse mudo e sua vida também dariam uma história. Quanto mais entramos em sua pele, mais o despojamos. Ele é o personagem SEM. Sem virtudes, sem alma, sem grandes risos, a não ser os que lhe sejam dados por artifício e acréscimo. Desse figurante você possuía medo. Aqueles gestos agoniados de SEM lhe davam um medo à semelhança do que você sentia dos fantasmas, quando à noite você dormia no sofá de florezinhas encardidas. À semelhança, porque dos fantasmas você corria, enquanto de SEM você guardava uma prudente distância, olhando-o nas tentativas que ele fazia em traduzir-se para os adultos. SEM só diferia dos fantasmas porque não vinha lhe pegar. Mas dos fantasmas possuía a ameaça. Se algum dia ele viesse lhe puxar o pé, isto seria um pavor mais concreto, encarnado, que os fantasmas escondidos no escuro, nas cortinas desta casa. SEM era o pavor do feio, da doença. O seu futuro seria um dia tornar-se fantasma. Então ganharia uma humanidade. Então você começaria: 'Houve um dia um fantasma SEM, que em vida havia sido mudo. A sua crisálida era o seu corpo. Esta borboleta que esvoaça à noite repugnava no balcão da leiteria. Ninguém a tocava. Até o dia em que subiu do seu corpo. Como fantasma, SEM, mudo, atingiu sua eloqüência. Agora, abrindo e agitando os braços, todos o entendem. Faz medo com nome de medo. Está entre os seus iguais, os fantasmas. E SEM, que não falava, finalmente habitou' ." Não quero nem vou continuar esta página. .... / .... / ...... Sofrimento por sofrimento já tenho a minha cota, em minha própria voz. Sem alma, sem crisálida. Numa palavra eu digo: a casa onde nasci hoje é uma barbearia. Desencanto, desalento. Não há desencanto que não dê em desalento. Uma lição pode vir de uma topada. Isto foge a um programa linear de aperfeiçoamento. Uma lição de uma topada o teorema não explica. Em razão do imprevisto, e em razão de que não existe cálculo para a dor. Quando voltei à Massangana... sinceramente, já é hora de umas boas e prosaicas verdades. O mal do método prosaico é que ele é arrasador. Não fica pedra sobre pedra. O mal do método bom, bem-intencionado, é que ele é mistificador. Assenta pedras sobre o vento. Entre os dois vou equilibrar a minha verdade. Restaurarei as pedras nem sobre o vento nem sobre uma base podre. Procurarei. O que eu chamo de Massangana, a casa onde nasci, são dois cômodos feitos para o comércio, e que hoje completam mais acertadamente uma barbearia. Esta é a casa-grande, do engenho. As terras largas do Massangana, "cortadas pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca", onde "durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que se cozia o mel", essas terras onde "pedaços inteiros de planície transformavam-se em uma poeira de ouro" , eram e são a Rua Japaranduba e mais o mercado público. Faz sentido. Japaranduba parece nome de engenho. Esta rua nasceu sob o signo do comércio. A explicação que me deram é que a inauguração do mercado público fez nascer ao seu redor uma série de pontos de pequenos comerciantes, que não tiveram o privilégio de se instalar dentro do mercado. Foram barrados, são os recusados dos boxes. Cá fora, em tabuleiros, em barracas, foram armando sua exposição: das meninas louras de Renoir fizeram cajás, da graça de uma bailarina em pontinha de sapatilha perfilaram uma banana, que vendiam aos centos, tão generosa é a natureza; das tintas misturadas com espátula fizeram um amasso de tomates, laranjas, pimentões, e do mais cheiroso verde do coentro. Pisavam com os pés, inocentemente, o que os pintores impressionistas cerebravam com as mãos. Numa rua assim, destinada ao comércio de vegetais, eu não sei como não nasci como uma batata. Na forma pura, simples e desvalida de uma gordinha batata. Assim falaria o prosaico, sobre o meu Massangana. "A criança sustenta muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice terá novamente o privilégio de carregar." Eu me detenho sobre este diário como um ourives. Seria melhor dizer que me detenho sobre ele armado de um microscópio, descobrindo e analisando fatos que à vista desarmada não são vistos. - Os primeiros oito anos foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instintiva ou moral, definitiva ... - cito sem aspas. A razão por que este fundamento moral se deu nos primeiros anos, ainda não é o momento, a esta altura. Importa mais rever o que o prosaico jamais viu. Sinto música. Vejo rostos que passam, rostos parados na calçada da rua, e eu dentro de um carro em movimento. Eles passam, rápido, não individualizados. Massangana é longe, Japaranduba é perto, tentam me dizer. A janela do carro está fechada. Vou abri-la, mas o céu está carregado de nuvens cinzentas. Vai chover. Um rosto aqui, outro ali, eles tentam me dizer que a Japaranduba é cinzenta. Eles moram na Japaranduba e brandem essa circunstância como prova. Enganam-se. Eu sei com todo fundamento que eles se enganam. Insistem, aqui e ali, jogando sua voz pela fresta do vidro, "a Massangana é cinzenta". Concedo. Eu vi. A Massangana está cinzenta. Mas ainda não é. Há vida renitente, que não enxergam os inexperientes olhos. O homem que volta ao lugar de sua infância e vê miséria e miudezas e trastes, pensa simplesmente, prosaicamente, que na infância ele era tão inocente que a ruína de hoje ele não via. Verdade, em parte. Existe uma outra parte: os lugares também envelhecem. Os lugares envelhecem, homens, meninos, adolescentes de rostos passantes. Eu sinto que os lugares não têm a felicidade da morte. Envelhecem e ficam arrastando a sua cauda, pesada, escamosa. Caem em decadência, mas não morrem. Sepultam-se, são sepultados por vezes, são destruídos, aplanados por bombas, terremotos, enchentes. Mas não morrem. Imagino que é porque a pedra tem idade mas não morre. Isto por um lado, se me fosse permitido um comentário de intenções geológicas. Mas é coisa menos exata, portanto mais complexa, da região onde o cálculo não entra. Além do carbono 14. Os lugares têm memória. Eles ficam empedrados, emparedados, sob camadas de terra e rocha. Um dia vêm a ser redescobertos. Acredito que o único modo de matar um lugar é matar o homem. Quero dizer, anulando por completo da face da terra toda a espécie. Desse modo, a cauda pesada do antediluviano vira paisagem sem significação. De que adianta a paisagem com o fechamento dos nossos sentidos? A morte do sentimento é que é A Morte. Não sei se sou romântico. Pior, não sei se sou piegas. Como um bolero repleto de informações do almanaque capivarol. Paciência. Fenômenos puros só na absoluta abstração. Fenômenos puros não há, lembro, lembro-me de quando eu me empulhava com Hegel. Paciência. No momento, o que importa é que os rostos vão ficando para trás. A música. Eu estou entre crianças, brincando de roda. Há lama perto, no chão da rua de muro altíssimo, muro permanentemente úmido, do que parece ser uma casa de banhos coletivos. Há barro aos montes, num quintal adiante. A tarde está no fim, anuncia-se a noite. Em minha boca há um gosto de chá de capim-santo. Eu me sinto febril, porque sinto frio num fim de tarde de verão. Isto me vem muito enevoado, mas tão próximo quanto um acontecimento de ontem à noite. Eu tenho as pernas e os braços cheios de manchas escuras, de feridas que sararam, deixando em seu lugar manchas a caminho do marrom. Sei que duas outras crianças me oferecem a mão, para que, cantando, comecemos a rodar. Súbito, a menina de cabelos de um amarelo cor de mijo, com tranças, cabelos de um amarelo mortiço, iluminado a vela, súbito essa menina mais velha me descobre e dá um grito, uma ordem: - Não peguem na mão dele! É catapora! As mãos, os dedos que me tocavam, encolhem-se, como se recebessem um choque. Fico só, os adultos sentados nas cadeiras, impassíveis. As crianças fazem roda três passos adiante. Fecham-se e começam a cantar, "atirei o pau no gato ...". Não lembro se fiquei chorando, lembro que fiquei em pé, sozinho, sem apoio, ouvindo o canto. Sentindo o que devem sentir os leprosos. Minha mãe vem e me pega pela mão, consolando, me dizendo que eu voltaria a brincar, no dia em que eu estivesse bonzinho. Mas o importante não era brincar. O importante foi a falta de solidariedade. O importante foi a discriminação, que conheci, antes que lhe pudesse soletrar o nome. Este foi um dos primeiros conhecimentos da sociedade, de como ela se comporta, que eu tive. Um conhecimento da cobiça, que à primeira impressão foi somado, com o tempo. Na felicidade que temos, a sociedade nos aceita. Na dor, ficamos sozinhos. O pranto que nos corre é monólogo. O importante na dor é evitar-se o contágio. E isto é um acréscimo, de coice, que recebemos. Os acontecimentos mais fundos da infância não são de alegria. Por que não se grava tão indelével a primeira bola que ganhamos, o primeiro carrinho? Gravam-se, mas não fundam. Então por que a nostalgia, a saudade de um paraíso que não houve? Por que esta ... "saudade do escravo" ? Por que, finalmente, insuflamos ternura até no que a realidade possui de mais cruento? "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi o que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte ... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte." Eu acho que nunca tivemos entre nós uma história de escravos com tanta poesia. Com tantos suspiros, luares e suavidades. Chegamos a sentir a falta de violões e modinhas. Num cortejo, senhores e escravos seresteiros, dos engenhos aos canaviais. Acredito mesmo que uma história de escravos assim, aqui e nalém mar, nunca houve. Acredito, e, no entanto, compreendo. É Joaquim Nabuco falando da escravidão no seu Massangana. É um clássico do embelezamento de nossa infância. "Também eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivessem feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo." .... "Quanto a mim, absorvi-a (a escravidão) no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância ...". Quanto a mim, confesso, nunca tive o privilégio da carícia do leite da mãe-preta. Sequer de uma vaca preta carinhosa, em forma de gente. Tive de me contentar com boas mamadas na minha mãe. Completei-o, pois eu era bebê e queria mais leite, com o leite em pó importado, furtado de navios no cais. Entre um e outro, bebi o criativo leite com água da leiteria do seu Luís. É claro, reconheço, que o leite da mãe-preta deveria ser mais rico, acrescido que era do fartum, em mistura ao cheiro e perfume do mel. Reconheço, espicaçado por pontinhas de ciúme e desalento, mas meninos diferentes cantam e desencantam diferente a sua infância. A minha Japaranduba tinha características diferentes do Massangana. Entre os dois, tão diversos, no entanto há uma chave, que a mim mesmo venho procurando revelar. O que o Massangana tem da Japaranduba em minha formação, quero dizer, em minha fumaça? Isto: O Massangana de Nabuco é um espelho estilhaçado, de imagem torta, com pedaços de minha imagem. Eu a vejo, por exemplo, tortamente neste caco: "Tornei a visitar doze anos depois a capelinha de São Mateus onde minha madrinha, dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, jaz na parede ao lado do altar, e pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos ... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas urtigas, era tudo quase que restava da opulenta fábrica, como se chamava o quadro da escravatura ... Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava deles, defronte dos columbaria onde dormiam na estreita capela aqueles que eles haviam amado e livremente servido." O que a razão me diz disto: é a volta do Bom Senhor ao cemitério do Pai Tomás. O Bom Senhor e o Generoso Escravo, duas grandes idealizações. Idealizados, e piegas. A pieguice não é o recato, o recolhimento tímido do sentimento à miséria. Não é a atrofia do coração encolhido, recolhido a uma concha indefeso. A pieguice é apenas o acovardamento que se nega a ver a crueldade. A pieguice fala de acontecimentos cruéis no mesmo passo em que se desvia de sua crueldade. "Minha mãe morreu, parece dormir. Por que não acordas deste sono, mamãe, para mais uma vez beijar o teu filho entre lágrimas?" , perguntamo-nos, quando piegas. A pieguice considera-se , nesse gênero de pergunta, até com rasgos de eloqüência. Na verdade, a pergunta que chora faz um desvio da náusea que lembra o corpo defunto no caixão. Chorando a dor evita a dor. Isto a razão me diz. E ouço, cadenciadamente: escravos dormem entre urtigas defronte à capela onde dormem senhores a quem amaram e livremente serviram. Ao ouvido é de um ritmo quase encantatório. Mas quanta crueldade submersa! Isso a razão me diz. Sinto um movimento de repulsa, um impulso de jogar fora esse caco que às urtigas defende. É um pedaço de espelho, esse caco, no entanto. Olho-o, fugidio. E me vejo, como uma imagem de refração na água, em diversos planos, como se fosse um copinho escolar de plástico, que se monta e desmonta. Pois eu também voltei à minha capelinha, cinqüenta e cinco anos depois. Ali estavam os meus escravos, quero dizer, os vizinhos, amigos, parentes, anjos e demônios. Ali estavam a minha madrinha, dona Ana da Silva, meus tios, primos, mãe, vizinhos. Juntos, escravos, gente, meu sangue, numa mesma cambulhada, num mesmo cemitério de urtiga entrando pela capela, da capela estendida entre as pedras. O cheiro, se não era de engenho, vinha de charque e feijão. O cheiro do suor de gente. O Massangana de Nabuco valia como uma evocação. Piegas, mas numa frase lapidar sustentada. Mistificadora, mas com o ensino, em sua mistificação, de minhas próprias mistificações. No Massangana de Nabuco havia de retirar a pieguice e a mistificação. Isto significava matar um boi para lhe comer somente um ventrículo do coração. Isto era o mesmo que no Massangana jogar fora o Senhor e o Escravo. Ficava nada, ou quase nada. Ficava: o traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber. Ficou, na minha digestão do ventrículo: o traço todo da vida é um desenho de criança esquecido pelo homem. Como uma linha da mão, o traço da infância delineia a vida. (*) Da novela "Japaranduba, 49" . |
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