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12 de dezembro de 2002 |
Rodrigo Gurgel
A obra de Euclides da Cunha pode, com certeza, ser incluída naquele rol de livros sobre os quais muito se fala, mas que poucos lêem. E os que olham para o calhamaço com certa desconfiança, desacreditando da importância do livro e da necessidade - sempre apregoada - de lê-lo, têm certa razão. A Euclides foi reservado, nas escolas, o mesmo papel desempenhado por Camões: instrumento útil às provas ou exames ardilosos, quando o objetivo do professor medíocre é humilhar toda a classe, mostrando como ninguém domina os meandros da análise sintática. Muitos supostos mestres disseminaram dessa forma - e continuam a disseminar - o terror entre seus alunos, condenando o estudo da língua ao ódio dos jovens. E, ao mesmo tempo, condenando Euclides - e tantos outros clássicos - à repulsa dos prováveis leitores.
Os efeitos de um tal trabalho de contra-propaganda são inúmeros. O senso comum alardeia os epítetos conferidos a Os Sertões, dos quais o mais corriqueiro é "difícil", corroborando o esforço dos professores no sentido de tornar, não o livro, mas a imagem que se faz dele, a mais hermética possível. De fato, nada pode ser melhor à preservação do estado em que se encontra o Brasil, do que distanciar os cérebros de qualquer vislumbre de inteligência. E, principalmente, das inteligências - como a de Euclides da Cunha - que, esforçando-se, de maneira crítica, para compreender nosso país e nossas contradições seculares, produziu um livro que, ao completar 100 anos neste dezembro, permanece avesso às classificações fáceis e às sínteses superficiais. Quem não enfrenta o agreste euclidiano condena-se à acídia intelectual, pois Os Sertões é um libelo contra a prostração social, uma denúncia da negligência dos governos, um ardoroso convite à revolta dos pobres e um manifesto em defesa do abandono dos preceitos literários europeus. Um dos muitos testemunhos da guerra patrocinada pelo Estado contra os miseráveis da caatinga, é o único, no entanto, que soma estilo incomparável, diálogo com dezenas de fontes literárias, reflexão científica, lirismo e profunda indignação. O livro nos pede, para sua leitura, dedicação, silêncio, humildade e, o principal, seguir o conselho que o autor, citando Taine, nos dá na Nota Preliminar: tornar-se um jagunço entre os jagunços, um adepto do Conselheiro entre os habitantes de Canudos. Ao não nos refugiarmos em nossas certezas, poderemos penetrar na obra que se oferece para ferir-nos. Com temor e tremor vasculharemos um universo chamado Brasil, mas que, acreditem, ainda nos escapa. O interior do Nordeste - seu relevo, seu clima, seu cotidiano, seus homens - nega-se à compreensão das mentes acostumadas aos delírios do consumo, à realidade filtrada pela mídia, aos valores do individualismo burguês. E um de seus melhores espelhos - Os Sertões - solicita de nós a lentidão que desconhecemos e a paciência que perdemos; pede que nos tornemos lentos para apreender a vida do sertanejo e para que, em conseqüência, compreendamos como são apenas miragens muito do que germina nos centros urbanos do litoral, civilizações que cultuam os deuses do efêmero e da rapidez. A perversidade da caatinga é diversa. Se, aqui, somos escravos das imagens, lá o homem ainda é escravo da natureza soberana. E ao apresentar, de forma aguda, esse paradoxal convívio de contrastes, Euclides denuncia, ao mesmo tempo, as escolhas erradas do nosso mundo e o injusto atraso do sertão. A lição é clara: ao dar as costas às comunidades do interior, o homem supostamente civilizado abandona uma escravidão apenas para abraçar outra. O livro, portanto, é atualíssimo. E sob a linguagem rebuscada esconde um convite a saborear as infinitas possibilidades da língua portuguesa; guarda, no estilo, certa premência de rompimento e negação que se avoluma e se intensifica a cada página; destila, numa alternância musical, aventura e poesia; exuberância e simplicidade; dor e otimismo; furor, revolta e sangue. Contudo, ler Os Sertões hoje não é, infelizmente, voltar ao passado. As condições sociais que permitiram o surgimento do arraial de Canudos permanecem, naquela região e em muitas outras, completamente inalteradas. Mais uma razão que torna a leitura obrigatória, pois a obra, passado um século, ainda é, além de um relato histórico, um vívido documentário. Euclides nada perdeu do que presenciou. E às anotações da Caderneta de Campo somaram-se conversas com amigos, pesquisas, infindáveis leituras. Ele se entrega com igual paixão aos detalhes de um exemplar da flora e ao relevo, à análise da pluviometria, aos hábitos de homens e mulheres, às variações dos processos migratórios, à descrição minuciosa dos tipos físicos e das personalidades. E submete todo esse inacreditável mundo à loucura da guerra, mostrando como o desencontro, a injustiça e a estupidez podem transformar um cenário de luxuriante beleza no palco da desolação e da morte. Em Os Sertões nos aguarda um encontro entre países opostos que vivem sob a mesma bandeira; entre valores e homens completamente dessemelhantes, mas brasileiros; entre o fulgor do sol e o fastígio dos crimes coletivos. Espera-nos a tarefa - talvez, para alguns, o dever - de acordar naquelas páginas o rumor de uma memória que não morre, que persevera, que continua a clamar, apesar da distância e do tempo, pois estas são categorias que inexistem para as obras imortais e para todas as injustiças. Espera-nos, também, o prazer de encontrar nossa língua transportada a um promontório ocupado por raros escritores, dentre os quais Euclides da Cunha emerge transfigurado pelo destemor que o fez unir, num mesmo livro, a crueza de um tema hediondo e o rompimento com velhas escolas literárias, construindo uma nova e contagiante estética, precursora de muitas das melhores conquistas do Modernismo. |
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