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1 de dezembro de 2002 |
Urariano Mota
Por esses dias nos invadiu um sentimento de solidariedade pelos jovens que fazem vestibular no Brasil. Não nos referimos ao massacre mesmo da maratona. Num esforço de concessão, digamos que o reduzido número de vagas nas universidades imporia tal massacre. Por esforço de concessão e método, digamos que isto seria necessário. Digamos. Mas esse esforço é incapaz de conter o que sentimos em relação a um momento específico das provas do vestibular: a solidariedade aos jovens que sofrem a prova de português. Que miséria! Queremos dizer, como é que se mata dessa maneira a maior aventura e gozo do conhecimento? Queremos dizer, como é que se mata a luta para expressar o conhecimento e a fruição mesma que é a sua leitura? Pois alertados para o fato de que as normas da língua culta, isoladas, são precárias para o ensino da expressão do pensamento, uma vez que normas aqui e ali são fósseis, camisas-de-força para a loucura do engenho, as provas passaram a exigir a interpretação de textos, e aí, de um erro secular atingiu-se um erro bárbaro, porque recente, porque moderno. Chegou-se à "interpretação". Pois interpretar é mesmo o quê? Deveria ser um livre reflexo de um conteúdo. No entanto, numa tradução zombeteira de Rosa Luxemburg, a liberdade passou a ser a do gabarito da prova, expressa nas opções do Certo e do Errado. Vale dizer, a interpretação continuou livre, desde que presa a limitadíssimas opções. O problema, e o diabo, e o pior, é que o Certo e o Errado são absolutamente estúpidos.
Para não ser injusto com esta ou aquela prova de vestibular, imaginemos alguma obra de prosa que mantivesse um extraordinário teor de objetividade, que, feita de humano para humanos, guardasse uma linearidade que não comportasse dúvidas. Uma obra? Vamos ser menos ambiciosos. Digamos uma frase, algo assim tão elementar quanto "Miguel de Cervantes é um escritor clássico". Existiria alguma dúvida, para quem lê esta frase, sobre quem é Miguel de Cervantes? - Sim, se se quiser levar em conta a dimensão de criador a que ascendeu Miguel de Cervantes. Mas suponhamos que não, suponhamos que já estivesse assente que ele foi um dos maiores gênios da escrita de todos os tempos. Haveria ainda alguma dúvida sobre o significado do verbo Ser no presente? Não ... dizendo melhor, Sim, porque esse verbo não se realiza nele mesmo, ele guarda significado com o que lhe segue, e isto para não levar em conta que trouxemos para o presente um indivíduo que faleceu há quase 400 anos. Mas passemos, como resolvida, essa dificuldade. Passemos ainda pelo artigo indefinido Um como favas contadas, como se fosse tão sem importância quanto o definido O em relação ao que se declara. Atinjamos Escritor. Teríamos então "Miguel de Cervantes é um escritor". Alguma dúvida? Não, pois todos devem saber o que é um escritor na sua definição mais óbvia, "escritor, aquele que escreve". Mas a essa altura, perguntamo-nos, está prenhe de significados claros o dizer que Miguel de Cervantes é um escritor? Não, porque qualquer indivíduo que não tenha descido ao nível do mineral sente que nessa frase há um corte abrupto, há uma falta, porque dizer que Cervantes é um escritor é dizer uma redundância, além de, é claro, jogá-lo à vala comum de todos que escrevem. Então atinjamos o adjetivo, tão forte que prescindiria do substantivo. Alguma dúvida sobre esse adjetivo? - Para dizer o mínimo, todas, todas as dúvidas. O que se quis mesmo dizer com o Miguel de Cervantes é um escritor clássico? Imaginemos agora um objeto escrito onde essa frase se inscrevesse. Façamos uma pausa e imaginemos. Cinqüenta linhas, cem frases gravitam em torno dela. Possivelmente, as dúvidas dessa única frase seriam resolvidas pelo desenvolvimento das orações e argumentos. Mas bem mais possível, possível, não, com certeza, outras mais e maiores dúvidas surgiriam, até que atingissem o patamar que atinge todo e qualquer objeto escrito: ele é um significado no momento em que se concebe, ele é outro quando se realiza, e tem ainda um terceiro, um quarto ... na absorção e nas circunstância de quem o lê. No caso das provas de português do vestibular no Brasil, acrescentam-se mais dois significados: o objeto escrito é transformado num excerto, é um corte do original, quase sempre; e é um corte que já vem com suas determinações prontas, do gabarito, naquela tradução perversa da liberdade de Rosa. Com isto alcançam-se situações francamente absurdas. Por exemplo, o autor de uma crônica, aproveitada para o vestibular, não consegue responder às questões dirigidas ao que ele próprio escreveu. O escritor Mário Prata, para lembrar um exemplo recente, já escreveu página exemplar onde se confessava incapaz de responder ao que perguntaram numa prova sobre o que ele, Mário Prata, escrevera! O que dizer então de jovens de 17, 18 anos, à procura do Certo e do Errado, perdidos na selva escura, como se houvesse um, e somente um caminho até o Paraíso? Para quem não está na sua pele, é uma Comédia, de erros. Triste é ver o papel de professores que não erguem sua voz contra semelhante estreiteza. Triste é vê-los elogiar semelhantes provas sob argumentos de que "o vestibulando está sendo avaliado em sua capacidade de compreender e interpretar textos sob o ponto de vista semântico, estrutural, estilístico e gramatical". Referendam o status quo. O que quer dizer, diante do rei nu, afirmam que ele está vestido pomposamente de seda. Por Deus, se um crítico calejado, experiente, seria incapaz de resolver todas essas possibilidades diante de um fragmento, como é que jovens estudantes podem encontrar convergências, identidades, por exemplo, entre um poema, um excerto de uma página filosófica e uma reles divulgação publicitária, tudo num só quesito? Responder pelo menos absurdo? Mas o que é absurdo diante de tal mistura, se não a própria, irresponsável e leviana mistura? Como aceitação do status, triste ainda é ver professores recomendarem, atenção, o leitor segure por favor o engulho, 10 Mandamentos para Análise de Textos. Por que não 20, 30, N mandamentos? Por que não, simplesmente, nenhum? Entre esses mandamentos, encontra-se a norma "Sublinhar, em cada parágrafo, a idéia mais importante", que tem nome, "tópico frasal". Outro dos mandamentos: "Escrever, ao lado de cada parágrafo, ou de cada estrofe, a idéia mais importante contida neles". E mais este: "Não levar em consideração o que o autor quis dizer, mas o que ele disse, escreveu". (Essas coisas deveriam vir escritas em gótico.) Ora, contestar qualquer um desses mandamentos seria o mesmo que bater em bêbado que desce a ladeira. Ainda assim, não nos furtamos. Vejamos uma estrofe do poema O Cão sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto:
"O rio ora lembrava O que o estudante anotaria ao lado, a língua mansa de um cão, o ventre triste de um cão, ou o pano sujo dos olhos de um cão, mas sem perder nunca de vista que se trata de um rio? O que mais releva, o rio mesmo, ou a sua metáfora, que lhe dá substância? E que coisa mais esdrúxula um rio que lembra ora uma, ora outra parte do miserável de um cachorro! Como sair desse empobrecimento? O bom senso nos recomenda, como um décimo primeiro mandamento, que ninguém consegue responder, marcar "certo", a todas perguntas da interpretação de um poema sem estar razoavelmente burro. Ou treinado, estupidamente treinado, vale dizer, tornado absolutamente inútil para a compreensão da riqueza que a literatura nos presenteia da vida. Desde que as ciências humanas passaram a padecer de um complexo de inferioridade em relação às maravilhas criadas pelas chamadas ciências exatas, como se a técnica fosse um ente inumano, como se ambas manifestações não fizessem parte do mesmo complexo humano, desde então foram trazidos para a sua análise instrumentos que não lhes são próprios. Como, por exemplo, a objetividade, a liquidez cristalina e estúpida de que dois mais dois são quatro. Nem sequer é levado em conta que nem essa verdade é tão verdadeira assim, quando se mudam os sistemas de numeração. Bem pior, nem sequer é levado em conta que dois mais dois no reino da história dão sempre um resultado que não se determina antes que um fenômeno se tenha concretizado. Há um espaço aberto de possibilidades que salta e zomba de projeções esquemáticas. Se isto, então ... quem sabe? No específico da escrita, da criação que se expressa em palavras, esse movimento de objetividade passou a uniformizar as mais diversas manifestações sob o nome genérico de "texto". E nesse grande saco de quinquilharias puseram a mensagem publicitária da Coca-Cola, o poema de João Cabral, o Dom Quixote, e até mesmo estas mal traçadas linhas. Tudo é texto. E a partir daí, desse objeto material, passou-se a dividi-lo em parágrafos (com o devido desconhecimento de Marcel Proust), em estrofes, e linhas, em palavras autônomas, como se esse retalhamento guardasse a unidade, como se do seu conjunto recomposto resultasse a totalidade do objeto, o corpo vivo do pensamento. Ora, a linha de um texto é um espaço mumificado, é a tentativa de cortar o tempo para tão-só este instante, como se o agora pudesse prescindir do que foi e do que virá. Pois a criação lembra bem uma imitação humana do tempo físico: o "texto", o tempo, veio, vem e virá realizado num só objeto. Seria bom, sensato, razoável, que tais interpretações de empobrecimento mantivessem distância das criações que nos iluminam. Pois que alternativas seriam postas numa prova para o infeliz do Gregório Samsa, que um belo dia despertou transformado em um inseto? Que ele se transformou: a) em uma barata; b) em um mosquito; c) ou em um grilo? As possibilidades de trágico e ridículo estão abertas. (*) Autor do romance Os Corações Futuristas, e da novela policial O Caso Dom Vital, inédita. |
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