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26 de agosto de 2002 |
Urariano Mota
Samuel desceu para a fábrica mudo, ou melhor, surdo, pois quem o visse notaria que a sua mudez não era inerte. Andando, dirigindo-se ao banheiro coletivo onde trocaria de roupa, a espaços fazia gestos, falando consigo, irrefreável. "Estão matando. Alguém entregou. Os companheiros não entregam. Sim, às vezes. Mas um quadro como Cíntia seria poupado. Infiltração, claro. Liberalismo. Vevê, porra, tanto que eu te avisei. Os bandidos têm astúcia. Tanto que eu avisei". Tem a cabeça pesada, dolorida. Procura afastar de si, enquanto anda, a desconfiança de que poderá ser o próximo. No entanto, a sua lógica lhe diz: "Vevê, que era muito liberal, deve ter falado meu nome ao policial infiltrado". A isso dá de ombros: "é uma hipótese. Meu nome aqui é Zeca. Vevê não podia saber que virei operário". Apressa o passo, para não perder a hora do seu turno.
Troca de roupa. Atravessa o pátio e entra no galpão onde se localizam as prensas e os fornos. Começa a recolher peças de alumínio, amostras, para levar ao controle de qualidade, no laboratório da indústria. Anda e volta com movimentos de autômato, uma angústia no peito furando-o. O orgulho de suas funções, "sou um operário", dilui-se, liquefaz-se, à semelhança do minério a 760 graus no forno. Mas sem a lava, sem a brasa, sem o ardor. Liquefação fria, passada pela extrusão. A forma que lhe sai, que lhe vem à boca, é "o que estou fazendo aqui? os companheiros morrem e eu recolho amostras de lâminas". Para mais adiante enformar-se no perfil "serei o próximo? serei o terrorista seguinte dos jornais? o que é que eu fiz?". O forno se abria e ele queria qualquer coisa provisória em lugar dos rostos dos companheiros avistados na incandescência. Estavam destruídos, mas seus rostos em 3 x 4 apareciam incólumes, com a fixidez e dureza de uma lembrança permanente. Samuel abafa-se no macacão de Zeca. Esquece-se do trabalho e sai da área de extrusão, dirigindo-se ao pátio que se estende do alto da fábrica, de onde se vêem a praia e o litoral. Tem necessidade de ar, puro, não envenenado. Senta-se numa pilha de telhas de alumínio. Céu azul, mar azul, areias brancas ao longe. Coqueiros, florestas de coqueiros, sopradas pelo vento, farfalhantes. É possível sentir-se o movimento e o ruído das ondas, ainda que à distância o mar pareça estático. Era bom ser livre. Como era bom. Agora mesmo, descer para o mar, voando acima do verde dos coqueiros, planar e pousar suave nas areias. Sem macacão. Nas roupas civis de Samuel, professor dedicado ao magistério. Diabo, ele se lembra da turma de marginais classe média do Ginásio. Suspira. A liberdade, o dispor de si, para si, na manhã clara de sol, sem culpa ou remorso, seria uma quimera? "Esses engenheiros pensam que o operário é um idiota", Samuel se diz, magoado, quando se quer dizer, "esses putos, em razão do cargo, me tomam como um idiota". Mas eu lhes sou superior, eu tenho a visão de um mundo futuro, acrescenta, com uma convicção intranqüila. Aparece-lhe pela frente um sujeito absurdo, de bigodinho, arrancando-o do devaneio. É o chefe de turma.
- O que é que você tá fazendo aí? O bigodinho dá-lhe as costas e segue em passo rápido. Sabe-se obedecido. Antes de humilhado, Samuel fica em espanto: o homenzinho está indignado! A indignação, que deveria ser a dele, professor de história, tratado como um incapaz de opor qualquer resposta, é a do chefete. Volta para o interior de sua área e se põe a caminhar, à espera de novas peças. "Melhor não pensar", ele se diz. Puxar assunto com um colega também é impossível, o barulho e a atenção concentrada no trabalho não deixam espaço. "Trabalho alienado é isso. Fazer, fazer, fazer, sem discutir". Que força extraordinária quando essa gente se levantar, ele se quis dizer. Mas os acontecimentos do dia punham um amolecimento nessa afirmação, como a água no cais erodindo o arrecife. E Samuel teve medo dos seus pensamentos. Ele estava numa encruzilhada, mais uma vez, dividido entre dois caminhos, ora para o leste, ora para o oeste. Para o leste a erosão, a fuga, e isso era o terror, que porejava com o desânimo que lhe dava o assassinato de companheiros, torturados no abafo, pior, assassinados cobertos na difamação, como se eles, vítimas, fossem os terroristas. Os operários, por quem lutavam, estavam imersos nas suas segmentadas tarefas, calados, numa ocupação feroz e estúpida. Ele próprio, isolado, recolhia amostras de alumínio, sob esporros de um chefete. Então ele virou o rosto, como se procurasse peças de alumínio. A humanidade de sua gente estava pior que interdita: ou reagia afundando-se em sangue, ou sobrevivia, como caricatura, sob a chacota. A entrar mais fundo por esse caminho, que era o próprio engolfar-se no desalento, Samuel desconfiava, ele, Samuel, deixava de ter existência. Seria a morte do caráter em que se reconhecia. Carne e músculos de Samuel, somente, como resíduo, do corpo de um fantasma soprado na estrada. Jogou com raiva amostras num saco. Por outro lado, para oeste ... o chefe lhe bateu no ombro. Entre dentes lhe ordenou que fosse ao escritório do engenheiro. Quando Samuel entrou na sala do engenheiro, e recebeu a temperatura agradável do ar-condicionado, o sossego das paredes que vedavam o barulho da área de produção, o estofado sólido de cadeiras que convidavam ao trabalho em paz, não pôde reprimir o pensamento de que o conforto se fazia em cima de aterros de suor. Sua boca distendeu-se leve a esse pensamento. - De quê o jovem está rindo? - perguntou-lhe o senhor alto, de têmporas encanecidas. - Sente-se. Sentou-se. E achou ainda mais irresistível, cômica, a gravidade nutrida no conforto daquele homem. E por isso cerrou o queixo, desviando dele os seus olhos.
- Algum problema? - perguntou-lhe o senhor grave. A voz parecia sair do alto-falante de suas têmporas. E depois de uma pausa: - Fale. Fale o que houve de manhã entre você e o chefe de turma. E esse "interessante" chegava a Samuel com a artificialidade de um hálito com mentol, acrescentado ao ambiente. O ar-condicionado era bom. Um intervalo entre duas surras. Logo logo ele voltaria ao calor e barulho da produção.
- O seu chefe tem me trazido problemas - o engenheiro lhe diz, mudando a voz para um tom amigável. - Ele é meio grosso, não é? Apesar do tom cordial, Samuel pressentiu o chão abrindo-se em seus pés. "Análise de relação coletiva é bandeira", pensou. E respondeu:
- Olha, eu não sei. Pelo menos comigo o normal dele é a grosseria. Samuel fica na esquiva, negaceando a credulidade. Mas a atração para o desarme é crescente. E o motivo não é exatamente altruístico: estando de macacão, faz-lhe bem ser tratado como um igual pelo homem do ar-condicionado. Sabe, claro, até onde ele sabe, que esse tratamento é uma concessão, durável na brevidade da entrevista. Até onde ele sabe. Insatisfeito com a corte de um indivíduo que se faz de seu igual, é impelido a indicar por sinais o seu, de Samuel, verdadeiro posto:
- Eu acredito que o chefe é meio despeitado comigo. Como se tivesse diante de si um papagaio, o engenheiro, de origem nórdica, no que parece, tem vontade de lhe dizer sonoros palavrões em jargão técnico, para ver como o papagaio se comporta. Para ver se o papagaio o repete. Bloqueia-o o ar sério de Samuel, mais que o próprio cargo de direção na fábrica. Papagaio, arrogante. O senhor engenheiro fica entre o insulto de troça e a raiva. E como todo indivíduo que se quer superior, termina por usar a sua autoridade para resolver a contradição de se encontrar acossado por um ente mais baixo: - O senhor pode voltar ao trabalho. E as costas erguidas de Samuel deixando a sala, como numa tabuleta pendurada no seu macacão, fazem o engenheiro inscrever-lhe o que pensa ser a resolução daquele absurdo: "Papagaio arrogante!". Naquela mesma tarde Samuel foi chamado ao departamento de pessoal. Estava despedido. O senhor engenheiro, depois que ele saiu, pensando melhor, achou por bem demiti-lo. Em vez de "papagaio arrogante" escreveu numa ficha que Samuel possuía um nível inadequado à função. Os funcionários do departamento entenderam que isso queria dizer que Samuel tinha um nível mais alto, porque não compreendiam posição mais baixa que a de um operário. O engenheiro, por sua vez, escreveu "nível inadequado" porque não soube arranjar uma expressão equivalente, protocolar, a "papagaio deslocado, empoleirado em lugar e hora indevidos". Já Samuel, enquanto ia a pé até o portão da indústria, perguntava-se o que foi mesmo que havia feito para o engenheiro desconfiar que ele era um jovem dedicado à História. O portão se abriu, largo, grande, branco, e ele sentiu, atrás de si, fechando-se, o portão do cemitério de Santo Amaro. Estava livre. Estava oco, bem dizer. Como se estivesse sem matéria sólida e nutriente. Pássaro sem gaiola e sem ponto de referência. Mas tinha os olhos enxutos, e isso, depois de todos os acontecimentos do dia, era quase uma conformação à realidade. Quase, porque ficou na estrada sem saber se rumava para as praias do norte ou se voltava para o Recife. Aquele sonho, pesadelo, que pensara haver vencido, retornava. Mais uma vez ele estava na encruzilhada. |
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