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23 de agosto de 2002 |
Isabel Rebelo Roque (*)
Não parece irônico que, em tempos de "globalização" econômica, quando se deveria esperar uma relativa diminuição do problema da fome e da pobreza no mundo dito globalizado, essas mazelas tenham - ao contrário - sofrido um recrudescimento ainda maior? Ou por outra, talvez não tenha sido o problema que se agravou, mas sua visibilidade que se tenha tornado maior. Afinal, como é possível pensar na imagem de um globo ao qual permaneçam pendurados incômodos apêndices ou tumores, os chamados bolsões de pobreza? Há, portanto, que extirpar tais "penduricalhos" para que possamos prosseguir em nossa harmoniosa rotação globalizante.
É aí que reside o problema: somos seres humanos; dotados, portanto, de qualidades consideradas exclusivamente humanas, tais como solidariedade, compaixão, consciência do outro. Não podemos, por isso, simplesmente extirpar o tumor que nos incomoda. Há que expô-lo, drená-lo, tratá-lo, saná-lo e, por fim, reabsorvê-lo. É aí, também, que reside nossa perdição.Como seres humanos, destacamo-nos por características intrinsecamente humanas: ambição, egoísmo, desinteresse pelo outro. Há pouco tempo, li artigo do professor de Filosofia Peter Singer, da Universidade de Princeton (EUA), intitulado "O preço relativo da miséria". O texto iniciava-se com um paralelo, no mínimo estarrecedor, entre a situação de absoluta miséria em que vive mais de 1 bilhão de pessoas no mundo e a ação de solidariedade desenvolvida de "americano para americano" após a destruição do World Trade Center. Gente que nem sequer havia ficado desabrigada, pelo simples fato de morar na área próxima à atingida, recebeu assistência no aluguel ou hipoteca especial. Quanto maior o aluguel declarado, maior a ajuda recebida. Lembro-me, por ocasião do atentado, de ver no Jornal Nacional, programa noticioso mais assistido no Brasil, a ação montada por voluntários anônimos nas imediações do WTC: uma profusão de gêneros alimentícios de toda ordem, aparato médico e veterinário (havia inúmeros cães nas equipes de resgate), centenas de telefones celulares doados pela população para que parentes tentassem contato com as vítimas soterradas. Lembro-me de ter sentido um estranho misto de espanto e maravilhamento, e de ter concluído, depois, ser isso mais uma daquelas artimanhas que nos fazem sentir, sempre, aquém de nossos companheiros de viagem na Terra, os "gringos" lá de cima. "Isso é que é solidariedade." As cenas da ocasião fizeram-me reviver imagens de três anos antes, de proporções infinitamente menores, mas cuja comoção provocada na classe média brasileira também foi enorme: a tragédia do Palace II, em fevereiro de 1998. Situado na Barra da Tijuca, bairro de classe média alta do Rio de Janeiro, o prédio simplesmente veio abaixo, na madrugada de 22 de fevereiro, matando 8 pessoas e deixando centenas delas desabrigadas. O responsável, o engenheiro e deputado Sérgio Augusto Naya, teve seu mandato político e seu registro de engenheiro cassados, mas pôde ser visto, não muito tempo depois, comemorando alegremente o reveillon com a família em algum desses paraísos também da classe média: alguma Miami da vida. A comoção causada pela queda do Palace II deu muito pano pra manga, além de haver tornado inevitável, a quem tivesse olhos de ver, a questão: por que um acontecimento desse quilate nos afeta tanto? O que tem ele de mais doloroso que os desabamentos que acontecem todos os dias, levando morte e desabrigo a centenas de famílias que vivem relegadas a áreas de risco nas grandes cidades? Se somos todos seres humanos, o que faz das vítimas do Palace II mais nossos semelhantes que os outros, os das favelas? Será que apenas o que nos move em nossos atos de solidariedade é a velha máxima de "não fazermos ao outro o que não queremos que façam a nós"? Será que o choque de ver transformados em montes de escombros o Palace II e o WTC vem do fato de sentirmos a ameaça cada vez mais próxima? Enquanto a passividade diante da imagem da favela carregada pela enxurrada resulta de a sentirmos distante e - graças ao esgotamento proporcionado pela mídia - corriqueira? Mas falávamos de outra ordem de pobreza que não a de espírito; falávamos da pobreza palpável, sólida, que dói na cabeça, no estômago e nos ossos. Em seu artigo, o professor Peter Singer propunha, numa série de cálculos, uma solução muito simples para reduzir à metade o número de pessoas vivendo na pobreza no mundo. E essa solução nada tem a ver com a extirpação de um tumor. Ela tem como base, pura e simplesmente, a doação anual de 0,4% da renda de cada pessoa "rica" que existe no mundo. Ou, melhor ainda, se o valor fosse arredondado para 1%, poderíamos até aspirar à solução global do problema da pobreza. Esses recursos seriam arrecadados por organizações que trabalham com ajuda a populações carentes. É claro que aí é que mora o perigo: saber até que ponto poderá existir uma organização que de fato cumpra seu papel de repassar os recursos, sem risco de desvio. O professor não entra nesse mérito em seu artigo. O que ele faz, após a proposta, é discorrer sobre valores como ética e moral. É aí, também, que reside outro grande perigo: o de que pensadores como Singer se vejam clamando num deserto, uma vez que conceitos como ética, moral e compaixão têm sofrido um desesperador esvaziamento nos últimos tempos. Outra personalidade que apresentou proposta concreta para a solução do problema foi o empresário Oded Grajew, presidente da Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos) e fundador da Fundação Abrinq pelos Direitos das Crianças. Em palestra na Conferência Anual do Banco Mundial sobre Desenvolvimento Econômico, em Oslo (Noruega), em 26 de junho, Grajew propõe a criação de um Fundo Social Internacional (FSI), a ser administrado pelas Nações Unidas. A diferença em relação à proposta de Singer é que as doações não viriam de cidadãos abastados, mas basicamente de governos, que teriam de destinar ao Fundo os mesmos recursos destinados a seus orçamentos militares. A proposta se amplia no sentido de sugerir também que a coisa não se limite ao "dar o peixe", mas que avance para o "ensinar a pescar" (palavras de Grajew), pela capacitação educacional e profissional. Coincidentemente ou não, em seu discurso Grajew recorre também à tragédia do WTC - e ao papel da mídia - como parâmetro para algumas comparações. Vale transcrever: "O combate à pobreza e à fome não são prioridades na agenda internacional. Apenas para dar um pequeno exemplo recordo que o mundo ficou chocado, de forma absolutamente justificada, com os horríveis atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Três mil cidadãos inocentes foram assassinados. Por vontade política, uma enorme mobilização de recursos materiais e humanos foi empreendida na guerra ao terrorismo. Este assunto ocupou e ocupa um enorme espaço na mídia em todo o mundo. Sabemos perfeitamente o poder desta mídia em refletir ou formular as grandes prioridades da agenda internacional. O Unicef nos relata que 30 000 crianças abaixo de 5 anos morrem diariamente no mundo de fome e pobreza. São 10 World Trade Centers por dia! Ontem a pobreza assassinou 30 000 crianças e os jornais de hoje não colocam uma única linha sobre este assunto! Não houve nenhuma comoção que pudesse mobilizar recursos para salvar a vida das crianças que estão morrendo hoje e morrerão amanhã, depois de amanhã e nos dias seguintes." Grajew prossegue: "Logo após os atentados de 11 de setembro, o presidente do Banco Mundial James Wolfensohn escreveu um artigo publicado em diferentes grandes jornais conclamando governo e sociedade a formar uma coalizão mundial contra a pobreza. É evidente que o imenso contingente de pessoas desesperadas e desesperançadas, vivendo na miséria sem praticamente nada a perder, sentindo-se excluídas e injustiçadas, oferecem uma massa de manobra formidável para qualquer grupo terrorista. Neste artigo Wolfensohn diz textualmente: 'Nosso objetivo comum precisa ser o de erradicar a pobreza e promover a inclusão e a justiça social, visando integrar todos os marginalizados à economia e à sociedade mundiais'." E Grajew argumenta que, de lá pra cá, nada foi feito de concreto e que, certamente não serão discursos e artigos que mudarão a vida das pessoas, mas sim compromissos assumidos e cumpridos.
Alguns dias após a leitura desses dois textos, um amigo enviou-me um artigo, publicado no Adital
Não é difícil depreender, disso tudo, que a questão da arrecadação e do repasse dos recursos é bem mais complicada do que parece. As organizações são administradas por seres humanos, e seres humanos, como sabemos, são potencialmente corruptíveis...
Chama a atenção o fato de que grande parte das vozes que se erguem por uma mobilização em prol da solução do problema mundial da pobreza vem de intelectuais ligados às tão desprestigiadas humanidades, às ciências humanas, que hoje em dia não têm o menor "valor de mercado". Vozes que têm clamado pelo resgate de valores intrinsecamente humanos: a ética, a moral, a compaixão (do latim compassione, que pode ser definido como "compartilhar a dor e o sofrimento do outro"). Mas como clamar pelo recurso a valores que vêm sendo, sistematicamente, chutados para fora de cena no exercício de ser humano?
Basta, como exemplo desse desprestígio das humanidades, a crise pela qual vem passando a FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP (Universidade de São Paulo). Ela não é um fenômeno isolado; é fruto da crescente "tecnocratização" sofrida pelo mundo globalizado.
Lembro-me de uma piadinha infame que eu já ouvia na USP há mais de 15 anos, quando lá cursei Veterinária (e me encontrava, portanto, do lado "certo" e promissor: o das ciências exatas e biológicas): "O último aluno da Letras morreu de parto." Essa era e continua a ser a visão que muitas pessoas têm das chamadas humanidades: coisa de mulher ou de homens de "sexualidade indefinida" - detentores do refinamento "d'alma" necessário. E é isso que sucessivas levas de jovens que ingressam nos estudos são conduzidos a pensar pela mídia e pelos próprios pais. É imprescindível - assim os jovens são ensinados - optar por uma carreira "de futuro" neste mundo globalizado, sob pena de ficar clamando num deserto e ser tachado de louco.
Como, então, esperar desses jovens o resgate de valores éticos que eles nem sequer tiveram possibilidade de desenvolver? A pergunta é de difícil resposta. O tema é extenso. Mas, não nos esqueçamos: ainda hoje, mais 30 mil crianças morrerão de fome e engrossarão as estatísticas do Unicef.
(*) Editora de livros didáticos.
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