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17 de agosto de 2002 |
a noção do outro e o futuro possível
Isabel Rebelo Roque (*)
Cena 1: Close em matéria publicada no boletim brasileiro Valor Econômico, em outubro de 2000, segundo a qual o Brasil ocupava, na época, o honroso 2o. lugar oficial em reciclagem de alumínio, apenas perdendo para o Japão. Na mesma matéria, a previsão otimista de que, a partir da experiência com as latinhas, a sociedade passaria a se interessar também pela reciclagem de outros materiais, como o vidro e o plástico.
Cena 2: longa tomada mostrando o rio Tietê -- que atravessa o estado de São Paulo, e, como se costuma dizer, "agoniza" na capital -- abarrotado de peixes. Só que não são os peixes que costumamos ver em aquários ou nos espetaculares documentários dos canais da TV paga. Trata-se de surrealistas peixes criados pelo homem moderno: as absurdas, ainda que práticas, garrafas PET. Dois anos separam as duas cenas descritas acima. O que, no decorrer desses dois anos, foi feito em relação a cenas como a do rio Tietê? O que falta para que a sociedade se mobilize em torno da reciclagem dos plásticos do mesmo modo como se mobiliza em relação ao alumínio? Mais uma vez, nos vemos diante de uma cruel lei do mercado. O valor pago por uma latinha de alumínio é muito superior ao que é pago por uma garrafa plástica. Ou seja: não há "valor econômico" na coleta e reciclagem dos plásticos. O Brasil não é vice-campeão de reciclagem de alumínio por uma questão de consciência ecológica, mas sim por uma contingência econômica. Coletar latinhas passou a ser o meio de subsistência de uma expressiva parcela de brasileiros. Gente que, de outro modo, estaria relegada a uma vida em condições miseráveis. Em última análise, a outra face da moeda da reciclagem não é a consciência ecológica, mas a pobreza. Às duas cenas acrescentamos uma terceira: plásticos e mais plásticos ocupando prateleiras de supermercados. Embalagens requintadas que serão descartadas logo após a compra. Nelas estampado, em alto relevo, o código do tipo de plástico para orientar a reciclagem: o passaporte para aquele consumidor que se julga ecologicamente consciente expiar sua culpa. Corte rápido. Nesse ponto, esbarramos em duas questões de ordem ética: por que a mesma indústria que desova mais e mais materiais apenas potencialmente recicláveis não se faz responsável pela absorção -- leia-se reciclagem -- desses mesmos materiais? E por que não atribuímos a essa omissão o caráter que ela de fato tem: que estampar uma mensagem de "reciclável" sem efetivamente dar conta dos mecanismos dessa reciclagem é uma falácia, é propaganda enganosa? Aqui cabe ainda outra pergunta: por que a sociedade se deixa, assim, manipular, ficando à deriva nesse oceano conturbado chamado mercado? O que falta para que tomemos o leme ou os remos dessa embarcação? Talvez o que esteja faltando seja educação. Mas não falamos, aqui, de educação nos moldes tradicionais; é cada vez mais evidente que algo não está funcionando no modo como se ensina educação ambiental nas escolas. Promover atividades de coleta seletiva e reciclagem na escola -- trocando latinhas por microcomputadores, isto é, um tipo de lixo por outro, a médio prazo -- revela-se uma prática inócua se, ao final do dia, a criança ou o adolescente desaprende tudo numa simples ida com o pai ou a mãe ao supermercado. Como poderá esse jovem reter ou elaborar qualquer mensagem recebida na escola, se, numa inocente viagem com a família para o litoral, vê o pai abrir a janela do carro e, tranqüilamente, atirar fora a latinha de refrigerante? (Aqui, aliás, nos vemos mais uma vez diante da estranha lógica dos dias de hoje: ao atirar a latinha para fora do carro, alguns de nós julgam estar favorecendo a prática ecológica, uma vez que esse ato facilitaria ao marginalizado o acesso à latinha, seu meio de subsistência.) O problema é que nos acostumamos a ver o ambiente e o outro como entidades alheias a nós. Quando jogamos a latinha para fora do carro ou colocamos o saco de lixo na rua, estamos preservando o "nosso" ambiente imediato, o "nosso" patrimônio: a casa, o carro. O lixo que os olhos não vêem, a consciência não sente. Limpamos a nossa casa e seguimos felizes. Talvez seja essa a explicação para o fato de a educação ambiental vir se revelando tão inócua. Talvez, também, por isso se torna cada vez mais premente mudar o conceito que temos do que seja educação. Começar do começo e, em vez de oferecer respostas -- entre outras para a questão ambiental --, estimular crianças e adolescentes a fazer cada vez mais perguntas. A exemplo da imagem cômica que alguns fazem do pensar filosófico, passar o filme do fim para o começo e propor novas questões: o que é educação ambiental? o que é educação? o que é ambiente? o que são dentro e fora? que papel ocupa cada um de nós nesse contexto? o que significa esse "cada um" em nós? Cada vez mais se evidencia, em face da aparentemente irreversível degradação do ambiente, que, muito antes da educação ambiental, precisamos é de educação humana. Ensinar e, ao mesmo tempo, (re)aprender o que somos nós, do que somos feitos. Perceber que somos constituídos da mesma matéria que constitui o "excluído" que se abaixa para recolher a lata que atiramos fora. A mesma matéria, também, que forma "esse tal de" ambiente, a Terra, o pó de estrelas que alguns chamam Gaia. Urge ensinar aos que estão chegando agora e (re)aprender o que sejam humanidade e valores éticos. E convém ressaltar que não se trata de ensinar a pôr em prática a máxima um tanto egoísta do "não fazer ao outro o que não queremos que façam a nós mesmos". Quando estabelecemos que o outro existe como outro, estabelecemos também que nada temos a ver com ele, que o que acontece a ele não nos diz respeito. Daí, só o que podemos fazer depois é correr atrás do prejuízo de termos colocado esse outro do lado de fora do nosso muro -- junto com o nosso lixo. É premente uma ação que sensibilize as pessoas para o fato de que, do ponto de vista da vida, não há o outro; há a humanidade como espécie e há todo e qualquer ser vivo como participante da teia da vida. Há o mesmo, o estarmos todos no mesmo barco -- num mar que significa a nossa sobrevivência como espécie, e que transcende em muito a mediocridade e as imposições do mercado. Para isso é preciso que exista vontade e instinto de autopreservação por parte da sociedade humana. A ciência não está aí apenas como tecnologia para desenvolver televisões e refrigeradores cada vez melhores. É imprescindível que se cobre dela a criação do antídoto no momento mesmo em que cria o veneno. Se veio dela o plástico que entope os rios, que venha dela também a solução para o problema. Ou, então, que venha de nós a decisão de dizer um sonoro não à comodidade suicida do uso do plástico. Ou será que, no final de tudo, cumpriremos não o vaticínio ingênuo da cena 1, mas sim o destino maldito previsto pela respeitada bióloga Lynn Margulis (uma das idealizadoras da teoria de Gaia, segundo a qual nosso planeta constitui um sistema que se auto-regula)? "Pessoalmente, eu acho que a preocupação com o ambiente é inútil. Porque o que as pessoas irão fazer é se reproduzir, se reproduzir e se reproduzir. E aí elas destroem terras para construir casas e carros para os seus filhos. Mas o ambiente e o sistema de Gaia continuarão. Só que sem as pessoas" (Lynn Margulis). Está em nós a capacidade de mudar essa previsão. Façamos por merecer o direito a continuar neste barco. (*) Editora de livros didáticos Textos citados:
"Brasil vai tornar-se campeão de reciclagem". Valor Econômico, 26 out. 2000. |
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