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13 de agosto de 2002 |
Urariano Mota
"Terroristas mortos em Camaragibe". Abaixo da manchete do jornal estavam as fotos de Vevê e Cíntia.
João leu a notícia sem compreender o que os seus olhos liam. Ia das fotos ao texto, repetia as legendas, voltava às fotos, e não atinava. Sim, eram - ou pelo menos tinham uma semelhança insuportável com eles: Alonso sem óculos, Cíntia com o ruivo rebelde penteada. Assim como na pancada que sentimos quando procuramos um bem adorado e que julgamos eterno, sólido, indestrutível, mais forte e assentado que as nossas próprias pernas, que um instante antes estava conosco e agora, num raio, num lapso absurdo, descobrimo-lo perdido, João recuou um passo e se pôs a repetir sílaba por sílaba os tijolinhos negros de letras, para ver se achava algum nexo de realidade, quem sabe uma saída, quem sabe um engano, repetindo-se em voz baixa como se fosse uma criança que nos seus primeiros passos de alfabetização lesse a lição da morte da sua mãe: "Alonso Morais de Oliveira. APML do B. Natural de Recife (PE), 1952. Recebia terroristas de outras regiões. Conhecido como Vevê". A foto era de um adolescente moreno, de olhos esbugalhados. E os olhos de João corriam para o que ele queria que fosse outra impossibilidade. "Cíntia de Araujo Lima. APML do B. Natural de Fortaleza(CE), 1950. Aliciadora estudantil, fazia ligação com terroristas. Amante de Eudaldo Zacarias. Conhecida como Sílvia". O jornaleiro, indiferente. As pessoas que subiam a ponte da Boa Vista na manhã da quinta-feira paravam alguns instantes, olhavam a manchete, e continuavam o seu caminho. Nenhum comentário. Pareceu-lhe que o sofrimento dos seus companheiros a ninguém interessava, que a dor dos companheiros afundava só, porque a solidariedade reclamada batia contra a base de ferro da ponte. "Atuando no Nordeste Brasileiro, fazia propaganda invocando a necessidade de se manter acesa a chama do terrorismo, no objetivo de aliciar estudantes e outros jovens desavisados e inconscientes para a realidade destruidora do terror". Esta era a Sílvia da versão dos órgãos de segurança. A bonequinha de milho destruída como terrorista. Onde antes cintilavam estrelas ... e João ficou sem concluir. Porque assim era o seu desejo: "eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", ele se disse, mas essa ordem não lhe agradou. Então ele se disse, enquanto mergulhava na legenda da touceirinha rebelde penteada: "eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em segredo". Pouco melhor, achou. E procurou tecer um arremate: "com a ternura e..." e o quê? raiva? não. Humanidade? não exatamente, por faltar à palavra um conteúdo picante, mais ardente. E procurou uma derivação, provisória: "( eu a quero) com a ternura e paixão e um bem", isso, "( um bem) guardado e mais que amado em silêncio, (silêncio que é) feroz segredo". A Cíntia da sua humanidade estava destruída. Isto ele não se disse. Martelava o seu cérebro, agachado, enquanto lia "... dada a ordem de prisão os terroristas reagiram a bala. Após cerrado tiroteio ..." (ele o sabia, Cíntia e Vevê não usavam revólver), martelava o seu cérebro enquanto lia esse estúpido cinismo, como uma lembrança longínqua, uma música infame subindo das águas burras do rio: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti". Darás a tua vida por mim? Cíntia duvidou, no seu rosto apagado, entre névoa, de boca endurecida e serena. "Os dentes de sua linda boca, crispada, serão amarelos?" Então ele se levantou, caído em si, envergonhado, recriminando-se por haver sido tomado por um assalto necrófilo. Cíntia estava morta, isso era real. Quase palpável. Embora fosse um real misturado a difamação, ficção podre, caluniosa, da notícia copiada na íntegra, saída dos órgãos de repressão para o jornal. Mas era natural, ele se defendeu, que respondesse à sordidez com o seu amor romântico, reprimido. "Por que não te posso amar, minha terrorista? Por que não te fizeste de fato o terror, para banir pelos ares a indiferença tamanha dessa gente? Por que não varreste de metralhadora as pessoas que só têm do humano a feição? " Uma dor de cabeça o tomou, e ele se pôs a vomitar sobre as águas do rio, na ponte da Boa Vista. "Estão mortos! Isso é real. Todos lhes vêem as caras mas ninguém sabe de sua humanidade. Isso é real! Estão mortos! ". E ele não podia gritar. Um real de pesadelo mais que real. Pois o que é a morte, a vida cortada abrupta, a não ser um pesadelo mais que real? "Eu te amo, minha defunta terrorista. A ternura que tens só a minha covardia em segredo te adivinha. Eu te amo, exatamente agora, e mais que antes, porque eu sei que és morta. Não és mais coxas, (e como eu as queria), jamais voltarás a gritar, 'eu sou uma subversiva', aquele grito belo que eu não grito. Eu te amo, e pouco me importa que esse amor ganhe a reputação de necrófilo. Eu quero o teu cadáver". E se pôs irreprimível a vomitar. "Não", reconheceu com horror, "o que eu quero é a tua vida. Por que não me digo isso? Eu sei", e João se pôs a chorar como uma criança desvalida sobre a ponte. "Eu sei". E mais em pranto vinha, porque sufocava o que sabia: dura era a opção. Ao vê-lo chorando os que passavam na ponte apenas estranhavam-no. Eram sete e trinta da manhã. Então lhe ocorreram duas hipóteses: a) matar-se; b) matar-se. Hipótese A: pular para o rio. Hipótese B: de metralhadora em punho invadir o QG do IV exército. Na hipótese "a" ele não foi porque lhe repugnava sujar-se do vômito que havia derramado no rio. Certo, ele se perguntou, e por que não em outro ponto? Certo, ele continuou, e se estiver raso, e se em vez de afundar eu apenas fique me debatendo na lama? Então ele foi para a hipótese "b". O quadro não foi bom. E se ele simplesmente morresse na invasão, sem dar um só tiro? Ou, o que era pior, valia a pena fuder um miserável sentinela, e ser fuzilado na porta do quartel, sem ter mandado pro inferno um só general? E, o que era o pior dos piores, ele sabia destravar a arma para que pudesse atirar? Uma decisão de suicídio, sabemo-lo à distância, ou se toma em paciente construção, ou é realizada no calor do instante. De uma forma ou de outra o suicídio exige uma unidade emotiva, alta, grave, que rejeita a invasão do prosaico. Por ser impossível naquele instante resolver de uma forma grandiosa a sua decisão, ele seguiu para o trabalho. Matar-se perseguia-o como uma sombra, não resolvida, à espera de um corpo e momento à sua altura. Samuel tomou conhecimento dos assassinatos na praça de Paulista. Ele esperava o ônibus da Alumínio SA, que o deixaria na fábrica em Igarassu, onde com orgulho vestia o seu macacão. Ao ver as fotos no jornal pendurado na banca, ele não conseguiu reprimir a exclamação: - Caíram! Meu Deus ... Ato contínuo foi lendo com raiva e ansiedade: "equipes especiais dos órgãos de segurança cercaram no último dia 9 um 'aparelho' numa chácara em Camaragibe, utilizado como centro de treinamento de guerrilha. Dada ordem de prisão os terroristas que ali se achavam reunidos reagiram a bala. Após cerrado tiroteio, foram encontrados no aparelho dois terroristas mortos. Dois outros conseguiram fugir ...". - Mentira, canalhas - resmungou. E olhou para os lados. Era como se a praça, a avenida, a feira de Paulista, estivessem vazias. Porque desconheciam o cinismo da manchete estampada no jornal. - Isso é uma canalhice! - Samuel conteve-se, à força, para não gritar. Quanto sofrimento coberto pelo silêncio. Ele o sabia: Vevê há uma semana fora arrancado da casa dos pais por soldados. Num seqüestro, pode-se dizer, à maneira de quem toma da família um cão danado. Agora ele aparecia como terrorista, morto, porque teria trocado balas com a repressão. Isso acusava também a falsidade das circunstâncias da execução de Cíntia. Desde que entrara para a clandestinidade, tornado-se operário, não mais a vira. Tomaram caminhos paralelos. Ainda assim, sabia-o, a prática da organização não era a de treinamento de guerrilha em chácara, pelo menos no grande Recife. Haviam sido assassinados sob tortura, desarmados, isso era evidente. A bonequinha de milho fora machucada até o último sopro de vida. Cortou-se a adolescência de Vevê. Samuel sentiu-se tomado por um profundo desprezo, um desdém por sua própria segurança. "A revolução há de responder", ele se disse, em voz baixa. Ergueu-se. Sentia-se cheio de coragem, mas não no sentido vulgar que é dado a essa qualidade. Nada de fanfarronice, de pabulagem, ou de se sentir melhor e mais alto que o comum da gente. Apenas estava tomado pela decisão de fazer o que era preciso ser feito. Sem ostentação, mas com uma naturalidade prenhe de raiva. Como dizer, decompondo essa raiva? - angústia, paixão, amargura. Ele não queria que chegasse a sua vez, de morrer amordaçado sob a dor - isto ele não queria. Mas se este fosse o único e possível preço ... que raiva o invadiu por tão estreita opção, que não se liberava nem se deixava expandir para um campo de luta aberto. Ele se dizia, sem articular em vocábulos: "chama-me, convicção, e eu te responderei. Mas, luta, dá-me pelo menos a lealdade de armas claras no duelo. Sem canalhice, sem essa brutal infâmia. Sem ter de optar entre o amor por minha particular humanidade e a humanidade do amor geral, histórico. Eu não quereria sacrificar os olhos de quem mais quero à minha convicção.Mas a isso nos impelem. Canalhas...". E gritou, a todos e a ninguém, em frente à igreja de Santa Elizabete: - Filhos da puta! Baixou o rosto, e numa convulsão autônoma, ficou com as mãos apertando-se nos bolsos. Quase não ouve o ônibus da Alumínio buzinando. João chegou no trabalho afundado. Desejava, porque estava triste, afastar de si todo e qualquer convívio, ao mesmo tempo que gostaria da compreensão por seu estado de tristeza. Numa parca esperança de solidariedade. Era necessário, no entanto, e aí o seu rosto não sabia que face vestir, era necessário no entanto ostentar frieza, indiferença, como se não soubesse da notícia dos jornais, para que o seu rosto de dor não lhe atraísse suspeita, assemelhando-o aos companheiros mortos. Sabia-o na inteligência, - como dizer? - por instinto primário, animal, que o insinuar de um sorriso cúmplice com os assassinatos da manhã seria bem-vindo. Mas um frio no estômago lhe interditava essa possibilidade. "Disse-lhe Pedro", vinha-lhe num tormento: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti. Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim?". A pergunta lhe chegava num espanto, incrédula: "Darás a tua vida por mim?!". Entrou no escritório. Sentou-se, abriu a gaveta, fechou-a, tirou a capa da máquina, sem saber como a partir de tais movimentos rotineiros iria tocar o seu dia. Ouviu, do chefe janota: - Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram? Abriu e fechou a gaveta, fechou e abriu, cabisbaixo, imergindo todo nesse ir e vir. Um perfume enjoado, ativo, mistura de repelente e álcool, chegou-lhe próximo: - A puta era até bonitinha. Carinha de anjo, mas terrorista. Você viu, João? - Eu? - "Darás a tua vida por mim?" pensou. - Não vi o jornal hoje. Um bolo azedo lhe subiu à boca. - Trocaram tiros com a polícia... São afoitos. Era como um cerco. Deviam ter desconfiança dele, e vinham com armadilha, estimulando-o, para que se traísse pelo coração na goela. - Vocês se lembram da bomba no aeroporto? Tem que matar mesmo. Eu nuca vi terrorista ter cura - dizia um velho, que João sabia ser um funcionário desonesto. - Mocinha tão bonita... - acrescentava outro, em falsa piedade - ...desencaminhando jovens de família. "Eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", bateu-lhe na mente. E rosnou: - Os jornais mentem muito. - "Com a ternura e raiva e um bem guardado no mais íntimo segredo", os seus olhos quiseram marejar. Conseguiu mantê-los num seco frágil. - O quê, o quê você disse? - voltou-se o chefe. Quis responder com voz alta e firme, "eu disse que os jornais mentem". Mas a voz, teimando em lhe sair num fio, que era a expressão do seu real embaraço, tropeçou nas sílabas: - (Eu) diis-se que os (jor)nais (es)tão meentindo... - Como é que você disse? João sorriu, para a sua desgraça e inferno sorriu, como um menino espancado em frente a visitas. A fortaleza evadira-se do seu peito. Em luta, restou-lhe um meio sorriso, procurando ganhar tempo para o desvencilhar do seu enredo. E como os segundos de um embaraço multiplicam-se na angústia, a sua inteligência descobriu uma terceira via: ele deu de ombros, e declarou num ar de quem fala coisa de pouca importância: - Esses jornais... de vez em quando eles inventam. A gente tem que dar uns descontos. - Ah! mas eles eram terroristas. Isso não é mentira, é? "Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem que tu me tenhas negado três vezes". João virou-se e procurou começar a bater a máquina. As lágrimas teimavam em lhe vir aos olhos. - Mas eles não eram terroristas? - ouviu. "Disse-lhe Pedro: por que não posso eu seguir-te agora? ". E era como se o indivíduo que estava às suas costas lhe dissesse: tu também és um deles. E o seu silêncio frente à pergunta, "eles eram terroristas, isso não é mentira, é? ", soava como a resposta, "eram. Mas eu não sou um deles". As teclas da máquina ficaram embaciadas. Então ele se levantou de sua cadeira com um nó na garganta pronto a desatar. E, tendo saído para fora, chorou amargamente. "Terroristas mortos em Camaragibe". Abaixo da manchete do jornal estavam as fotos de Vevê e Cíntia. João leu a notícia sem compreender o que os seus olhos liam. Ia das fotos ao texto, repetia as legendas, voltava às fotos, e não atinava. Sim, eram - ou pelo menos tinham uma semelhança insuportável com eles: Alonso sem óculos, Cíntia com o ruivo rebelde penteada. Assim como na pancada que sentimos quando procuramos um bem adorado e que julgamos eterno, sólido, indestrutível, mais forte e assentado que as nossas próprias pernas, que um instante antes estava conosco e agora, num raio, num lapso absurdo, descobrimo-lo perdido, João recuou um passo e se pôs a repetir sílaba por sílaba os tijolinhos negros de letras, para ver se achava algum nexo de realidade, quem sabe uma saída, quem sabe um engano, repetindo-se em voz baixa como se fosse uma criança que nos seus primeiros passos de alfabetização lesse a lição da morte da sua mãe: "Alonso Morais de Oliveira. APML do B. Natural de Recife (PE), 1952. Recebia terroristas de outras regiões. Conhecido como Vevê". A foto era de um adolescente moreno, de olhos esbugalhados. E os olhos de João corriam para o que ele queria que fosse outra impossibilidade. "Cíntia de Araujo Lima. APML do B. Natural de Fortaleza(CE), 1950. Aliciadora estudantil, fazia ligação com terroristas. Amante de Eudaldo Zacarias. Conhecida como Sílvia". O jornaleiro, indiferente. As pessoas que subiam a ponte da Boa Vista na manhã da quinta-feira paravam alguns instantes, olhavam a manchete, e continuavam o seu caminho. Nenhum comentário. Pareceu-lhe que o sofrimento dos seus companheiros a ninguém interessava, que a dor dos companheiros afundava só, porque a solidariedade reclamada batia contra a base de ferro da ponte. "Atuando no Nordeste Brasileiro, fazia propaganda invocando a necessidade de se manter acesa a chama do terrorismo, no objetivo de aliciar estudantes e outros jovens desavisados e inconscientes para a realidade destruidora do terror". Esta era a Sílvia da versão dos órgãos de segurança. A bonequinha de milho destruída como terrorista. Onde antes cintilavam estrelas ... e João ficou sem concluir. Porque assim era o seu desejo: "eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", ele se disse, mas essa ordem não lhe agradou. Então ele se disse, enquanto mergulhava na legenda da touceirinha rebelde penteada: "eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em segredo". Pouco melhor, achou. E procurou tecer um arremate: "com a ternura e..." e o quê? raiva? não. Humanidade? não exatamente, por faltar à palavra um conteúdo picante, mais ardente. E procurou uma derivação, provisória: "( eu a quero) com a ternura e paixão e um bem", isso, "( um bem) guardado e mais que amado em silêncio, (silêncio que é) feroz segredo". A Cíntia da sua humanidade estava destruída. Isto ele não se disse. Martelava o seu cérebro, agachado, enquanto lia "... dada a ordem de prisão os terroristas reagiram a bala. Após cerrado tiroteio ..." (ele o sabia, Cíntia e Vevê não usavam revólver), martelava o seu cérebro enquanto lia esse estúpido cinismo, como uma lembrança longínqua, uma música infame subindo das águas burras do rio: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti". Darás a tua vida por mim? Cíntia duvidou, no seu rosto apagado, entre névoa, de boca endurecida e serena. "Os dentes de sua linda boca, crispada, serão amarelos?" Então ele se levantou, caído em si, envergonhado, recriminando-se por haver sido tomado por um assalto necrófilo. Cíntia estava morta, isso era real. Quase palpável. Embora fosse um real misturado a difamação, ficção podre, caluniosa, da notícia copiada na íntegra, saída dos órgãos de repressão para o jornal. Mas era natural, ele se defendeu, que respondesse à sordidez com o seu amor romântico, reprimido. "Por que não te posso amar, minha terrorista? Por que não te fizeste de fato o terror, para banir pelos ares a indiferença tamanha dessa gente? Por que não varreste de metralhadora as pessoas que só têm do humano a feição? " Uma dor de cabeça o tomou, e ele se pôs a vomitar sobre as águas do rio, na ponte da Boa Vista. "Estão mortos! Isso é real. Todos lhes vêem as caras mas ninguém sabe de sua humanidade. Isso é real! Estão mortos! ". E ele não podia gritar. Um real de pesadelo mais que real. Pois o que é a morte, a vida cortada abrupta, a não ser um pesadelo mais que real? "Eu te amo, minha defunta terrorista. A ternura que tens só a minha covardia em segredo te adivinha. Eu te amo, exatamente agora, e mais que antes, porque eu sei que és morta. Não és mais coxas, (e como eu as queria), jamais voltarás a gritar, 'eu sou uma subversiva', aquele grito belo que eu não grito. Eu te amo, e pouco me importa que esse amor ganhe a reputação de necrófilo. Eu quero o teu cadáver". E se pôs irreprimível a vomitar. "Não", reconheceu com horror, "o que eu quero é a tua vida. Por que não me digo isso? Eu sei", e João se pôs a chorar como uma criança desvalida sobre a ponte. "Eu sei". E mais em pranto vinha, porque sufocava o que sabia: dura era a opção. Ao vê-lo chorando os que passavam na ponte apenas estranhavam-no. Eram sete e trinta da manhã. Então lhe ocorreram duas hipóteses: a) matar-se; b) matar-se. Hipótese A: pular para o rio. Hipótese B: de metralhadora em punho invadir o QG do IV exército. Na hipótese "a" ele não foi porque lhe repugnava sujar-se do vômito que havia derramado no rio. Certo, ele se perguntou, e por que não em outro ponto? Certo, ele continuou, e se estiver raso, e se em vez de afundar eu apenas fique me debatendo na lama? Então ele foi para a hipótese "b". O quadro não foi bom. E se ele simplesmente morresse na invasão, sem dar um só tiro? Ou, o que era pior, valia a pena fuder um miserável sentinela, e ser fuzilado na porta do quartel, sem ter mandado pro inferno um só general? E, o que era o pior dos piores, ele sabia destravar a arma para que pudesse atirar? Uma decisão de suicídio, sabemo-lo à distância, ou se toma em paciente construção, ou é realizada no calor do instante. De uma forma ou de outra o suicídio exige uma unidade emotiva, alta, grave, que rejeita a invasão do prosaico. Por ser impossível naquele instante resolver de uma forma grandiosa a sua decisão, ele seguiu para o trabalho. Matar-se perseguia-o como uma sombra, não resolvida, à espera de um corpo e momento à sua altura. Samuel tomou conhecimento dos assassinatos na praça de Paulista. Ele esperava o ônibus da Alumínio SA, que o deixaria na fábrica em Igarassu, onde com orgulho vestia o seu macacão. Ao ver as fotos no jornal pendurado na banca, ele não conseguiu reprimir a exclamação: - Caíram! Meu Deus ... Ato contínuo foi lendo com raiva e ansiedade: "equipes especiais dos órgãos de segurança cercaram no último dia 9 um 'aparelho' numa chácara em Camaragibe, utilizado como centro de treinamento de guerrilha. Dada ordem de prisão os terroristas que ali se achavam reunidos reagiram a bala. Após cerrado tiroteio, foram encontrados no aparelho dois terroristas mortos. Dois outros conseguiram fugir ...". - Mentira, canalhas - resmungou. E olhou para os lados. Era como se a praça, a avenida, a feira de Paulista, estivessem vazias. Porque desconheciam o cinismo da manchete estampada no jornal. - Isso é uma canalhice! - Samuel conteve-se, à força, para não gritar. Quanto sofrimento coberto pelo silêncio. Ele o sabia: Vevê há uma semana fora arrancado da casa dos pais por soldados. Num seqüestro, pode-se dizer, à maneira de quem toma da família um cão danado. Agora ele aparecia como terrorista, morto, porque teria trocado balas com a repressão. Isso acusava também a falsidade das circunstâncias da execução de Cíntia. Desde que entrara para a clandestinidade, tornado-se operário, não mais a vira. Tomaram caminhos paralelos. Ainda assim, sabia-o, a prática da organização não era a de treinamento de guerrilha em chácara, pelo menos no grande Recife. Haviam sido assassinados sob tortura, desarmados, isso era evidente. A bonequinha de milho fora machucada até o último sopro de vida. Cortou-se a adolescência de Vevê. Samuel sentiu-se tomado por um profundo desprezo, um desdém por sua própria segurança. "A revolução há de responder", ele se disse, em voz baixa. Ergueu-se. Sentia-se cheio de coragem, mas não no sentido vulgar que é dado a essa qualidade. Nada de fanfarronice, de pabulagem, ou de se sentir melhor e mais alto que o comum da gente. Apenas estava tomado pela decisão de fazer o que era preciso ser feito. Sem ostentação, mas com uma naturalidade prenhe de raiva. Como dizer, decompondo essa raiva? - angústia, paixão, amargura. Ele não queria que chegasse a sua vez, de morrer amordaçado sob a dor - isto ele não queria. Mas se este fosse o único e possível preço ... que raiva o invadiu por tão estreita opção, que não se liberava nem se deixava expandir para um campo de luta aberto. Ele se dizia, sem articular em vocábulos: "chama-me, convicção, e eu te responderei. Mas, luta, dá-me pelo menos a lealdade de armas claras no duelo. Sem canalhice, sem essa brutal infâmia. Sem ter de optar entre o amor por minha particular humanidade e a humanidade do amor geral, histórico. Eu não quereria sacrificar os olhos de quem mais quero à minha convicção.Mas a isso nos impelem. Canalhas...". E gritou, a todos e a ninguém, em frente à igreja de Santa Elizabete: - Filhos da puta! Baixou o rosto, e numa convulsão autônoma, ficou com as mãos apertando-se nos bolsos. Quase não ouve o ônibus da Alumínio buzinando. João chegou no trabalho afundado. Desejava, porque estava triste, afastar de si todo e qualquer convívio, ao mesmo tempo que gostaria da compreensão por seu estado de tristeza. Numa parca esperança de solidariedade. Era necessário, no entanto, e aí o seu rosto não sabia que face vestir, era necessário no entanto ostentar frieza, indiferença, como se não soubesse da notícia dos jornais, para que o seu rosto de dor não lhe atraísse suspeita, assemelhando-o aos companheiros mortos. Sabia-o na inteligência, - como dizer? - por instinto primário, animal, que o insinuar de um sorriso cúmplice com os assassinatos da manhã seria bem-vindo. Mas um frio no estômago lhe interditava essa possibilidade. "Disse-lhe Pedro", vinha-lhe num tormento: "Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti. Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim?". A pergunta lhe chegava num espanto, incrédula: "Darás a tua vida por mim?!". Entrou no escritório. Sentou-se, abriu a gaveta, fechou-a, tirou a capa da máquina, sem saber como a partir de tais movimentos rotineiros iria tocar o seu dia. Ouviu, do chefe janota: - Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram? Abriu e fechou a gaveta, fechou e abriu, cabisbaixo, imergindo todo nesse ir e vir. Um perfume enjoado, ativo, mistura de repelente e álcool, chegou-lhe próximo: - A puta era até bonitinha. Carinha de anjo, mas terrorista. Você viu, João? - Eu? - "Darás a tua vida por mim?" pensou. - Não vi o jornal hoje. Um bolo azedo lhe subiu à boca. - Trocaram tiros com a polícia... São afoitos. Era como um cerco. Deviam ter desconfiança dele, e vinham com armadilha, estimulando-o, para que se traísse pelo coração na goela. - Vocês se lembram da bomba no aeroporto? Tem que matar mesmo. Eu nuca vi terrorista ter cura - dizia um velho, que João sabia ser um funcionário desonesto. - Mocinha tão bonita... - acrescentava outro, em falsa piedade - ...desencaminhando jovens de família. "Eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio", bateu-lhe na mente. E rosnou: - Os jornais mentem muito. - "Com a ternura e raiva e um bem guardado no mais íntimo segredo", os seus olhos quiseram marejar. Conseguiu mantê-los num seco frágil. - O quê, o quê você disse? - voltou-se o chefe. Quis responder com voz alta e firme, "eu disse que os jornais mentem". Mas a voz, teimando em lhe sair num fio, que era a expressão do seu real embaraço, tropeçou nas sílabas: - (Eu) diis-se que os (jor)nais (es)tão meentindo... - Como é que você disse? João sorriu, para a sua desgraça e inferno sorriu, como um menino espancado em frente a visitas. A fortaleza evadira-se do seu peito. Em luta, restou-lhe um meio sorriso, procurando ganhar tempo para o desvencilhar do seu enredo. E como os segundos de um embaraço multiplicam-se na angústia, a sua inteligência descobriu uma terceira via: ele deu de ombros, e declarou num ar de quem fala coisa de pouca importância: - Esses jornais... de vez em quando eles inventam. A gente tem que dar uns descontos. - Ah! mas eles eram terroristas. Isso não é mentira, é? "Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem que tu me tenhas negado três vezes". João virou-se e procurou começar a bater a máquina. As lágrimas teimavam em lhe vir aos olhos. Mas eles não eram terroristas? - ouviu. "Disse-lhe Pedro: por que não posso eu seguir-te agora? ". E era como se o indivíduo que estava às suas costas lhe dissesse: tu também és um deles. E o seu silêncio frente à pergunta, "eles eram terroristas, isso não é mentira, é? ", soava como a resposta, "eram. Mas eu não sou um deles". As teclas da máquina ficaram embaciadas. Então ele se levantou de sua cadeira com um nó na garganta pronto a desatar. E, tendo saído para fora, chorou amargamente. |
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