Portada Directorio Buscador Álbum Redacción Correo
La insignia
11 de agosto de 2002


Betinho, o cidadão


Maria Eduarda Mattar
Rits. Brasil, agosto de 2002.


No apartamento no bairro carioca de Botafogo, amigos e familiares estão reunidos. Toca Mozart. O calendário marca 9 de agosto de 1997 e o relógio, 21h10. O Brasil perde Herbert de Souza, o Betinho, como carinhosamente ficou consagrado o sociólogo meio profeta, meio santo, que fez da luta aguerrida por cidadania e democracia o cerne de seus 61 anos de vida.

Mineiro de Bocaiúva, conviveu desde cedo com a saúde frágil: era hemofílico, assim como os irmãos Henfil, o cartunista, e Chico Mário, o músico. Ainda bebê, com 15 dias, teve hemorragia no umbigo. Aos 14 anos, sofreu de tuberculose, o que o obrigou a passar três anos afastado da convivência com quem não fosse da família, praticamente desenganado pelos médicos. Curou-se. Por conta das constantes transfusões de sangue, necessárias, em 1986 se descobriu portador do vírus da Aids, doença nova, cheia de mistérios, que trazia uma sombra para suas vítimas: a morte estava mais perto. Porém, quem tem luz própria não se abate facilmente por fato tão "trivial". Adorava uma cerveja gelada, o Flamengo e música brasileira.

A trajetória pessoal de Betinho confunde-se com a história das mudanças políticas e sociais no Brasil na segunda metade do século XX. Adolescente, fez parte da Juventude Estudantil Católica, atuando fortemente no movimento estudantil; em 1962, foi um dos fundadores da Ação Popular (AP), grupo de militância de esquerda. Um ano depois, exerce cargo na assessoria do Ministério da Educação, no governo João Goulart. Com o golpe militar de 64, a vida de Betinho daria uma guinada determinante para que, no futuro, viesse a ser o mestre que o Brasil conheceu.

Assim que os militares tomaram o poder, Betinho se exilou no Uruguai por alguns meses. De volta ao Brasil, viveu na clandestinidade, indo morar em Santo André, região do ABC paulista, onde conheceu Maria Nakano, sua companheira "até que a morte os separasse". Literalmente. Identificado com os movimentos de trabalhadores organizados e os sindicatos, trabalhou durante cinco meses "como operário numa fábrica do ABC paulista lixando xícaras", como ele mesmo revelou à revista IstoÉ.

Em 1971, Betinho e Maria deixam o Brasil em direção ao Chile governado por Salvador Allende, em cujo governo trabalharam - na Oficina de Planificación Nacional (Escritório de Planejamento Nacional). Ali, seu destino começaria a se cruzar, sutilmente, com o de Carlos Alberto Afonso, também brasileiro, também exilado, também trabalhando na Oficina de Planificación Nacional. Em 1973, a história quis que o curso dos exilados brasileiros no Chile mudasse. Pinochet sobe, através de golpe, ao poder. Um grupo de 300 brasileiros se refugia na embaixada do Panamá. Entre eles está Betinho. Seguem para o Panamá e, depois de alguns meses lá, mudam-se novamente. Era época da negociação do canal do Panamá e a presença dos exilados não contribuía para as relações com o governo americano. "A nossa decisão foi que a melhor escolha naquele momento era ir pro Canadá, pois a Europa estava muito cheia de barreiras, muitos exilados. Concluímos que o Canadá seria o lugar que nos daria mais condições de ficar, o mais indicado", lembra Carlos Afonso. Assim, um grupo de exilados entrou em contato com grupos religiosos e de solidariedade canadenses que, por meio de um esquema que passava pela Jamaica e por um acordo com o chefe do aeroporto deste país, conseguiram levar inicialmente quatro famílias, ilegalmente, para Toronto - em fevereiro de 1974.

Lá, Betinho ficou durante cerca de quatro anos, durante os quais fez doutorado em Ciência Política na York University e organizou, junto com Carlos Afonso, um centro de estudos sobre o Brasil que deu origem, posteriormente, à LARU - Unidade Pesquisas Latino-Americanas. Em 1978, convidado pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), Betinho mudou-se para o México para ser professor de doutorado em Ciências Políticas. Um ano depois, em 1979, o governo do general João Batista Figueiredo começa a "abertura democrática" e concede a anistia ao exilados políticos brasileiros. Era a chance de voltar para o Brasil.

"Nós nos reunimos no México para avaliar as condições de voltar ao Brasil", conta Carlos Afonso. Ele e o companheiro de exílio, depois da experiência com a LARU, acalentavam a idéia de montar um Institute of Policy Studies brasileiro, um centro que fizesse um acompanhamento crítico de políticas de governo. Betinho voltou para o Brasil e começou a articular politicamente, enquanto Carlos Afonso buscava apoio financeiro no Canadá e nos EUA. O irmão do Henfil volta para um Brasil que, salvo algumas raras exceções, tinha desaprendido a pensar criticamente o poder, com cidadãos desacostumados a exercerem sua cidadania. Pior, muitos nem conheciam seu real significado. "A idéia de cidadania no Brasil se deve em grande parte a ele. Antes não existia essa consciência. Cidadania era ir votar, ter carteira de identidade. Com ele, esse conceito ganhou corpo, tornou-se mais concreto", afirma Mario Osava, companheiro de exílio de Betinho e representante da agência de notícias IPS no Brasil. Em 1981, é criado o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas), o I-Base, o instituto para as bases. A intenção era encontrar soluções estruturais para o problema da pobreza e democratizar a informação para as bases. A diferença desse instituto era o uso das então novíssimas tecnologias da informação. Com uma equipe inicial de cinco pessoas - Betinho, Carlos Afonso, Marcos Arruda, Luiz Gonzaga e Fernanda Cardim -, o Ibase passou a produzir, com auxílio do computador, relatórios, pesquisas e informação principalmente voltados para grupos organizados de trabalhadores.

O crescimento do Ibase se deu rapidamente, muito em parte pela força política que Betinho foi consolidando. Na direção do instituto, dá início às famosas discussões de conjuntura e participa de diversas campanhas e atos nacionais. Em 1986, depois de descobrir que tinha Aids, participa da fundação da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). Em 1992 articula, junto com outras organizações, o Movimento pela Ética na Política, que culminou com a campanha pelo impeachment do então presidente Fernando Collor. No ano seguinte, cria a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, também conhecida como campanha da fome, sua marca registrada, até hoje indissociável de sua figura. No mesmo ano ajuda a criar o Coep - Comitê de Entidades no Combate à Fome e pela Vida, que procura mobilizar as empresas em relação ao quadro de fome e pobreza no país. As iniciativas tentavam atender uma das necessidades mais básicas do ser humano: comer. E o fato de ele perceber isso e propor ações justamente nestes campos, como lutar para que todo brasileiro tivesse um prato de comida, mostram como sua percepção da realidade era permeada por humanismo.

Betinho e o Ibase ganharam vários prêmios e homenagens: o prêmio Governo do Estado RJ, o título de Cidadão Benemérito, a Medalha Araribóia, a Ordem Mérito de Trabalho. Em 1991, recebe da ONU o Prêmio Global 500 e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o Prêmio de Direitos Humanos. Em 1993, é agraciado com o Prêmio Heleno Fragoso. Até que 1994 é indicado pelo então presidente Itamar Franco para o Prêmio Nobel da Paz. Depois de ter recebido tantos prêmios, virou nome de dois: o Prêmio Betinho de Cidadania - concedido pela Ação da Cidadania - e o Betinho Communications Prize, da organização internacional APC - Associação para o Progresso das Comunicações, que reconhece o uso socialmente transformador das tecnologias da comunicação e da informação. A expressão máxima do exemplo que dava e da inspiração que despertava foi resumida na carta que o teólogo e escritor Leonardo Boff escreveu ao Papa. Nela, Boff - também amigo de Betinho - pedia que o sociólogo fosse canonizado.

A hemofilia e a Aids faziam dele um duplo mártir. O fato de ter se exilado por conta da ditadura também contribuiu para chamar a atenção para as ações que conduzia. Betinho foi, aos poucos, tornando-se uma espécie de celebridade. Os expressivos olhos verdes passavam sinceridade e calma ao falar. A fala mobilizava e comovia. As idéias ganhavam força pela sinceridade com que eram transmitidas. A figura dele virou referência nacional para solidariedade. "Esse carisma é fruto da profunda convicção que ele tinha ao defender as coisas", afirma Carlos Afonso. "O raciocínio político dele passava pelo afeto. Era capaz de montar ações políticas a partir de uma experiência do humano. Ele conseguia mobilizar as pessoas, mexendo com o coração delas para tomarem atitudes", define o amigo e dentista João Guerra.

A magreza e a saúde fragilizada, ainda mais depois da descoberta do vírus HIV, contrastavam com a força que ele demonstrava de líder nato. "O mais marcante é como é que uma pessoa na condição dele abriu tantas frentes, foi tão diverso, era uma pessoa tão múltipla", espanta-se Osava. Maria Nakano, a companheira de décadas, diz que ele não se cansava nunca: "Não tinha essa coisa de 'conseguirei e depois acabou'. O exemplo principal era a perseverança, era continuar lutando, não se sentir cansado. Enquanto não conseguisse mobilizar as pessoas, ele estaria disposto. Era constante a atenção, a sua revolta com o que considerava injusto."

Henrique, filho mais novo do sociólogo que tinha apenas 15 anos quando Betinho morreu, lembra do pai como uma pessoa calma, cujo maior exemplo "foi a forte idéia de cidadania, essa coisa de exercer seu papel". E continua: "Sempre que ele era internado, víamos como certo que ele ia se recuperar". Não foi o que aconteceu depois da internação em julho de 1997. Com hepatite C e um fígado já fragilizado pelos anos de 20 comprimidos diários, ele faleceu.

"É meio contraditório dizer isso, mas foi bonito aquele dia. Vários amigos estavam reunidos lá em casa, as pessoas mais próximas. Estava tocando Mozart. Não sei se isso era vontade dele. Eu estava do lado dele. Vinha de um processo desgastante, uma longa internação na Beneficência Portuguesa. Ao mesmo tempo em que a gente sente a dor da perda, de certo modo foi um alívio, pois queríamos que ele não sofresse mais, que ele descansasse", lembra Henrique. Naquele 9 de agosto, o Brasil lamentou, a música brasileira se calou temporariamente, o Flamengo não brilhou e a cerveja gelada teve um gosto diferente.



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad
Ciencia y tecnología | Directorio | Redacción