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6 de agosto de 2002 |
Terroristas
Urariano Mota
Pepe ainda não havia bem acordado de uma bruta farra quando soube dos crimes. Estava de pé, na esquina da Rua do Hospício com a Riachuelo, quando Lígia lhe disse, assim que dele se aproximou:
- Você viu? - Não, o quê? - Cíntia e Vevê foram mortos. A cara deles tá nos jornais. Por pouco ele não cai. Quis apoiar as duas mãos nos ombros de Lígia, mas recuou, como se os seus dedos fossem uma indicação para algum olheiro. Pálido, balbuciou: - Vamos andando. - E numa recuperação lenta: - Mortos, aqui no Recife...os dois? Como foi isso? - E apressando os passos: - Tem certeza? Deve estar havendo algum engano. Vevê é um porra-louca, mas assim... é impossível. Eu não acredito. Há uns cinco dias nós bebemos... Cíntia também? Porra, você viu? A terra se abria, ou melhor, um chão de barco oscilava entre as ondas. Eram nove horas da manhã. Pepe ainda tresandava a batida de limão e a cerveja. Mas a tontura que sentia já não vinha do álcool. "O que é que está acontecendo? Isso é falso. Mortos, tão perto. Eu não acordei. O que é isso? A Riachuelo existe, eu estou vendo. O sol é quente, eu sinto. Mas Lígia, eu nem percebi o que ela tá vestindo. Tudo muito estúpido". - Lígia... como é que isso é verdade? - Eu vi. Toda a cidade viu. É impossível que todos estejam enganados. Passam numa banca de jornais. Pepe sobe das fotos para a manchete, volta às fotos, torna à manchete, procurando o texto, com as imagens do rosto colados na retina: "Terroristas mortos em Camaragibe". Inspira o ar e a poeira que se ergue da rua da União, e vai lendo, por faro, pois que os seus olhos a curto intervalo cortam para ambos os lados, fora da página. Não lê, passa correndo em diagonal as linhas estampadas, até um ponto, que guarda: "dois terroristas conseguiram fugir". Toca no braço de Lígia e saem andando. Sobem a ponte em silêncio, e antes que cheguem à Rua do Sol, Pepe olha lento para os lados, para trás, e desabafa: - Eu sou o próximo. Aquilo, dos dois terroristas que fugiram, é um aviso. Estão querendo justificar mais um crime. - Que é isso, tá louco? Eles já pegaram quem eles queriam. Passou, isso passa. - Nada, eu sei. Foi Délio. Tudo indica que foi Délio. Sentam-se à margem do rio, de frente para o Santa Isabel. Lígia encara o companheiro - ele está com os olhos duros, grandes e ausentes. Pepe via-se como um menino ainda crescendo. "Como é possível, tão cedo?", ele se perguntava. "Então a realidade é isso". O cemitério, a cova rasa, jamais foram sequer uma possibilidade. Ele era um menino, estava crescendo - a vida deveria continuar como o Capibaribe atravessando as pontes, cintilante, inundado de sol. José Pepe sabia, claro, dos riscos de suas convicções, mas o risco era apenas um frisson, uma emoção quente, um torneio de obstáculos a serem vencidos, um perigo superável por engenho e malícia. O risco não era essa bala apontada contra a sua cabeça. Dois terroristas fugiram, ele era um deles, dizia-se, chegara a sua vez. Haveria uma outra saída, mágica, esperta? Haveria talvez uma consideração privilegiada para o indivíduo que ele era, José Pepe? Ele era filho de advogados. Seu pai era emigrado da Espanha de Franco. Inteligentíssimo, bem relacionado, Pepe dizia a si próprio. O velho poderia salvá-lo no último instante. Sim, seria bom, mas... ainda havia tempo? Mais: a que troco viria esse difícil e extraordinário resgate? Perdão concedido ao preço de um contrito mea culpa. Mas ele, Pepe, não era terrorista, era um jovem recém-saído da Escola Técnica Federal, bamba, agilíssimo em desenho técnico. Sim, e de que valia tamanha referência, se Vevê e Cíntia, também não eram terroristas? Na verdade, é preciso que se diga, mesmo nesse instante, o cemitério não se apresentava numa perspectiva clara. Situações de desespero fazem o abismo se apresentar por etapas. A visão larga de sua profundidade é apenas entrevista, para ser de imediato rejeitada com horror, deixando em seu lugar degraus e vales menos fundos. Pepe estava em queda, via-se na vertical, mas não tinha condições de aceitar o baque inevitável. O seu pensamento ia no máximo até a morte, num ponto cuja determinação cercava-se de sombras. Esse ponto eram nuvens escuras sobre o abismo mais fundo, onde ele, ainda Pepe na sua morte, pairava sem a destruição de sua individualidade. Era como se ele pudesse morrer continuando a ser Pepe, inteiro na sua vida íntima, total, apenas em uniforme rijo e imobilizado. Além desse ponto o seu cérebro não ia, e, pintando-se assim, achava que se havia pintado o máximo de desconforto, porque a sepultura, na quadra dos seus 20 anos, era o incômodo do seu ser condenado ao silêncio. A ameaça do abismo mais fundo, abaixo das nuvens escuras, seria o seu cadáver em putrefação, que entrevia como o seu ser apodrecendo. A este equívoco, do cadáver de um homem apodrecendo que continua a ser homem, ele substituía por um equívoco mais tolerável, o do homem embalsamado, estirado como o silencioso Pepe. "Que horror", o seu cérebro recuava. E corria à procura de um happy end, um degrau anterior às nuvens escuras. - Estão dizendo que fugiram dois - Pepe fala. - Um dos terroristas eles querem dizer que é Délio. É tática, pra esconder a infiltração. O outro sou eu. - Você não tem certeza. Calma. Calma, vamos pensar direitinho... - Porra nenhuma. Eles já podem ter invadido a minha casa! Será que você não entende? - Sei, eu sei. Mas pense, só uma coisinha: por que é que eles iam anunciar pelos jornais a tua queda? Se eles tivessem de ir na tua casa, já tinham ido. Essa notícia só pode ter saído depois da arapuca. Não é? A gente tá sabendo hoje o que eles mataram antes. - Mas eles podem estar observando... Não, não é isso. Eles estão é matando. Não é mais hora de observar. Délio tá apagando os rastros. - Você teve contato com esse Délio? - Não. Eu desconfiei, eu fiquei meio assim, com um pé atrás. Vevê chegou com uma história de que o cara tinha armas, umas armas escondidas. Aí eu recuei. - E depois de uma pausa: - O problema é a língua solta de Vevê. Ele pode ter falado meu nome. - Sim, e daí? Você é tão importante assim pra ser morto? - E eles têm critério, porra?! Será que você não entende? - E baixando a voz: - Entenda, entenda bem, Lígia: eu. Eu sei que Délio é infiltração. Quem teve essa informação foi morto. Se ele sabe que Eu tenho essa informação, Eu sou um homem morto. Compreende? Ele está limpando os rastros. Ao acabar de dizer isto, ergueu a mão para alisar os lábios secos. Desconfiado de que o observavam, sentiu os braços desconexos, inarticulados. Olhou-se: estava em camisa de mangas curtas, mas era como se estivesse em camisa de punhos rijos e engomados. - Já passou - Lígia lhe diz, sem muita convicção. O que ela consegue é esboçar um carinho trêmulo, nos dedos que tentam alisar os fios da barba de Pepe. Descobre-lhe os lábios, e isto é uma resposta que não esperava, pelo tom pálido da boca no rosto sem sangue. - Besteira - Pepe afasta de si as mãos de Lígia. - Já devem estar no meu encalço. Vou ter que cair na clandestinidade. - E num silêncio, olhando para os lados, num olhar que vai do rio e se alarga para o Santa Isabel, para o Liceu, e se prolonga pela Rua do Sol: - A tua casa, que é que tu acha? Eu podia ficar uns dias na tua casa. - É ... eu tinha que ver primeiro. - Ver?! É necessário. Não é nem afeto, é a pura necessidade. - Eu sei, claro. Mas eu tenho que falar com os velhos. Sem aviso eu não posso esconder um namorado em casa. - Certo, eu vou e você fala. Vamos. - Calma ... - Você está com medo? Lígia não responde. Fica olhando dura para o rio. Vem uma brisa no ar quente. - É claro que não está - Pepe fala. - Coisa mais natural, deixar um namorado em casa... Vamos. - Os velhos podem não aceitar. - Perfeito. Eu posso me fuder sozinho. Você ainda se diz revolucionária... Porra, fica alimentando as idéias burguesas do teu pai. Numa hora dessas! Lígia não sabe como responder. E por não saber, vai dizendo: - Isso. Tá. Se você tá com peste no couro, você acha que deve espalhar peste por tudo que é canto? - Sei, eu sou um morcego com asa cheia de veneno. - Amor, entenda: se a repressão tá atrás de você, você indo pra casa, vai chamar a repressão pra dentro da minha casa. - Sei. Eu tenho que ficar entregue à minha própria sorte. - Não é isso, entenda ... Tem um pessoal da Igreja... - Eu sou a peste. Lígia tem um movimento de pôr as mãos no rosto de Pepe. - Afasta - ele rosna. - Eu me viro. Eu não preciso dessa frescura. "Eu que pensava que havia amor e solidariedade", ele se diz. - Aqui terminamos. - E a uma inquietação de Lígia: - Esquece. Vá se abrigar no colinho da mamãe. A revolução exige mais têmpera. - Amor, não fala assim. Pepe dá-lhe as costas e sai andando. Primeiro toma a Rua do Sol, na direção dos correios. Súbito volta-se, num giro rápido, e vem para o Liceu. Volta-se mais uma vez e pega um táxi. Entra, senta-se no banco de fibra à mostra, em silêncio. O motorista gira o taxímetro: - Para onde? E para não responder, "para a Lua, para a África, sigamos para a Europa", ou "deixe-me no primeiro lar com abrigo para obuses", para não dizer o inverossímil, responde com o absurdo crível: - Estação rodoviária, por favor. |
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