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La insignia
3 de abril de 2002


Brasil

Hume e o direito à resistência


Dejalma Cremonese (*).


Ainda repercute na opinião pública a ocupação, feita por integrantes do MST, da fazenda "Córrego da Ponte" (1.300 hectares) em Buritis, - MG e da fazenda Santa Maria (5.416 hectares) em Teodoro Sampaio, na região do Pontal do Paranapanema, de propriedade, respectivamente, de FHC e de seu sócio e amigo, Jovelino Mineiro.

Discussões acaloradas marcaram o panorama político e a mídia brasileira, como um todo, na última semana. Políticos dos mais diferentes partidos, articulistas, juristas e demais lideranças procuravam expor os prós e contras do referido ato. Raul Jungmann, ministro do Desenvolvimento Agrário, julgou o acontecimento como "um ato de terrorismo", já o ministro da Justiça Aluysio Nunes Ferreira alegou que a invasão da fazenda de FHC teria objetivos políticos, uma tentativa de atingir o governo Federal, insinuou que a ocupação teve o aval do PT, afirmando que o "MST é um braço do PT". Lula, principal candidato da pseudo-esquerda brasileira, surpreendeu novamente ao afirmar que "o problema é do MST, ele que resolva, nós não temos nada com isso, sou contra a invasão da propriedade do presidente, contra qualquer invasão". Passou a usar a palavra "invasão", típica da direita, ao invés de "ocupação" como há muito se referia.

A questão agrária brasileira continua complexa e conflitante e a concentração fundiária é um problema que o país, ao contrário dos países desenvolvidos, ainda não resolveu... Dados do próprio INCRA demonstram que a terra no Brasil ainda está concentrada nas mãos de poucos: 2% dos grandes proprietários detêm 56% da terra, enquanto que os 98% restantes dividem 44% (INCRA. Atlas fundiário, 1996). Os grandes latifúndios, com 100.000 ha ou mais, estão nas mãos de 75 donos, totalizando uma área de 24.047.669,1 ha. Enquanto isso, os que possuem de 10 a 25 ha são 841.963 proprietários, totalizam apenas 17.578660,6 ha. A área cultivada de 1980 a 1996 diminuiu 2%. Apenas entre 1989 e 1996, cerca de 8 milhões de hectares deixaram de ser cultivados e, nos últimos oito anos, cerca de 920 mil pequenas propriedades rurais foram cortadas do mapa do Brasil. Em decorrência disso, aumentou a violência no campo. Dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra) mostram que houve, de 1980 a 1999, 1.481 assassinatos de líderes rurais, sindicalistas, advogados e padres, em decorrência das disputas pela posse da terra. No entanto, somente 58 dos assassinos foram levados ao Tribunal do Júri; destes, só 11 foram condenados, 8 estão foragidos e apenas 3 estão presos. Desde 1997, a CPT está reclamando do Supremo Tribunal Federal um relatório sobre a situação dos mais de 1.000 processos que estão parados. Até hoje, seis anos depois, prosseguem impunes os que assassinaram os 21 agricultores em Eldorado de Carajás.

Frente ao contínuo descaso dos governos em relação à questão agrária no Brasil e da negligência com que se tratam as questões sociais do país, pergunta-se: é possível haver alguma manifestação de resistência e direito de rebelar-se? São legítimas as posições do MST? Não é preciso recorrer a teóricos socialistas ou mesmo anarquistas para responder tais questões. David Hume (1711-1776), filósofo empirista escocês, em sua obra Ensaios morais, políticos e literários, trata de maneira objetiva a questão da rebelião e da resistência. Para Hume, as origens do governo são normalmente obscuras e, freqüentemente, legitimadas através do uso controle da opinião e na prática da coação através de todo tipo de atos de violência.

Para Hume, a função essencial da Justiça é a promoção da paz entre os homens e a busca pelo interesse coletivo. É obrigação da justiça é servir os interesses da sociedade, mas, se acaso tal execução da justiça implicar conseqüências malévolas para a maioria do povo, ela deverá ser imediatamente suspensa e substituída pela utilidade pública.: "Dado que a obrigação de justiça assenta inteiramente nos interesses da sociedade, os quais exigem a mútua abstinência da propriedade, a fim de preservar a paz entre os homens, é evidente que, se acaso a execução da justiça implicar conseqüências altamente perniciosas, essa virtude deve ser suspensa e substituída pela utilidade pública, nessas emergências extraordinárias e urgentes". Da mesma forma, Hume condena a subordinação irrestrita dos homens em relação à lei, pois a mesma só é válida quando considerar o bem público; caso contrário, o homem tem o direito de rebelar-se e resistir: "A máxima que a justiça seja cumprida mesmo que o universo seja destruído é evidentemente falsa e, sacrificando os fins aos meios, revela uma idéia absurda da subordinação dos deveres".

Penso que a atuação do MST continua sendo não apenas legítima, mas recomendável, não apenas por ser uma referência mundial na organização e na resistência dos povos oprimidos frente aos governos e economias totalitárias, mas por ser uma alternativa social e econômica para milhões de pessoas que almejam terra para plantar e colher. Assim como Hume não apenas admite, mas recomenda a resistência em casos extraordinários, quando o povo não tem mais a quem recorrer e se esgotam todas as alternativas possíveis, pode-se organizar a insurreição: "nos casos desesperados em que o povo encontra-se em perigo iminente de sofrer violência e tirania... Admitindo-se, portanto, a resistência em casos extraordinários...".


(*) Professor do Departamento de Ciências Sociais da UNIJUÍ - RS



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