20 de janeiro de 2008
A receita já havia sido testada em Sacco & Vanzetti (1971): bastava somar o talento de um diretor engajado do cinema político italiano, o brilho de um ator conhecido por interpretar personagens heróicos, o preciosismo de um mestre da trilha sonora, e uma história que simbolizasse a busca do ser humano por justiça. O filme Giordano Bruno (1973), de Giuliano Montaldo, com trilha sonora de Ennio Morricone e Gian Maria Volonté na pele de Giordano Bruno, repetiu a receita e funcionou com perfeição, de novo.
Na intenção de resumir a trajetória de Giordano Bruno, filósofo e político queimado pela Inquisição em 1600, o texto da capa do DVD explica tratar-se da história de um homem à frente do seu tempo. É um pequeno equívoco: não à frente de seu tempo, mas como típico homem de seu tempo, Giordano é um filósofo que se preocupa com as questões concernentes ao infinito, às relações entre espírito e matéria, entre o macro e o microcosmo. Além de filósofo e mago, é também o político que procura o diálogo com príncipes, reis e rainhas com o intuito de dirimir os conflitos surgidos das diferenças religiosas. Não apenas por suas idéias, que eram semelhantes às de outros filósofos naturais do período, mas pela certeza de poder produzir e operar no mundo, Giordano Bruno representou um perigo à Igreja e por isso foi perseguido e eliminado.
Nascido no reino de Nápoles, em 1548, Giordano viveu numa época em que a Igreja Católica se encontrava em crise, e o mundo sofria com os conflitos entre vários grupos religiosos, várias monarquias européias, e entre as Coroas e a Igreja. Obstinado e inflexível (nas palavras dos autos inquisitórios que o condenaram), Giordano defende que o filósofo é dono do próprio destino, e que a virtude nasce do conhecimento e da razão. Embora frei, e docente religioso, não é na teologia que Giordano busca explicações; é na filosofia, e por isso ele se apresenta como filósofo, e por isso ele vaga por tantas religiões, discutindo todas, e argumentando que elas não são terreno seguro e firme para o conhecimento do mundo. Nem mesmo o mundo platônico das idéias é algo além de produto da fantasia e, nessa filosofia não há lugar para um Deus criador, judaico ou cristão.
Giordano está em Veneza em 1592, com aproximadamente 44 anos, após a peregrinatio pela Europa que incluiu passagens pela Suíça, França, Alemanha e Londres, e contatos com protestantes, luteranos e ateus. Veneza é, ao final dos Quinhentos, importante centro comercial e, por isso, tolerante e com ares mais liberais do que o restante da Europa católica: ali, até mesmo a Igreja se mostra condescendente. No filme, o diálogo entre um monsenhor romano e um membro da Igreja de Veneza revela: "Veneza é benevolente com os inimigos da religião. Em 100 anos, 1500 Autos de Fé e somente cinco condenações. Em Roma, em cinco anos, 5000 pessoas mortas". Em Veneza a convite de um rico comerciante, Mocenigo, Giordano expressa a esperança que a eleição do papa Clemente VIII possa permitir um retorno seu ao centro da Igreja, em Roma. Depois, Mocenigo será peça fundamental da acusação do Santo Ofício de Veneza, e Giordano efetivamente retornará a Roma: não por mérito, mas para julgamento e execução.
À sua chegada em Veneza, Giordano comparece a uma festa promovida pela amante de Morosino, importante figura política local. Tido como praticante da magia natural, ele explica à mulher que essa é a magia com a qual todas as crianças nascem e que é destruída pelo tempo, "quando começam a rezar". Diz Giordano que se deve "aprender a respirar para redescobrir que as árvores, as pedras, os animais e toda a máquina da Terra têm uma respiração interior, como nós. Têm ossos, veias, carne, como nós". Giordano Bruno procura explicar a magia natural que permite o contato com a respiração cósmica, e que simboliza a alma do mundo em que se baseia sua cosmologia infinitista, magia natural cuja prática é uma entre as oito proposições que acabam por condená-lo à fogueira.
Distinta da magia negra, é a magia natural que tingiu a Renascença com tons mágicos e herméticos, e que procurava entrar em contato com as forças mais elevadas do cosmos. Fruto direto da lenda, essa magia tinha como base o formidável erro histórico envolvendo o Corpus hermeticum, conjunto de obras atribuídas a Hermes Trismegisto, e que se suponha fossem anteriores aos pensadores gregos, embora tivessem sido escritas nos primeiros três séculos depois de Cristo. Estes textos, supostamente exemplares da sabedoria egípcia, haviam se incorporado ao arsenal renascentista após a anuência de autoridades de grande importância (como Agostinho) e, como fontes da prisca theologia, permeariam a filosofia natural de magia e ocultismo. O rico tecido formado pelas ligações entre hermetismo, neoplatonismo e a cabala (tanto cristã quanto judaica) serviria de pano de fundo para a magia natural que supunha poder operar sobre os fenômenos da natureza, percebendo-a não apenas como matéria contínua e homogênea que enche o espaço, mas como uma realidade total dotada de alma. Através de conexões de simpatias ocultas, cada objeto do mundo está ligado ao todo: imerso em pensamento mágico (embora racional e crítico), Giordano Bruno é um mago, da mesma forma como acreditava terem sido Cristo, os Apóstolos e Profetas. Ao longo do filme, são mostradas as conexões que forjariam o modo de pensar tão particular de Giordano e que podem ser estudadas, mais detalhadamente, no belíssimo trabalho da historiadora da ciência Frances Yates, um marco da própria historiografia da ciência. Ao investigar as influências neoplatônicas e hermético-cabalísticas de Giordano, Yates explora a forma bruniana de pensar o Universo e o Homem, concepção essa que, para Alexandre Koyré, é vitalista e mágica, mas "tão pujante e tão profética, tão razoável e tão poética que não podemos deixar de admirar ambos - sua concepção e ele próprio". Exemplar, Giordano foi o típico homem do seu tempo tentando se desvencilhar das amarras do seu próprio tempo.
Giordano Bruno revela com maestria aquilo que a análise detalhada das obras de Giordano nos confirma: bebendo de várias fontes, Giordano enfrentou as dificuldades dos filósofos naturais dos Quinhentos (e de outros, posteriores, dos Seiscentos) em responder às inúmeras questões sobre o conhecimento do ser humano e da natureza, e do movimento da Terra. Copérnico havia dado o primeiro passo (o de mover a Terra e deter a esfera das estrelas fixas) mas, ainda apegado à astronomia medieval, aumentara o mundo sem torná-lo infinito: preferira torná-lo immensum, incomensurável. Embora a historiografia da ciência apresente Thomas Digges como um dos primeiros a inovar e incluir o conceito de infinitude, é Giordano Bruno quem primeiro nos apresenta a idéia de universo descentralizado e infinito. Nesse mundo infinito, não faz o menor sentido falar em centro, da mesma forma que não faz sentido negar a existência de outros mundos através do espaço, mundos de astros-sóis espalhados pelo oceano etéreo do céu. Giordano não apenas afirmou ser impossível atribuir limites ao mundo, mas defendeu - de forma pública e sistemática - que o universo era infinito, já que Deus (o Deus de Bruno, de ilimitada e inimaginável ação criativa) não poderia ter feito de outro modo. Essa infinitude - jamais compreendida pela percepção sensorial, embora para o intelecto ela fosse o mais seguro dos conceitos -, só não seria maior do que a infinitude de Deus, condição necessária para criar um mundo infinito.
Aos populares e pessoas simples do povo, Giordano explica o que é nuclear no seu pensamento e uma constante nos seus estudos: as artes da memória e da combinação, a ars memoriae e a ars lulliana. "Leite, vaca, grama, prado, chuva, nuvens, céu, astros, Universo. E Deus, se assim quiserem". A natureza é "uma imagem viva de Deus, se assim quiserem, e os padres não têm nada com isso". Giordano, dessa forma, traduz as associações e correspondências entre o mundo animal, vegetal e humano. O conhecimento humano, aqui, é derivado de um sistema mnemônico-combinatório, onde a dinâmica da estrutura simbólica explica a própria natureza, ao mesmo tempo em que com ela interage. Giordano pratica a habilidade discursiva, evoluindo do princípio vital do mundo para o de todos e dos indivíduos. Bruno entende que, no inferno, encontram-se as águas de duas fontes: a de Mnemosýe, da memória, e de Lethe, do esquecimento. Os mortos bebem das duas, ou para esquecer os fatos de quando eram vivos, ou para esquecer do mundo dos mortos ao retornarem as almas para a vida: é sobre a transmigração da alma que ele está pensando, o que posteriormente também será objeto de acusação inquisitorial.
Mocenigo quer aprender a arte da profecia, e Giordano explica a diferença entre a magia natural e a magia negra, "coisa de charlatões". Bruno pratica a magia natural, e não a bruxaria. Ao ensinar a arte da memória, ele pretende transmitir uma forma rápida de conhecer o mundo, oferecendo instrumentos para nele operar. Se o homem é a imagem do universo em miniatura, é através da imaginação e da memória que se podem atingir as verdades ocultas do universo, e não há bruxaria alguma nisso. Não à toa, o filme mostra Giordano manipulando cartas semelhantes ao Tarot de Marselha. Afinal, o Tarot é também parte da arte mnemônica e Giordano, como outros filósofos naturais interessados na construção de sistemas lógicos e simbólicos, acabaria por desenhar o seu próprio jogo de cartas, composto por 67 figuras e 48 imagens arquetípicas do Zodiáco e de demônios decanos. Giordano só pode ensinar a arte da memória: Mocenigo se revolta, e denuncia Bruno à Igreja de Veneza que, em função da pressão de Roma, para lá o envia.
Giordano Bruno reproduz o período de inquisição do filósofo: são mais de sete anos em cárcere privado, com interrogatórios constantes e torturas. O Santo Ofício está dividido, e nem todos estão de acordo com a punição a Giordano. Ao final, prevalece a ala mais conservadora: Giordano é condenado por escrever contra o Papa e a Igreja, colocar em dúvida a virgindade de Maria, negar a transubstanciação da carne, afirmar que Cristo era apenas um mago, defender a existência de mundos inúmeros e eternos, afirmar que a Terra gira em torno do Sol, crer na reencarnação e não no inferno, e defender a magia como prática lícita. Incapaz de assumir a ordem de execução, o Santo Ofício transfere a responsabilidade para o braço secular de Roma. Afinal, "a Igreja não permite derramamento de sangue".
O Santo Ofício lhe oferece a vida em troca de uma retratação pública. Giordano já abjurara em Veneza, na esperança de poder continuar escrevendo e transitando livremente. Em Roma, porém, abjurar significa enterrar-se vivo. Ele rejeita a concessão. "Não devo crer que deva desprezar a vida. Ou que não tenha medo. Contra a loucura do sangue e da morte, a natureza grita em voz alta que a matéria e Formas não devem temer a morte, por que matéria e Formas são princípios constantes. A eternidade do Todo compreende o Universo. E é tudo e de todos. Em todos os lugares e pontos. E eu amo a vida". Sua morte não encerra uma existência anacrônica. Não por estar adiante do seu tempo, mas por pertencer a ele, Giordano é amordaçado, e queimado vivo.