19 de setembro de 2007
Também nas línguas há injustiça. As palavras são como os seres humanos: nem todas têm os mesmos direitos e deveres. Algumas morrem e são esquecidas; outras sobrevivem, por séculos, na sua sonoridade e significado, intactas ou no corpo de outras palavras. Ao lado dos vocábulos conhecidos e usados apenas pelos membros de uma família, há os que, com algumas variações fonéticas e gráficas, pertencem a quase toda a humanidade, como os italianismos espresso, pizza, spaghetti, allegro, mafia.
Parece até que as línguas e suas palavras possuem vida autônoma quanto aos falantes. Alguns seres humanos temem até mesmo usar certos termos, pois ao pronunciá-los poderiam materializar a realidade que nomeiam -é o caso de demônio, morte, câncer. Muitos vocábulos têm um forte poder performativo: em determinadas situações, dizer é fazer. Assim funcionam a injúria, o agradecimento, as palavras de amor.
São os seres humanos que criam as palavras. Ao interagir entre eles e com a natureza, na sua compreensão do mundo social e natural, nas suas criações estéticas, inventam palavras novas e reutilizam as existentes, mudando ou não seus aspectos fônicos e significados. A sorte de certas palavras depende de como os setores sociais que as forjaram intervêm nas dinâmicas sociais, produtivas e ideológicas.
Há palavras que, ao internacionalizarem-se e circular em todas as bocas, ampliam tanto o seu quadro de referência que pouco têm a ver com a realidade que as produziu. Não raro, são nomes de produtos que, vendidos mundialmente, constituem fonte segura de lucros. Do mundo da moda ao das artes, dos alimentos às armas, desde o nascimento do protocapitalismo, um número crescente de bens circula em nível planetário com suas respectivas denominações -café, violino, baioneta, risoto etc.
No mondo dos alimentos, os referentes das palavras se conservam melhor quando se trata de bens de setores sociais com meios para "protegê-los". Ninguém pode vender um vinho qualquer e chamá-lo Champagne ou Barolo. Ou comercializar um Camembert ou um Parmigiano sem que as denominações se refiram a queijos produzidos em zonas geográficas específicas, com métodos particulares e rígido controle de qualidade. O mesmo não acontece com alimentos nascidos para esfomear as camadas populares e que sucessos históricos, como os fluxos migratórios, espalham e tornam famosos no mundo.
A palavra pizza é um bom exemplo desse fenômeno, já que tem como referente uma experiência histórica e práticas culturais muito precisas. Segundo os especialistas, a cadeia sonora pizza poderia derivar do latim pinsa, do verbo pinsere -"achatar", "aplainar"-, do turco ou do árabe pita, que significa pão aplainado, ou também do germânico bizzo, "pedaço". É certo que tem a ver com o termo picea, já usado em Nápoles no ano 1000.
Para alguns, é no ano 1000, para outros, em 1600, que esse produto nasceu, em Nápoles, quando bolachas de pão temperadas eram vendidas por ambulantes. As palavras pizza e picea referiam-se sempre a um prato pobre e simples, preparado com ingredientes baratos: a farinha, o sal, a banha e, a seguir, o azeite de oliva, as ervas aromáticas, o queijo e, mais tarde, o tomate.
A seguir, a palavra adquiriu dimensão universal, divido à dispersão de milhões de italianos no mundo e às suas características de comida relativamente fácil de preparar, nutritiva e gostosa. Apesar das inevitáveis transformações que sofreu, sua difusão permitiu que se propagasse também um modo de ser e de fazer próprio das camadas populares urbanizadas das costas da Campânia, ainda ligadas aos produtos da agricultura, do pastoreio e da pesca. Comer uma pizza era e é também viver uma cultura.
Em cidade do norte do Rio Grande, segui o conselho de duas colegas lingüistas e me aventurei em pizzaria inaugurada havia semanas, ao estilo rodízio, usado por churrascarias que oferecem variados tipos de carnes. O aspecto acolhedor e o pequeno grupo de pessoas que, com uma senha à mão, aguardavam uma mesa, eram augúrio favorável. Não desanimei sequer com o plástico do copo de cachaça - a excelente aguardente brasileira -, com a qual os clientes aliviavam a espera.
Apenas me sentei, um garçom assaltou-me com uma pizza com corações de galinha. Gosto de corações de galinha, no churrasco. Mas na pizza, não dá! Resolvi esperar a próxima rodada: pizza com strogonoff e batata palha, seguidas por pizzas ao milho, ervilhas, brócolis e catupiry, à portuguesa, à mexicana etc. Minhas esperanças renasceram com o anúncio de uma conhecida: pizza "ao peperoni". Não havia, porém, pimentões na pizza. O nome se devia à presença de salame picante, pois, segundo o garçom, paperoni seria "picante", em italiano!
Após tantos outros sabores, servidos em ritmo acelerado, em intervalos de minutos, que apenas experimentei, pedi timidamente uma margherita. Sem delongas, chegou ao meu prato uma fatia dessa pizza histórica, que procurei saborear com cuidado: senti sobretudo a massa, com gosto de pão de forma, da qual não emergia o sabor do tomate e da mussarela. Do manjericão, nem notícias! Mas juraram que os ingredientes estavam presentes! Tentei então uma simples pizza marinara, no Brasil chamada de "alho e óleo", que não consegui comer. Cortado aos pedações, o alho estava cru!
Ao final, um pouco por desespero, um pouco enquanto amante da pizza e da cozinha em geral, mas sobretudo porque não consigo resistir à tentação, abandonei-me às pizzas doces: aos morangos, chocolate, doce de leite, sorvete... nenhuma me desagradou. Aliás, gostei de todas. Mas não eram pizzas.
Nessa aventura gastronômica, impressionou-me também a visita à cozinha e a rápida conversa com montadora chefe, isto é, a coordenadora do trabalho em série de guarnição das bases de massa pré-cozida. Não se tratava de cozinha, mas de pequena fábrica, que desenfornava por noite centenas desses produtos homogeneizados na sua aparente variedade. Instalações a anos luzes do banco de mármore onde, nas boas pizzarias do mundo e do Brasil, pedaços de massa descansada e fermentada são estendidos, à mão, rolo ou máquina; os discos são cobertos com poucos ingredientes frescos e selecionados e as pizzas são cozidas em fornos à lenha, em alta temperatura, sob os olhos e o nariz do cliente, que pode pré-saborear suas cores e cheiros.
O atual processo de mercantilização abandona a simplicidade e o refinamento do produto artesanal, em favor de mercadoria produzida incessantemente, abusivamente chamada de pizza. E nos rodízios, através da angustiante apresentação ininterrupta de discos de pão com coberturas diversas, consumidos por consumir, engolidos por engolir, tenta-se suprir a falta dos ingredientes e processos tradicionais. O azeite de oliva extravirgem, a mussarela fresca de qualidade, os tomates pelados pouco ácidos, os temperos específicos. A massa deixada descansar longamente para que fique mais leve e digestiva. O cozimento rápido em forno a lenha sob as ordens do pizzaiolo, gestor de todas os momentos do rico concerto.
Muitas vezes nocivos à saúde, esses procedimentos característicos do império do lucro, destroem o prazer estético e gastronômico permitido pela produção e consumo da cozinha bem preparada, além de subtrair ao comensal a possibilidade de se aproximar da experiência histórico-cultural na qual os pratos criaram-se. No presente caso, trata-se de falta de respeito aos pizzaioli que, do Seiscentos aos nossos dias, inventam e aperfeiçoam esse prato popular, garantindo ao vocábulo a fama que merece em escala planetária.