9 de setembro de 2007
Há pouco, ao tentar escrever estas linhas, eu não sabia por onde começar. Confesso que ainda não sei agora, aqui, nesta altura. São idéias distintas que vêm ao encontro deste ponto. Elas vêm desordenadas, todas a clamar e a reclamar sua urgência. Acompanhem por favor a encruzilhada em que me encontro.
O livro "Direito à memória e à verdade" é um livro grande, com 500 páginas, nas dimensões de 23 x 30 centímetros. É um livro incômodo, que não pode ser conduzido como uma novela para leitura em uma viagem, já se vê. Por suas dimensões físicas, é um livro que somente comporta ser conduzido como um escudo, como um símbolo de orgulho, para ser ostentado nas praças e nos coletivos. Isso porque todos perguntarão, ao nos verem com ele: que livro estranho e grande é esse que tão estranho sujeito conduz? Daí que somos levados à sua leitura em um canto, posto em sossego, com um minuto de silêncio, com vários minutos de silêncio, daquele silêncio que guardamos no espírito, porque sendo imune aos ruídos exteriores caminha sobre águas da maior tempestade. Acompanhem este passo, por favor. Divido com vocês o começo da Apresentação do livro:
"Este livro-relatório tem como objetivo contribuir para que o Brasil avance na consolidação do respeito aos Direitos Humanos, sem medo de conhecer a sua história recente. A violência, que ainda hoje assusta o País como ameaça ao impulso de crescimento e de inclusão social em curso, deita raízes em nosso passado escravista e paga tributo às duas ditaduras do século 20.
Jogar luz no período de sombras e abrir todas as informações sobre violações de Direitos Humanos ocorridas no último ciclo ditatorial são imperativos urgentes de uma nação que reivindica, com legitimidade, novo status no cenário internacional e nos mecanismos dirigentes da ONU.
Ao registrar para os anais da história e divulgar o trabalho realizado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos ao longo de 11 anos, esta publicação representa novo passo numa caminhada de quatro décadas".
"Direito à memória e à verdade"é um livro maior ainda por outros motivos. Coisa jamais vista no Brasil, e muito rara em todo o mundo, esse livro pode gerar uma crise militar em um governo eleito e legitimado pela maioria do povo. Para ser mais preciso, ele já deu causa a uma crise militar. O Comandante do Exército general Enzo Martins Peri, um oficial formado nos anos da Guerra Fria, como todo o alto comando de generais quatro estrelas, divulgou a seguinte nota oficial dois dias depois do livro vir a público:
"1. Reuni o Alto-Comando do Exército, em Brasília, no dia 31 de agosto de 2007, para tratar de assuntos de interesse da Força e de fatos recentemente divulgados pela mídia. Com a sua concordância unânime, decidi reafirmar que:
- o Exército Brasileiro, voltado para suas missões constitucionais, conquistou os mais elevados índices de confiança e de credibilidade junto ao povo brasileiro:
- os Comandantes, em todos os níveis, ensinam, diuturnamente, em nossos quartéis, os valores da hierarquia, da disciplina e da lealdade, os quais têm sido cultuados como orientadores da ação permanente da Força;
- a Lei da Anistia, por ser parâmetro de conciliação, produziu a indispensável concórdia de toda a sociedade, até porque fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus protagonistas. Colocá-la em questão importa em retrocesso à paz e à harmonia nacionais, já alcançadas.
2. Reitero aos meus comandados que:
- não há Exércitos distintos. Ao longo da História, temos sido sempre o mesmo Exército de Caxias, referência em termos de ética e de moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade brasileira;
- estamos voltados para o futuro e seguimos trabalhando, incansavelmente, pela construção de um Brasil mais justo, mais fraterno e mais próspero."
Afora o lapso da nota, que considera o voltar à paz uma coisa ruim, negativa, e essa não deve ter sido a intenção do Comandante; afora a visão que julga ser o Exército uma instituição avessa às transformações da história, pelo menos no período de Caxias a 2007, importa mais destacar o que originou esse comunicado. Poderia ser dito que ele não se refere bem ao livro, mas às circunstâncias que cercam e cercaram o seu lançamento. Ou seja, ele se refere à solenidade oficial, com discursos do Presidente e do Ministro da Defesa, que em uma manifestação clara de autoridade avisou que protestos individuais receberiam uma resposta à altura. Mas o que isso quer dizer, afinal? Que o Exército pode fingir que nada houve no Brasil da ditadura, se um livro sobre esse período for lançado em silêncio? Ou, não sejamos despóticos, concedamos o contraditório: isso quer dizer que os comandos militares suportam, no limite da paciência e da disciplina, tudo o que os ex-terroristas escreverem sobre os crimes conforme a própria versão criminosa, mas com a condição de se portarem como subversivos regenerados, sem apoio oficial?
Ah, bom, é isso, é isto: viveríamos então em uma democracia sob tutela, onde os comandos fingem que não têm poder político, como se fossem pais benevolentes. As crianças, os meninos são o poder civil, a República, o Presidente, os Ministros, o Congresso, a Justiça, as instituições de arremedo, de papel. Mas atenção, cuidado: o chicote e os ferros estão guardados, escória. Cuidado, não acordem estas feras. "Não estamos mortos. Mortos foram os seus", querem dizer. Isto é: o livro e sua repercussão indicam um sintoma dos limites da democracia que vivemos no Brasil. O acordo pelo alto, da concessão da Anistia, sem repercussão criminal para o terror de Estado pode ser tolerado. Mas não digam jamais que são criminosos quem torturou e assassinou cidadãos desarmados. Não cobrem punição para os terroristas pagos com o dinheiro público, porque, afinal, "todos fomos anistiados: os terroristas - vocês - e os patriotas, nós, os servidores da ordem". Se essa anistia for modificada, ah, o céu vem abaixo. E não só de quatro estrelas.
Mas, se perdoam a digressão acima, o que mesmo exibe e informa a provocação, essa provocação rara e emocionante chamada "Direito à memória e à liberdade"?
De um ponto de vista frio, e aqui fala um narrador que viu um homem a se concentrar sobre suas páginas, este é um livro que não se lê sem um estremecimento. É impossível percorrê-lo sem estremecimentos. O livro é como uma recondução a um mundo que se rebela contra a mediocridade, contra tudo o que for mesquinho e pequeno. Aquele homem que eu vi caminhava as suas páginas como o leitor de Crime e Castigo no ponto alto do assassinato das velhas usurárias. As suas mãos tremiam, eu vi. Ele não me disse, mas o seu movimento insinuava que ele estava possuído de um frêmito de alma, porque ali, naquelas páginas amarelas, quem lê suas letras lê o destino de homens, quem lê aquelas linhas lê a luta de uma geração. E, coisa mais interessante, este é um livro sem autor. Melhor, é um livro de autores, de muitos autores, um registro de vidas reunidas como em uma coleção de prontuários de polícia. Os seus perfis saem das páginas dos processos, e poucas vezes se viram processos tão antiprocessos. São homens e mulheres, são jovens e quase-crianças, são velhos, malditos e amaldiçoados pela dor na consciência. São renegados que se matam. São homens tornados seres desequilibrados, são gente, enfim, em condições-limite.
"Maria Auxiliadora Lara Barcellos (1945-1976)
Maria das Dores atirou-se nos trilhos de um trem na estação de metrô Charlottenburg, em Berlim... tinha sido presa 7 anos antes, Nunca mais conseguiu se recuperar plenamente das profundas marcas psíquicas deixadas pelas sevícias e violências de todo tipo a que foi submetida. Durante o exílio registrou num texto... 'Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, de grito no escuro'....
Nilda Carvalho Cunha (1954-1971)
Sua prisão é confirmada no relatório da Operação Pajuçara, desencadeada para capturar ou eliminar Lamarca e seu grupo. Foi liberada no início de novembro, profundamente debilitada em conseqüência das torturas sofridas e morreu no dia 14 de novembro, com sintomas de cegueira e asfixia. Nilda tinha acabado de completar 17 anos quando foi presa... 'Você já ouviu falar de Fleury? Nilda empalideceu, perdia o controle diante daquele homem corpuloso. - Olha, minha filha, você vai cantar na minha mão, porque passarinhos mais velhos já cantaram. - Mas eu não sei quem é o senhor. - Eu matei Marighella. Vou acabar com essa sua beleza- e alisava o rosto dela....
Odijas Carvalho de Souza (1945-1971)
Odijas foi levado para o Hospital da Polícia Militar de Pernambuco em estado de coma, morrendo dois dias depois, aos 25 anos... 'No dia 30 de janeiro de 1971 fui acordado cedo por uma grande movimentação. Por volta das 7 horas, Odijas passou diante da cela, conduzido por policiais. Apesar da existência da porta de madeira isolando a sala do corredor, chegaram até nós os gritos de Odijas, os ruídos das pancadas e das perguntas cada vez mais histéricas dos torturadores. Durante esse período, Odijas foi trazido algumas vezes até o banheiro, colocado sob o chuveiro para em seguida retornar ao suplício. Em uma dessas vezes ele chegou até a minha cela e pediu-me uma calça emprestada, porque a parte posterior de suas coxas estava em carne viva. Os torturadores animalizados se excitavam ainda mais, redobrando os golpes exatamente ali".
Como vêem, difícil é manter a serenidade, a frieza, um ar apolíneo, razoável, sensato, diante desse mundo que se encontra submerso, mas jamais superado, morto, vencido. Eu, que não sabia como começar, confesso que também não sei como pôr fim a estas linhas. Eu havia escrito antes notas, reflexões, coisas digamos mais sociológicas, dignas de tese, que iludem toda a gente, que pode nos tomar como um ser culto, inteligente, sábio, espirituoso. Basta de falsidade, porque
" - Teu nome completo é Mário Alves de Souza Vieira?
- Vocês já sabem.
- Você é o secretário-geral do comitê central do PCBR?
- Vocês já sabem.
- Será que você vai dar uma de herói? ...
Horas de espancamentos com cassetetes de borracha, pau-de-arara, choques elétricos, afogamentos. Mário recusou dar a mínima informação e, naquela vivência da agonia, ainda extravasou o temperamento através de respostas desafiadoras e sarcásticas. Impotentes para quebrar a vontade de um homem de físico débil, os algozes o empalaram usando um cassetete de madeira com estrias de aço. A perfuração dos intestinos e, provavelmente, da úlcera duodenal, que suportava há anos, deve ter provocado hemorragia interna".
É terrível que a importância de um livro, que a importância da palavra escrita, se dê em relatos tão cruéis. Mas a realidade não se escolhe. Quem toca nesse livro, toca em destinos.