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28 de outubro de 2007

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Cultura

Tropa de elite, o encanto da tortura


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, outubro de 2007.

 

Se perguntarem a José Padilha, o diretor de Tropa de Elite, se o seu filme é fascista, a depender da ocasião e circunstância, ele pode sorrir. E dirá, como já disse:

"Dizer que Tropa de Elite é fascista ou de direita é provinciano, uma bobagem. É uma tentativa moralista, simplificadora, de tentar lidar com uma realidade com conceitos muito pequenos. Quer dizer que filmar bem não pode, só pode filmar mal? Não pode iluminar bem uma cena? Não pode ter um tom bom, ter efeito especial? Só os cinemas americano e europeu podem fazer isso? Essa relação que as pessoas fazem entre a qualidade, o estilo do filme e uma mensagem moralista qualquer por trás dele, é uma besteira... Não se pode filmar bem no Brasil uma cena violenta, senão se está glorificando a violência. Tem que ser meio bom?".

Ora. Com expressa atenção a nossa insignificância, reconhecemos que Tropa de elite é um fenômeno hoje em toda a sociedade brasileira. Fenômeno de vendas, a partir já da distribuição em cópias pirata, fenômeno cultural, se por cultura (o cacófato vem a calhar, porcul, porco), se por cultura entendemos manifestações de comportamento. Fenômeno de mídia, fenômeno fenomenal, um fenômeno enfim. O diretor do filme está no Olimpo da hora. Ele recebe propostas milionárias, para transformar o filme em seriado, de todas as redes de televisão. Ele é o cara. Ele está o cara, queremos dizer. Mas nem isso lhe dá o direito de passar como um trator por cima de coisas mais elementares, civilizadoras, do pensamento. Por exemplo, não se confundem moral e moralismo. Para pegar um clássico, diremos que moral é terreno de Molière. Moralismo é terreno do personagem avarento. Quem afirma que Tropa de Elite é um filme que serve à direita, faz um julgamento moral. Quem fala que seu diretor é um cínico, ainda aqui faz um julgamento moral, certo ou errado, mas moral. Moralismo está no terreno mais próximo da hipocrisia, no terreno do imoral, em resumo.

Filmar bem, pode, sem dúvida. É claro que não temos a santa ingenuidade de crer que o senhor diretor, ao dizer "filmar bem", pensa no cinema de Glauber Rocha. Longe de nós tamanha heresia. Aquelas tomadas, aquelas visões à beira do delírio, aquela fotografia, aqueles ângulos, aquela música, aquele Antonio das Mortes que fazia Buñuel saltar do seu assento, não. Filmar bem, entendemos, quer dizer filmar com técnica, com qualidade técnica, com recursos de estúdio avançado em tecnologia, com orçamentos de 5 milhões de dólares para começar. Isto é o filmar bem da sua declaração. É claro que filmar a violência, filmar bem a violência, pode. Isto não é fascismo, senhor diretor. A visão ideológica vai no conjunto que liga as suas imagens.

Um indivíduo esquemático, desses maniqueístas, diria que há dois pontos de vista de filmar o governo Bush: um contra, outro a favor. Um sujeito ponderado, maduro, diria que há muitos pontos de vista de filmar Bush, mas sempre contra o seu governo. Se formos além do governo Bush, e isto, senhor diretor, não é bem sair desta vida para outra no descanso eterno, diremos que toda realidade se oferece ao artista com a sedução de infinitas abordagens. O mundo não é único, nem chapado, nem planície, nem planalto. Todos têm direito, diria até, se estivesse em uma tribuna, todos têm o sagrado e inalienável direito de expor e de realizar todo e qualquer ponto de vista. Até mesmo o de um torturador. Até mesmo agentes que barbarizam toda a gente têm o direito de apresentar a sua moral, a sua vida, a sua história. Mas não se espere, somente por isso, que o carrasco de milhares de pessoas no forno seja glorificado por tão alta e humana função. Se o diretor entende, entre narrar e glorificar vai uma pequena distância. Tão pequena quanto brutal.

Quando perguntam ao senhor diretor, o que acha do personagem capitão Nascimento estar sendo considerado um herói pela maioria do público, o senhor diretor, no Olimpo do sucesso, responde:

"É preciso fazer um grande esforço para interpretar o filme tão errado assim. Quem é o capitão Nascimento no filme? É um sujeito que dedicou sua vida à tropa de elite. Passou sua vida justificando para si mesmo a violência que perpetra nas favelas. Ele está vendo que a dedicação que teve foi equivocada e não se sustenta numa sociedade civilizada. O filme mostra isso, apresentando o personagem com síndrome de pânico, que não consegue sustentar a realidade na qual apostou ou conciliar uma vida em família com a mulher e o filho, é um personagem angustiado".

Quando assim responde, o diretor José Padilha é infeliz e não sabe, porque a sua boa intenção não acompanha o capitão Nascimento como um rabo, como um cartaz pregado às costas, no filme. O conflito entre vida pública e vida privada, o conflito que há entre o indivíduo que tortura... vagabundos, putas, viciados, traficantes, que tortura, enfim, e a terna vida doméstica de pai amantíssimo da sua cria, esse conflito o filme torna um sem-conflito, e, pior, um médico e o monstro mecânico. Justapõe. O diretor deveria tomar umas aulas com alguns cineastas hermanos que retrataram vida familiar e policial em filmes sobre a ditadura argentina. O diretor deveria investigar a vida de homens exemplares de tropas de elite para sentir que o conflito não se resolve pela justaposição. O carinho e a ternura, que nem sempre são o oposto da brutalidade e do crime, sobrevivem em um educado torturador até o ponto em que não explode uma guerra no lar. E dizer isto não é ser maniqueu, senhor diretor. O maniqueu, creia, está mais no lado a lado de um pai amoroso e de um cruel perseguidor de bandido, como se fossem dois seres que não se comunicam.

É natural, diria, é "natural", portanto, que o público veja no Capitão Nascimento um novo herói. Ele é o cara "sangue bom", ele é o cara do bem, porque possui família linda, classe média, ele é um esposo que depois de um dia de sangue e tiros acaricia o ventre da mulher que dorme, ele é o cara que ouve as palpitações do filho no meio da selva da favela, que interrompe uma caçada contra humanos para comemorar, aos gritos, "meu filho nasceu !", ele é um homem que tortura e humilha comandados, mas por uma boa causa, porque, afinal, busca um substituto para um câmbio de vida. Alô, alô, George W. Bush, você precisa de um cinema assim para os soldados no Iraque. Este é o gênero ideal de filme para a propaganda de guerra no Iraque.

Casa Branca, acorde, porque Rambo e os boinas verdes recebem uma transformação no Rio de Janeiro. São os boinas negras do BOPE, o Batalhão de Operações Policiais Especiais. E tudo ao som de bailes funk, de batidas hipnóticas de bateria, com insinuação de sexo, é claro, porque é da natureza da night na periferia, é claro, mas que logo, logo se transforma na última moda de pornografia, na violência de tiros de arma pesada. Não sei se já foi notado que a violência bárbara é a última e excitante pornografia. E se isso vem com imagens de carros novíssimos, que lembram sapatos de verniz brilhante, e supense, e thriller, fuck, gente, fuck, este é o filme do momento. Um filme sobre bandidos, que deixaram de ser os pobres coitados de uma idealização cristã, um filme sobre bandidos, mas de um ponto de vista de um oficial da polícia. Salve, salve, redenção, ninguém agüenta mais... tanta violência. E por isso, a platéia delira. Pois é claro, se formicidas acabam com formigas, por que homicidas não acabam com o mal?

E aqui entramos em uma discussão mais elementar, mas que não é pequena. O diretor José Padilha, em mais de uma oportunidade, declarou que fez um filme a partir de um ponto de vista de um policial. Como intenção, isto é louvável, sem dúvida. Policiais são gente, são humanos, são trabalhadores, são pessoas. Em mais de uma oportunidade, ainda, afirmou que procurou expor os dramas de um homem de ação da polícia, e, eufemismo que dói, mas que ele, o diretor, disso não recua, por ação se entenda a prática de tortura. Ressalve-se que ele próprio, o cidadão e cineasta Padilha, não justifica esse crime. O problema é que das duas, uma: ou ele é um artista de extraordinária incompetência, ou ele mente. Em nome da sua honestidade, digamos então que ele é só incompetente. O elementar talvez ele não saiba, até porque em mais de uma entrevista se percebe o grau deprimente de sua ausência de leituras. (O que não é bem uma novidade, nisso ele não é uma ave rara entre os novos cineastas. Com honrosas exceções, trata-se de pessoas iletradas.) Se ele bem entende, embora até aqui não haja percebido, há um abismo entre o ponto de vista de um personagem e o ponto de vista da obra. Um torturador - como personagem - pode narrar na primeira pessoa, em qualquer gênero. Mas triste e mal realizada e infeliz é a obra que se contamina dessa pessoa. Quando o público nos estádios de futebol, numa espontânea manifestação que deixou José Padilha emocionado, quando a torcida no Maracanã dá um grito de guerra que veio de Tropa de Elite, o público apenas apreendeu o realizado em seu filme, a saber: o Capitão Nascimento é um herói, é bom torturar, é justo e ético mandar crânios de bandidos para o inferno. No mínimo, é maneiro asfixiar bandidos até o sangue estourar no saco plástico.

- Fala, filho da puta! Toma, toma... Fala!

Crianças em todo o Brasil já repetem a nova brincadeira de torturar com sacos plásticos. Em que mundo vive o diretor de cinema? Talvez em http://www.tropadeeliteofilme.com.br/

 

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