25 de novembro de 2007
Se quiséssemos eleger alguém que correspondesse às características de um "homem do Renascimento" , um Leonardo da Vinci contemporâneo, o mais certo seria a escolha recair sobre duas figuras portentosas do universo das Artes Plásticas: Pablo Picasso e Robert Rauschenberg. De Picasso já se disse tudo mas de Rauschenberg, com os seus oitenta e muitos anos bem vividos, pouco se fala, o que é uma injustiça uma vez que ele é o paradigma do nosso tempo, o artista completo com capacidades infindáveis, uma curiosidade permanente, um sentido estético invulgar e um humanista convicto. O já falecido crítico de arte Walter Hopps, no catálogo da grande retrospectiva no Museu Guggenheim, Nova Iorque, em 1997, escreveu que Rauschenberg possui as "capacidades inventivas e o espírito democrático de Benjamin Franklin", o grande inventor e político americano. E o poeta James Fenton foi mais além, comparando RR ( como é conhecido) a Gianlorenzo Bernini, o artista italiano do Barroco que foi pintor, escultor, arquitecto e adepto de experiências de pirotecnia, entre outras aventuras da ciência e do espírito. Mas porquê este coro de aplausos (merecidos) dirigido a um artista fortemente conotado com a Pop Art, um movimento artístico com mais de meio século que parece já pertencer a um passado distante? É verdade que a influência da Pop Art, herdeira do movimento Dada e das excentricidades de Marcel Duchamp, continua a fazer-se sentir directamente nas nossas vidas e na Arte. A maior parte da publicidade e dos meios de comunicação usam, ainda, uma estética Pop e os artistas mais novos não se fazem rogados em utilizar meios - cinema, fotografia, manipulação de imagens, colagens - utilizados por figuras como Andy Warhol, Jasper Johns, Roy Lichtenstein, James Rosenquist, entre outros. No entanto, Robert Rauschenberg destaca-se pela variedade da sua experimentação e pela qualidade sistemática de que se revestem as suas obras. A sua personalidade é outro factor de admiração e respeito.
Nasceu em Port Arthur, Texas, em Outubro de 1925, e o traço mais característico dos seus primeiros anos foi uma dislexia que o diminuía e que era acentuada pela dureza de um pai intimidante que não se coibia de mostrar o seu desapontamento em relação ao filho. O avô era um médico alemão de Berlim, que emigrou para a América no século XIX e casou com uma índia Cherokee e a mãe, Dora, cortava moldes para roupa. "Foi com ela que eu aprendi a fazer colagens" diz Rauschenberg.
Por essa altura RR ainda se chamava Milton e era um rapaz sossegado que gostava de animais e de dançar, uma actividade proibida pelos pais, por questões religiosas. Quando acabou o Liceu foi para a Universidade do Texas, em Austin, estudar Farmácia, coagido pelos pais. Não era um aluno brilhante devido à dislexia e providenciou que um sapo escapasse de uma aula de Biologia. Felizmente para ele, foi expulso e alistou-se na Marinha, tendo sido colocado na Califórnia, a tratar de feridos e traumatizados de Guerra. (O que experimentou durante esse tempo fez com que se tornasse um opositor à guerra e à violência). Uma das histórias da sua vida que ficou famosa foi o facto de ter voltado a casa em Port Arthur depois de ter terminado o serviço militar para descobrir que a família se tinha mudado sem se ter dado ao trabalho de o avisar. Foi por essa altura que mudou o nome de Milton para Robert e começou uma vida nova: inscreveu-se no Kansas City Art Institute, estudou História de Arte, Escultura e Música no Black Mountain College, e em 1948 foi para Paris, para a então célebre Académie Julian onde conheceu a artista Susan Weil, com quem casou em 1950. De volta ao Black Mountain College continuou os estudos sob a supervisão de Joseph Albers, o antigo professor da Bauhaus que se exilara na América. O ambiente alternativo e os métodos experimentais desta escola - por lá passaram Charles Olson, Merce Cunningham, John Cage e Willem de Kooning, para só citar alguns - tiveram um efeito explosivo sobre o jovem Robert que começou a trabalhar febrilmente. É interessante recordar que as primeiras obras adquiridas por uma instituição foram fotografias executadas entre 1949 e 1951, compradas por Edward Steichen para o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (Moma). De ressalvar, também, o sucesso que tiveram as célebres "gravuras azuis" executadas por Rauschenberg e Weil, em conjunto. Por essa altura, o casal vivia do trabalho que Robert fazia para vitrinas de grandes armazéns como Bonwit Teller e poderiam ter continuado na rota do "design" se o artista não tivesse começado a fazer experiências como as "urban frottages" ( resíduos aplicados em papel) em colaboração com Jasper Johns, que conheceu em 1954 e cujo estúdio se encontrava a pouca distância ou como "The Automobile Tire Print", em 1953, executada em colaboração com o compositor John Cage. Neste caso, Rauschenberg desdobrou uma enorme faixa de papel colada à tela e John Cage guiou o seu Ford por cima enquanto o amigo aplicava tinta nas marcas dos pneus. Ficou para a história o diálogo entre ambos: Rauschenberg: " Ele fez um bom trabalho mas considero-a a minha gravura"; Cage: "Mas afinal, qual de nós é que guiou o carro?".
Rauschenberg adorava estas histórias, o uso de materiais baratos, a colaboração com outras pessoas, o prazer que tirava das suas experiências. Toda a gente é unânime em afirmar que trabalhar com Robert era extremamente estimulante e divertido. Nos finais dos anos quarenta, tinha começado a trabalhar estreitamente com John Cage e com o coreógrafo Merce Cunningham, mudara-se para Nova Iorque e continuara a estudar na Art Student's League. Em 1951 conheceu Cy Twombly, foi incluído numa mostra colectiva de artistas do expressionismo abstracto como Jackson Pollock, Franz Kline e Robert Motherwell e teve a sua primeira exposição individual, na Betty Parsons Gallery. No mesmo ano, nasceu o seu filho Christopher.
A consagração a nível internacional ficou definitivamente estabelecida quando, em 1964, ganhou o Grande Prédio da Bienal de Veneza depois de ter sido escolhido para a Documenta de Kassel 2 e para as Bienais de Paris e de S. Paulo, em 1959. Foi uma época de grande criatividade: tinha começado a fazer "performances", produzira os seus brilhantes "Combines", prodígios de criatividade e de liberdade em que usava os métodos da colagem e da "assemblage" com múltiplos materiais e uma profusão de imagens que se tornaram ícones de todos os tempos, viajara sem descanso, mudara para o seu estúdio de Nova Iorque, intensificara a sua colaboração com Johns e Cunningham. O seu trabalho era produto do instinto e do acaso. O artista Brice Marden, que foi seu assistente, lembrava-se de passar dias a juntar imagens que levava a Rauschenberg mas este rejeitava-as. Depois, saía e em poucas horas encontrava o que queria. A partir dos anos sessenta alargou as suas pesquisas no campo da gravura, juntando essa técnica às pinturas e fotografias e criou ao sua primeira peça para dança/performance, intitulada "Pelican" e executada pelo próprio artista. Trabalhou arduamente com a Companhia de Cunningham e com John Cage numa "tournée" mundial ( Merce e Robert zangaram-se pelo caminho), fundou a EAT (Experiments in Art and Technology) com cientistas, ajudou artistas emergentes com projectos específicos e envolveu-se de tal forma com as novas tecnologias que foi convidado pela Nasa, em 1969, para o lançamento da Apollo 11, um tema que lhe permitiram usar no seu trabalho.
Rauschenberg continuou a desenvolver as suas capacidades artísticas, experimentando sem descanso e reinventando-se a cada exposição, a cada retrospectiva, nos anos setenta, oitenta e noventa, retrospectivas essas que têm corrido o mundo. Mas não só de arte se ocupa Rauschenberg. Em 1970 criou uma Fundação para artistas sem condições materiais para trabalharem, doou uma casa com estúdios na zona onde vive, na Ilha Captiva, Florida, e, com Rosenquist, envolveu-se numa campanha para a redução de impostos a pagar por instituições artísticas sem fins lucrativos. Nos anos oitenta iniciou o seu ROCI (Rauschenberg Overseas Culture Interchange), visitando as chamadas "áreas sensíveis" como o México, Chile, Venezuela, China, Tibete, Japão, Cuba, e a antiga Rússia. Tem sido homenageado em todos os lugares - Fidel de Castro foi um dos seus fervorosos admiradores - e ganho todos os Prémios, incluindo um Grammy pela capa que desenhou para um disco dos Talking Heads, em 1983.
"Tenho a tendência para ver tudo" confessou RR ao seu amigo, o coreógrafo Steve Paxton. Na verdade, toda a sua arte, a capacidade para estar sempre na vanguarda de todos os movimentos sem nunca pertencer totalmente a nenhum, o seu génio fulgurante e a sua insaciável curiosidade, são o fruto desse incontrolável desejo de "ver", de assimilar a complexidade do universo. Talvez por essa razão, Rauschenberg tem trabalhado em todo o mundo com todo o tipo de pessoas, dos artesãos mais modestos aos mais sofisticados cientistas. (Não é de espantar que, no primeiro aniversário do 11 de Setembro, a revista Time o tenha convidado para desenhar a capa dupla especial.)
É um prazer e um desafio ler os escritos - principalmente cartas - de Rauschenberg. Devido à sua dislexia - que parece ser uma das bases do seu génio - possuem uma dispersão caótica, a narrativa é surpreendente e plena de fulgores. Num desses textos que lembram os de James Joyce - e não podemos esquecer que Rauschenberg colaborou com o escritor francês do nouveau-roman Alain Robbe-Grillet - o artista fala da sua arte para acabar com a seguinte frase, absolutamente precisa e que o define com clareza: "É extremamente importante que a arte seja injustificável."