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18 de novembro de 2007

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Cultura

Não chore ainda não


Luís Nassif
La Insignia. Brasil, novembro de 2007.

 

A primeira vez que ouvi Chico Buarque de Hollanda eu devia ter uns 14 ou 15 anos. Foi em um programa da extinta TV Tupi, não sei se Almoço com as Estrelas ou um programa do Fernando Faro. O cantor tocava seu violão e nem olhava para a câmara. Acho que cantava "Pedro Pedreiro".

No início de 1965, com 15 anos incompleto, passei seis meses estudando Eletrônica, em Santa Rita do Sapucaí. Fui morar na república WC, a mais barra pesada da cidade, liderada pelo itajubano José Saia, que exibia no braço esquerdo marcas que, assegurava, eram de navalhadas que recebera de Mineirinho, o mais célebre bandido da época.

Toda manhã acordava com meu companheiro de beliche, Salário Mínimo, de São José dos Campos, tocando no violão a valsa "Subindo aos Céus", de Aristides Borges.

Música antiga, só na WC. Nas noitadas de Santa Rita, reinava a bossa nova, com o violão do Salário Mínimo, de São José, do Tota, de Poços de Caldas, a voz do Marcão, de Ouro Preto. Em cada serenata se punham literalmente de joelhos quando falavam de Vanda Sá, a Vanda Vagamente, musa absoluta, cujo retrato estava em um altarzinho na república WC.

Quando voltei a Poços, no segundo semestre de 1965, foi que teve início a era Chico Buarque de Holanda. Chico estourou, ao lado de Geraldo Vandré, no famoso Primeiro Festival da Record. Politizada, nossa turma torcia pela "Disparada", de Vandré. Mas nas serestas, nossa companheira era "A Banda", de Chico. A televisão, ainda novidade, transformou a disputa no fato nacional mais comentado do período. Pouco depois, "Olé Olá" foi lançada e transformou-se em hino nas nossas serenatas.

Questionamento

No final dos anos 60 teve início um processo de questionamento do seu talento. Os pós-bossanovistas, imersos em acordes cada vez mais complexos e inócuos, criticando o que consideravam excesso de simplicidade de suas harmonias. Os transgressores políticos criticando sua suposta alienação. Os transgressores formais abraçando a Tropicália e criticando seu conservadorismo formal. Mas nas serenatas, a música de Chico continuava soberana. E cada lançamento era aguardado com a ansiedade com que se espera a terceira profecia de Fátima.

O auge do sentimento anti-Chico foi no Festival Internacional da Canção, quando grupos politizados vaiaram (pasmem!) ele e Tom Jobim, em repúdio à vitória de "Sabiá" sobre "Caminhando", de Vandré.

Aos poucos, no entanto, o caráter de Chico Buarque foi se impondo e marcando nossa geração, não apenas como o compositor lírico e inspirado, mas como referência de caráter. Chico não se envolvia em quizilas musicais, não fazia fofocas, não se deslumbrou com o sucesso inicial -e talvez não tenha havido outro caso de sucesso tão retumbante na música brasileira. Sequer reclamou das vaias. Continuava na sua.

Quando a ditadura recrudesceu, Chico seguiu para o exílio, passou um tempo na Itália. Retornou em seguida, transformando-se na mais influente voz contra a ditadura.

Recém admitido como estagiário da revista "Veja", fui incumbido de cobrir seu primeiro show na volta do exílio, na boate Dobrão, de São Paulo. Tinha dois meses de jornalismo e me pediam uma crítica contra o maior nome da MPB da época. Nervoso com a responsabilidade do primeiro trabalho, tomei umas "Cuba Libres" a mais, antes de entrar no camarim de Chico, para entrevistá-lo e ao MPB-4. Estava com medo pânico de me comportar como tiete.

No show, Chico havia tentado se soltar, gritando além do que recomendava sua timidez, porque, no padrão estético pós-Vandré, música que não provocasse "arrepio" não era boa. Arrisquei a primeira pergunta: "Será que essa sua nova maneira de cantar meio gritado se coaduna com seu estilo?". Não sei se o Magro ou o Aquiles, virou para Chico e provocou: "Quer dizer que você está saindo com a Duna?". E a Duna se transformou em tema para meia hora de, devo admitir, gozação de primeiríssima contra o foca aqui. Com umas cubas libres a mais, procurei manter a dignidade na medida do possível, mas sem muito sucesso.

Saímos de lá e fomos a um bar na esquina, a esta altura o grupo inteiro bêbado. No bar, por acaso, estava Nelson Cavaquinho. Chico foi direto ao seu ídolo. "Nelson Cavaquinho, você é meu ídolo, vou beijá-lo". E Nelson, mais embriagado ainda: " Não beijo homem. E você não conhece nada de música". Estavam os dois, um de cada lado de uma mesa de ferro fundido. Chico avançou por sobre a mesa para beijar o ídolo e desabaram, mesa e Chico sobre Nelson Cavaquinho, por pouco não produzindo a tragédia mais estranha de toda história da MPB. Ambos sobreviveram ao tombo, e eu à ressaca.

Raízes do Brasil

Nos anos seguintes, o país avançou mais ainda na grande noite da ditadura, passou pelo caso Herzog, pelo caso Ednardo, pelo início da abertura, passou pelo milagre e pela moratória, por Figueiredo e pelas diretas, por Sarney e por Collor.

Ainda nos anos 70, as músicas de Sidnei Miller permitiam aos resistentes a celebração da solidariedade e da esperança em dias melhores em pequenos saraus, onde abrigávamos nosso medo. Mas foi o lírico Chico, que fazia músicas "alienadas", quem passou a encarnar cada vez mais a resistência ao arbítrio. Não se tratava de nada politizado, ideologizado, de grupo. Era a indignação de um homem de caráter, explodindo em sátiras e declarações contra os ditadores.

Foi ele quem rasgou o medo quando explodiu "Apesar de Você", que se transformou na premonição da campanha pelas eleições diretas.

Recuperadas as liberdades democráticas, ser contra a ditadura voltou a ser bom negócio. O país foi subjugado por interesses corporativistas. Oportunistas de toda espécie se apresentavam como adversários da ditadura e exigiam sua parte no butim, em favores ou cargos.

Chico percebeu os novos ventos, e se recolheu. Voltou às suas músicas líricas, a celebrar a dor-de-cotovelo, a refletir a nostalgia da idade, a celebração das filhas se tornando mulheres, os dissabores amorosos, os valores eternos do sentimento humano.

À medida em que minha geração vai chegando aos 50, fica cada vez mais claro que, para os que passaram pelos dissabores da ditadura, que acompanharam os primeiros passos do Brasil rumo à maioridade, Chico Buarque foi e continuará sendo a expressão maior das raízes do Brasil, a celebração maior do caráter nacional, o homem ao mesmo tempo internacional e profundamento Brasil.

Que Deus dê longa vida ao mestre, e que seu exemplo ajude a iluminar, cada dia, um país que luta desesperadamente para encontrar seu rumo.

 

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