A entrevista que vão ler é um corte, um segmento violentador da realidade. Toda narrativa é um corte, uma edição. Mas neste caso a edição se fez antes de o gravador começar a gravar. Melhor dizendo, se entendemos a edição como cortes dirigidos para realizar um corpo montado, orgânico, o corte profundo que vão ler não é nem mesmo uma edição. É como um lance de dados, que me coube por sorte. É como um mergulho no oceano, que não dá conta da vida ampla do oceano. É como um acidente imprevisto em uma voragem. A impressão que eu tenho é que fui tragado.
A poesia marginal de Pernambuco é um oceano que a imprensa não vê. Imaginem o tamanho da cegueira. São, por baixo, mais de 50 poetas, das mais ricas tendências, que se apresentam nos palcos, em shows, em recitais. Eles se fazem notar mais pela palavra falada que pela escrita. A razão é simples, se perdoam a pobreza do adjetivo. Os seus poemas estão em edições pequenas, de tiragens pequenas, de circulação pequena, a preço de duas cervejas. Daí o vulgo e a vulgar compreensão concluem que são poetas pequenos. E, justiça seja feita, é um ranking bem desigual. Diferente dos grandes, eles não são apresentados pela mais douta e circunspecta crítica, aquela que descobre em cada obra uma reedição de Baudelaire, de Elliot ou da última referência que estiver em moda. Diferente dos grandes, eles são todos filhos de má família, um eufemismo que apenas quer dizer, não passam todos de filhos de uma puta. Diferente dos grandes -e aqui vai a sua marca, o seu ferrete, o seu estigma - esses poetas estão todos com raiva e ódio deste mundo. Ora, como falar bem de indivíduos que desejam o fim dos nossos empregos, a morte dos nossos patrões, que vêm para a destruição em hordas kamikazes? E no entanto, quem não ouviu Miró, quem não ouviu a palavra de França, a repetir como uma lâmina que fere em recital, "pensar dói, pensar dói", não conhece ainda a fruição da poesia que é música. Suas apresentações suspendem a estupidez do cotidiano. Não sei se me expresso bem, mas eu sinto nas suas apresentações um gozo musical da inteligência.
Confesso que despertei para a sua poesia quando faleceram dois poetas-símbolo do movimento, Chico Espinhara e Erickson Luna. O intervalo dos seus óbitos foi curto e eloqüente. Chico,
«Recife, musa, maldição
Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão»,
em fevereiro de 2007.
Erickson,
«porque sou suor
a cachaça e a lama
das chuvas que caem
em Santo Amaro das Salinas.»
em abril de 2007. Dois meses entre um e outro. De males diferentes, mas de gênese única. Ambos poetas cujo estilo de vida, de aparência romântica, foi antes uma autodestruição pelo álcool e por outras drogas que não atingiram o veneno da legalidade. Dois poetas representativos de uma das tendências do movimento. Então acordei. Se a morte me despertou, a carência de vida me levou ao encontro destes quatro que agora entrevisto. Estamos em um bar - que cenário seria melhor para esta entrevista? - na Pitombeira dos Quatro Cantos, em Olinda.
- Vamos começar pela apresentação. Por favor...
- Valmir Jordão, 46 anos, poeta desde 1982, com 10 livros lançados. O primeiro pela Pirata.
- Lara, pseudônimo. O nome mesmo é José Luís Miranda. Eu tenho 7 livros, de prosa e poesia. Esses 7 livros estão disponíveis no site Interpoética. Alguns publiquei em papel, mas agora estão todos lá. 46 anos.
- Massapê, tenho 31 anos. Meu nome real é Adeildo Eugênio dos Santos. Massapê é uma longa história, porque eu cultuo o exu, eu sou do candomblé, e tem uma entidade lá que é Seu Toquinho, disseram que eu sou parecido com ele, e o nome pegou. Massapê que é feito de barro e eu considero também um exu. Dou uma força no fanzine "De cara com a poesia" de Malungo. Faço poesia, crônica do cotidiano de 3 personagens que falam do cotidiano da humanidade. Tiro sarro com o pobre, o rico e o babão.
- Malungo, 38 anos, poeta desde 1985. Tenho um livro chamado "O terceiro olho usa lente de contato". Tenho um CD com minhas poesias, participei da Marginal Recife... tenho um fanzine chamado "De cara com a poesia", há 5 anos, que vai para 21 estados brasileiros. O meu nome real é José Carlos Farias da Silva. Me chamo Malungo porque esta é uma homenagem que fiz a Chico Science.
- Valmir, você se considera poeta marginal?
- Olhe, a poesia é marginal desde que Platão a expulsou da República. Quem faz poesia é marginal, tá legal? Embora esteja na Academia, fazendo musculação os que estão com os músculos flácidos. Como poeta participei do Congresso Nacional sobre Poesia Independente, em Salvador, em Vitória, em Fortaleza, e o quarto e quinto congressos foram aqui, um em Olinda e outro no Recife. A gente fez dez encontros estaduais de poesia independente. Quem estava à frente eram Chico Espinhara, Luiz Carlos Monteiro, Eduardo Martins, Cida Pedrosa.. eu fui partícipe nessa época. Não fui mentor nem organizador, como Chico Espinhara, Cida, Luiz Carlos e Eduardo Martins, tá legal? Samuca Santos, Fátima Ferreira, Hector Pelizzi ... isso em 1979 pra 1980. Em 82 eu lancei um livro pela Pirata, com Jaci Bezerra, e Arnaldo Tobias, e o nosso amigo Alberto da Cunha Melo, o maior poeta vivo da língua portuguesa, na minha concepção. Depois comecei a virar pareceiro de Erickson Luna, com quem comecei a ter uma convivência no Beco da Fome, isso em 79. Com Chico Espinhara, com Fred Caminha, Jorge Lopes...
- Insisto: você não tem problema em ser chamado de poeta marginal.
- Olhe... eu sou o seguinte: marginal é a poesia, desde que Platão a expulsou. Repito isso: marginal é a poesia, desde que Platão a expulsou da República, certo? Então não tem nada a ver com poeta marginal, porque eu nunca assaltei ninguém, nunca matei ninguém...
- Ainda não.
- Não, eu não tenho esse interesse. Porque tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Tá legal?
- Lara, você tem algum problema com o nome de poeta marginal?
- Não, tenho não. Eu inclusive sempre gostei dessa denominação. Nomenclaturas, marginal, alternativo, underground, contracultura, eu sempre gostei. Agora, eu reconheço, como Valmir, que poesia é poesia, tanto faz ser acadêmica, clássica, alternativa, marginal... e esse lance também que poesia é marginal em qualquer lugar. Agora, essa diferenciação eu sempre gostei, porque ela traz uma carga simbólica de imediato que diferencia de coisas que eram feitas pela Academia, pelo estilo mais clássico, pelo pessoal que não tinha coragem de fazer certas coisas que a gente colocou, como te falei antes. Eu gosto desses termos, principalmente o alternativo, literatura alternativa, porque já tem uma carga simbólica, quando você fala já diferencia desse pessoal, que a gente sempre gostou de diferenciar. Hoje, não, hoje a gente vê a academia como uma parte do todo, como uma parte importante, que tem aspectos negativos, mas tem aspectos positivos também, a gente até venceu isso, não cultiva mais aquele rancorzinho de compartimentar, a gente está colocando todas as áreas em pé de igualdade, o regional, o acadêmico, o contemporâneo, está todo o mundo em um pé de igualdade, a gente já tem essa lucidez hoje. Agora, eu gosto de ter uma carga simbólica que diferencia, porque marca, marca, não é?, mais ou menos algumas características nossas. É marca.
- Massapê, algum problema pra você, em ser chamado de poeta marginal, ou independente?
- Não, eu gostaria até de acrescentar um pouco também: anarquista. Poeta marginal, independente e anarquista. Contra o sistema capitalista. Totalmente contra.
Lara intervém:
- Essa postura contra o sistema capitalista sempre foi uma coisa interessante, sempre tivemos a coragem de colocar. O pessoal da geração 65, como lhe falei, ficou sem a coragem de olhar isso. A gente sempre escancarou. A gente sempre se colocou como anticapitalista. Agora, não como uma ortodoxia marxista. Não panfletista. A conscientização coletiva da gente ia além de uma ortodoxia marxista.
- Malungo, você tem algum problema em ser chamado de poeta marginal, ou independente, você faz distinção?
- Hoje, tenho. Primeiro, continuo sendo estética e ideologicamente marginal, concordo com Lara, com Valmir, mas eu vejo que a imprensa, e até as pessoas que não nos conhecem, jogam tudo em um bolo só. Então vem um monte de ... (vozes diferentes se sobrepõem na gravação) você sai num jornal, no ano passado, saiu uma matéria, distorcendo completamente. Colocaram como poeta marginal o cara que vive trocando a recitação de um poema por um gole de cachaça, bêbado, o cachorro lambendo, em um mercado sujo, entendeu? Aí pra mim eu prefiro não ser chamado, porque sempre vem uma carga de preconceito em cima. E outra coisa: alguns poetas marginais são marginais, têm hábitos de marginais, então jogam todo o mundo num patamar só. Algumas pessoas têm essas atitudes, entendeu?, de marginais... tem gente que vai montar uma revista, aí pega o dinheiro dos comerciantes e come o dinheiro todinho... aí se eu for atrás desse comerciante, o que é que ele vai dizer? Está fechada a porta, você está me entendendo? A minha história é essa: esse preconceito com a imprensa, essas atitudes queimam a gente. Três ou quatro marginais queimam cinqüenta. Eu não tenho nada contra Lara e Valmir, são meus amigos, mas essa história eu começo a ver, sabe?, lá no fim, quando é que vem esse preconceito, quando sai uma matéria dessa, não é?
Valmir intervém:
- Eu falei que marginal era a poesia. Geraldino Brasil diz o quê? (Recita e cita de memória) "Um engenheiro, ótimo na família. Um advogado, ótimo. Um poeta, melhor na família dos outros". Entendeu? Então quer dizer, cara...
Malungo retorna:
- É aquela coisa, você vai continuar sendo, mas esse pêlo é muito sujo, eu acho, entendeu? Por conta desse preconceito, da imprensa com a gente, e a ignorância de algumas pessoas que leva até a pensar que é marginal mesmo. Eu acho isso.
- Valmir, você conceituou que não tem problema de ser chamado de poeta marginal, e você retoma aquele conceito clássico, de Platão.... Mas como foi que você caiu nessa, de fazer poesia marginal? Não tinha uma coisa mais arretada na vida pra fazer que isso não?
- Olha, vê se tem coisa mais arretada do que esse poema, "Justiça total". (Recita) "Coca para os ricos. / Cola para os pobres. / Coca-cola é isso aí". Valmir Jordão, com J, ouviu?, não é com G, seu Gordão. (Ri, como uma vingança do entrevistador, que lhe perguntara se não tinha coisa melhor na vida para fazer.)
- Certo. Mas por que você não foi fazer outra coisa na vida?
- Olha, eu sempre fiz outras coisas, até porque eu já consumi mais de 50.000 colomis.
- 50 mil o quê?
- Colomi. (Vozes: a seda do papel do fumo) A seda do papel que envolve a maçã. (Gargalhada geral) Ô irmão, não precisa também chegar nesses detalhes estratégicos, isso pode me prejudicar, porra....
- Então, não fale.
- Bom, eu estou falando, porque você está me provocando.
- Mas eu tenho que provocar.
Lara intervém:
- Ele avisou que iria provocar.
Malungo:
- Arreganhe! Arreganhe...
Valmir:
- Então eu vou assumir tudo o que faço, rapaz. Eu faço isso há 46 anos, entendeu? Então, são anos demais, e agora não são mais ânus, são 46 do caralho.
- E por que você não fez outra coisa?
- Eu tentei Geologia, fiz uns 3 períodos. Fiz Engenharia de Minas, mais uns 4 períodos. Depois fiz Direito, mas não foi tão direito, porque eu estava na esquerda, e depois percebi que a esquerda é o outro lado da direita, então eu hoje fujo de partido, eu hoje sou inteiro, mas sozinho. E não estou só, sabe? Porque eles também são meus pareceiros (aponta para os outros poetas na mesa), porque, porra, a gente tem divergência, sim, mas tem um objetivo único: cidadania, antes de partido, antes de tudo, cidadania plena! Puta que pariu!
- Lara, por que você inventou de cair na poesia?
- Foi um surto, em 1983. Foi um surto. Eu fui dominado por um setor do inconsciente coletivo que me arrastou. Então esse surto me fez abandonar o curso de Agronomia, e a partir daí eu passei a escrever poesia, literatura em geral, que eu também escrevo prosa, passei a trabalhar com a militância de esquerda, e a estação cultural. E fiquei trabalhando com isso até 1987.
- Mas esse surto coletivo era um surto de poesia?
- Coletivo, não, surto individual.
- Mas por que poesia, e não outra coisa?
- Isso é carma, não é, cara? Isso é carma. Isso aí vem antes, cara. Isso aí é carma, velho. Carma de Quixote. Carma de semilouco. Carma de Peter Pan. Isso é carma, isso vem antes. Eu venho desse carma já há varias encarnações. É o meu carma, que explode em 83. Na forma de um surto, não é? E a partir daí então, como eu disse, eu passo a fazer militância de esquerda e agitação cultural.... Com relação às drogas, eu usei pouco, na verdade. Usei pouco. Comparando com os grandes, eu usei pouco. Cocaína, inclusive, eu nunca usei. Usei maconha eventualmente, álcool, cogumelo e hoasca, foi basicamente isso.
- Não foi nada ....
- É, não foi tanta coisa assim... se você comparar com... bicho, esse pessoal é de tomar 5 ou 6 garrafas de vodca em uma noite.
- O quê?
- Cinco, seis garrafas. Valmir, Chico Espinhara, Erickson Luna, Jorge Lopes, Fred Caminha tomavam cinco, seis garrafas de vodca em uma noite. Eu tomo quatro, cinco doses de uísque e fico por ali... meu irmão, era muita droga. Então na verdade eu estava mais interessado no potencial crítico, cara. Eu estava mais interessado no potencial crítico da cultura alternativa, eu estava mais interessado nisso. No potencial crítico e na direção da transcendência ... (repete, como se murmurasse) potencial crítico e transcendência.
Aqui o poeta Lara arregala os olhos para uma distinção iluminante, que ele enxerga entre as trevas, como um felino quando arregala as pupilas no escuro:
- Então essa coisa da autodestruição enquanto bandeira existencial eu sempre fui contra. É uma divergência que eu tenho com o pessoal.
- Havia realmente essa bandeira de autodestruição?
- Havia. Erickson, principalmente. Negócio suicida. Era bandeira existencial. Era bandeira ideológica mesmo.
- Espinhara jogou-se no rio, é verdade isso?
- Sete vezes. Jogou-se.
- Mas ele sabia nadar, não é? Jogou-se 7 vezes e escapou.
- O rio estava seco. (Risos.) Ele ficou na lama, aquela coisa horrível.
- Absolutamente bêbado?
- Total. Ele ficava chapado e se jogava no mangue... Então tem esses aspectos: não é só poesia, é um monte de coisas. É cultura alternativa, é postura ideológica, é um monte de coisas.
- Massapê, por que você cismou de fazer poesia, e não fazer outra coisa?
- Mas eu faço outras coisas. Poesia pra mim é só um complemento. Sou percussionista, sou artista plástico também, e a poesia é só um complemento. Ela pra mim é mais uma etapa da musicalidade. Toco e, naturalmente, de vez em quando me aventuro a fazer algumas músicas.
- Você está fora dessa postura suicida, não é, Massapé?
- Eu quero viver um bom tempo ainda. Uns 10 anos. Não quero morrer agora não.
- Malungo, por que você caiu na poesia e não em outra vida?
- Minha avó já escrevia, escrevia, não, ela fazia versos cantados no interior. No cotidiano dela, ela já chamava meus tios rimando...Foi o seguinte, quando eu nasci, o meu pai botou no meu berço um rádio. Um rádio sempre ligado. Isso em 1969, quando eu nasci. Depois ele passou a comprar gibis. E começou a ler pra mim cordéis. Quando mudei de casa, e fiquei meio triste, numa depressão, deixei de ver minha namorada, meus amigos, saí de Torrões pra Maranguape 1, aí comecei a escrever umas coisas mais melosas, então as pessoas começaram a dar uma força, e eu parti para o lado crítico. Depois enveredei pelo surrealismo, pela psicodelia, muito inspirado também pelo tropicalismo....
Lara intervém:
- Psicodelia sem psicoativo.
-Malungo responde:
- A minha história é a seguinte: quando eu era pequeno, a minha mãe fazia uma mistura de colônia com liamba de caboclo, que tinha na minha casa. Minha mãe fazia a infusão da liamba com a colônia. Então durante a minha infância toda, isso era usado pra dor de cabeça.
- Valmir, a poesia de vocês, em primeiro lugar, não é valorizada como alta poesia.
- Hum.
- É como se fosse uma poesia menor.
- Hum!
- E poesia menor significa também poetas menores.
- Hum!!
- Hum... agora fale.
- É, Manuel Bandeira se considerava um poeta menor, e daí? Pode ser que tenha um cara de 2 metros e 10 que seja bom de basquete e péssimo em poesia, e daí? Ou ser um poeta menor por ter 1 metro e 70. Entendeu como é que é? Eu tenho 15 centímetros de pênis, então eu acho que é a média mundial, certo? Então eu não me sinto menor em porra nenhuma!
- Lara, e pra você, isso de fazer poesia menor e ser poeta menor?
- O grande problema, aqui em Pernambuco, com relação a isso é o cânone ocidental junto com o poder estabelecido. A gente tem aqui as oligarquias, a gente tem aqui um carma de usineiro, coronel, pesadíssimo. E você acha que isso não se refletiria no Departamento de Letras, por exemplo? Então a hegemonia do cânone ocidental, junto com o poder estabelecido, é que faz com que determinados estilos, determinados temas, sejam entendidos, vistos como menores. Não tem isso. O regional, o clássico, o alternativo contemporâneo, estão em pé de igualdade. Agora, quem está intoxicado, o intelectualóide que está intoxicado pelo padrão grego, que não consegue sair da área do cânone ocidental, seja por estreiteza perceptiva, seja por cumplicidade com o poder estabelecido, esse aí vai achar que é arte menor, que é poeta menor. Aí é que está o problema, está certo? (Aplausos na mesa.)
- Massapé, você acha que é um poeta menor, um poetinha?
- Eu acho que não. Acho que estou entre os maiores, porque Ariano Suassuna critica o rap, mas fez o Auto da Compadecida com um Cristo negro. Isso é rap. Desde quando ele vai ter moral pra falar mal do rap, dizer que o rap é lixo, se ele bota um Jesus preto? Jesus preto é rap. Então, Paulo Coelho não é um dos maiores do mundo? Se Paulo Coelho é, se Ariano é, eu também sou.
- Malungo, a sua poesia é pequenininha, menor?
- Eles podem me considerar um poeta pequeno, mas minha poesia é enorme. Ela abrange muitos aspectos da vida, ela é cheia de imagens. Se você pegar um poema meu, você pode fazer um videoclip, um filme. Depois você vai confirmar. Tenho um poema que resume isso aqui, um poema pequeno, que diz assim: "Ligo o radinho de pilha e surgem figuras no meio da sala. Elas pulam, dançam, elas pulam e dançam se misturando para formar um verso. Um batuque azougado e eu na África caçando palavras com uma lança e um pensamento pendurado no inconsciente coletivo".
- Lara, como é que você analisa a poesia independente do Recife ser feita por pessoas pobres e monoglotas?
- Vê só, cara, a maioria dos poetas independentes são de origem pobre, são monoglotas, são intuitivos. E autodidatas. A gente sempre colocou isso como uma de nossas bandeiras contra o poder estabelecido, contra a academia, certo? Porque esse pessoal da academia, do poder estabelecido, eles só respeitam o poeta como escritor se for poliglota, se for pós-doutor, está certo?, se tiver mil cursos, está entendendo? Um autodidata, um intuitivo, eles não respeitam como poeta e escritor. Eles podem respeitar como músico. Mas como escritor eles não respeitam. Então a gente sempre colocou isso como uma de nossas bandeiras, sempre peitamos esses caras. Então eu também sou autodidata, intuitivo, eu fiz a metade de um curso superior, que foi Engenharia Agronômica, que abandonei em 83, por conta do surto, de que eu falei, mas eu li pra caramba, mesmo como monoglota eu li pra caramba. E refleti também. E observei também. E repassei isso em 7 livros, entre poesia e prosa. Então eu faço questão, eu bato pé, eu quero ser respeitado como poeta e escritor!, (bate na mesa) mesmo sendo de origem pobre, monoglota, autodidata, intuitivo, eu quero ser respeitado. (Bate na mesa.) Eles vão ter que me respeitar. Está certo?, porque foi a isso que eu dediquei boa parte da minha vida, muita leitura, muita reflexão, muito sacrifício pessoal também, está certo? Então este é o lance, a gente sempre colocou isso como uma de nossas bandeiras. É pau! Tem que respeitar e aceitar mesmo. Vão ter que nos engolir, está certo?
Valmir:
- Eu posso registrar um poema histórico? Por favor. "Monólogo de um cidadão da Mauricéia favelada. Fizeste brotar dentro de mim o amor, alimentando os meus sonhos em teus mamilos cancerosos. E te tornaste uma prostituta me embriagando e iludindo como um filho da puta. E o meu amor afogou-se em teus negros mangues, onde os sonhos mergulharam no Capibaribe. E teu porto tornou-se Amsterdam ao abrir tuas maurícias pernas aos aventureiros ávidos, fazendo de teus filhos sifilíticos bastardos. Princesa das águas sujas, das pontes e dos rios, foda-se, Recife! Não és digna da legião de famintos e esfarrapados".
Lara:
- Esse tipo de poesia a geração 65 não fazia não. (Valmir grita: - Nós somos os poetas abandonados!) Porque a gente ligou para o visceral, e o engajado da esquerda, mas não com panfletarismo, não calcado na ortodoxia marxista. A gente se propunha a ir além da ortodoxia marxista. Tinha anarquista, tinha ...esse lado visceral muito forte, de expor as tripas da realidade concreta, de fazer o combate ideológico, anticapitalista, como Massapé falou, a gente sempre teve isso, cara. Você não encontra isso na geração 65, cara. Você nem encontra isso no Modernismo. Nesse nível, a gente foi além do Modernismo. O próprio Mário de Andrade era um cara que não gostava do poema-piada.
É tarde da noite. O gravador pára de rodar, tem um problema mecânico, e parece ter mais ciência que o entrevistador. Então nós nos levantamos, por força desse problema mecânico.
A poesia marginal do Recife
Do sítio Interpoética
Desumano
Francisco Espinhara
Dá-me Deus um deus melhor
Não este deus azul
Este deus que as mãos cálidas clamam
Este deus senecto, rendez-vous.
Dá-me Deus um deus diferente, menor
Um deus com a cara suja de poeira
E que deite e durma e sonhe
E que se sente à mesa e coma
Os frutos que da terra hão de vir
Cantarole, lírico, uma velha canção
Depois desate a sorrir.
Dá-me Deus um deus humano
Como deus outro nenhum
Sem quaisquer obrigações divinas
E que ante a realidade das ruínas
Não se preste a milagres
Nem se preste a jejum
Dá-me Deus um deus comum
Ecce homo
Erickson Luna
Saiam da minha frente
matem-se
morram-se
deixem livre
o meu campo de visão
Me entristece conceber
a semelhança que nos une na semente
quem é que pode
ser feliz se vendo gente
Portanto
saiam da minha frente
Desencontro
Lara
era tão conotativo
mas tão conotativo
era tão hermético
mas tão hermético
era tão indireto
mas tão indireto
que ele disse
luz
e eu pensei
que ele havia dito
nada
Justiça total
Valmir Jordão
Coca para os ricos
Cola para os pobres
Coca-cola é isso aí!
Carroceiro transcendental
Malungo
Lá em Peixinhos, a arte mora na favela.
As bandas, o lixo do Beberibe:
É o groove suburbano!
Goiamuns plugados se esbarram nas vielas.
Todas as orelhas do mundo viradas para
Recife.
Só aqui, não se ouve o novo som
Pernambucano.
A luz do sol se reflete nas águas sujas do rio
(nos zincos dos barracões).
Urubus dão rasantes nas montanhas de lixo.
Nas carroças ferro velho, tralhas e
papelões,
Carne de rato; pés sujos nos telhados da
consciência.
Mocambos, almas encardidas
e balas perdidas sem clemência.
Geladeiras incandescentes iluminam a tua
cozinha.
Paredes transparentes revelam as terceiras
intenções.
Coloque o plugue e peça linha.
Viaje chutado, num burro sem rabo
rumo a outras dimensões.
Carne
Massapê
Corpo macio de nuvem
Suspensa no meu céu
Corpo de nuvem macia junto ao meu corpo de erosão
Teu corpo chove sobre o meu
Chuva de prazer
Nuvem é vida
Corpo faz nascer
Nuvem é carne de mulher
Marginal recife
Miró
Recife
Cidade das pontes
E das fontes da miséria
Poetas mendigando passes
Pra voltar pra casa
E sua poesia passando despercebida
Aliás,
Nem passa.
Milena
Cida Pedrosa
gosto quando milena fala
dos homens
que comeu durante a noite
é a única voz soante
nesta cantina de repartição
onde todos contam:
do filho drogado do preço do pão
do sapato carmim, exposto na vitrine
da rua sicrano de tal do bairro
de casa amarela
onde você pode comprar
e começar a pagar apenas em abril
sem a voz de milena
o café desce amargo
Sem título
França
Vens tão mansa
Vens tão bela
Que fechas as portas
Atrás de ti
Vens...vem... vem...
O gato brilha
A porta geme
A tua mão me descostura
Ao sabor do vento
E agora te vejo precisamente:
Vais?
Vens ou vais?
Vem e vai!
Ou sou eu que
Não sei se sou tobogã
Ou gangorra?
Masmorra
Tronco
Calabouço
Porão do teu âmago
Me vejo tão dentro de ti
Que cacimba te mataria a sede?
Se não fosse pelo teu
Sabor acidoalcalino,
Abacateabacaxi
Eu não saberia
Se tobogã ou gangorra
Te atrairia hoje!
Medo do vôo
Ivan Marinho
Não precisas de tempo para ser livre.
Precisas é de coragem
para ser livre todo tempo.
O medo, tesoura de tuas asas,
tosou-te por inteiro,
e do chão só consegues ver
o que do chão permite-se:
Momentos adoecidos
pela espera do momento.
E na doença do momento esperado
não fazes mais do que esperar.
Por medo do vôo
não consegues voar
Sem título
Silvana Menezes
O poeta enxerga tanto
ao ponto de depositar
nas palavras
as balas
que de outra maneira
jogariam seus miolos
a dez metros de distância