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20 de setembro de 2006 |
Capatazes, peões e latifúndios
Mário Maestri (*)
Durante a Semana Farroupilha, com finalização em 20 de setembro, através todo o RS, patrões, capatazes, peões, prendas e ginetes das associações tradicionalistas ponteiam as multitudinárias celebrações da guerra separatista sulina de 1835-45 e da sociedade latifundiário-pastoril que a sustentou. Apesar da importância nas representações identitárias sulinas, não temos histórias gerais sobre a fazenda pastoril e seus trabalhadores, ao contrário do que ocorre no Uruguai e Argentina. A gênese da propriedade fundiária e as condições gerais de existência dos trabalhadores pastoris do passado e do presente constrangem certamente as apresentações historiográficas laudatórias sobre o gaúcho e a fazenda rio-grandense.
Em 1964, Laudelino Medeiros escreveu o texto "O peão de estância: um tipo de trabalhador rural", apoiado na sua participação em pesquisa geral sobre a pecuária rio-grandense, empreendida pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicas da UFRGS, no qual analisou a realidade de 35 fazendas, com mais de 440 hectares, dos municípios de Vacaria, Julho de Castilhos, Santiago e Uruguaiana, localizados no norte e no sul do Estado. O estudo foi realizado em um momento em que ainda dominavam as práticas tradicionais do pastoreio contínuo sulino que se estruturaram, sobretudo a partir dos anos 1870, com o início da desescravização das estâncias no Rio Grande do Sul. O valioso trabalho inicia assinalando a gênese latifundiária da propriedade fundiária rio-grandense, seguida de crescimento e posterior queda relativa de dimensão. Porém, ainda em 1960, havia 6.787 explorações com mais de quinhentos hectares, entre as quais 238 possuíam de cinco a dez mil hectares e cinqüenta, dimensões ainda maiores do que uma sesmaria histórica. Nessa época, as propriedades tinham em média dois peões e um capataz, ou seja, 948,5 animais por trabalhador, realidade muito próxima à conhecida pelas estâncias criatórias da região de início do século 19! A seguir, o autor descreve a organização sócio-espacial das regiões pastoris estudadas: a sede municipal; os distritos e seus núcleos urbanos; as estâncias, base de toda a arquitetura econômico-social e, às vezes, "aglomerados de moradias habitadas por famílias pobres", com o seu "bolicho" e a sua "cancha". Nas fazendas estudadas, trabalhavam, em forma eventual, o fazendeiro, seus filhos e parentes e, essencialmente, trabalhadores assalariados, com destaque para os, em 1965, setenta mil trabalhadores pastoris. O fato de que, em 1950, houve em todo o RS, cem mil operários industriais, registra a importância dessa população mantida historicamente à margem de qualquer expressão social e política organizada. Capatazes e peões cumpriam em geral as mesmas tarefas produtivas. O capataz era um peão mais experiente ao qual delegava-se a implementação quotidiana das decisões gerais nas quais não intervinha. Nas fazendas maiores, podia haver um sota-capataz. Os trabalhadores assalariados temporários eram sobretudo o alambrador, o tosquiador, o carpinteiro, o tratorista, o enseminador, etc. Em 1964, o domador e o posteiro estavam já em processo de plena extinção. Sobretudo até 1870, quando as estâncias começaram a receber cercas de arame, os posteiros eram "agregados" que moravam em geral com a família nas franjas da propriedade, onde plantavam uma horta e criavam algum gado, sob a obrigação de controlar o ingresso nas terras de intrusos, a fuga de gado e de cativos, e apoiar episodicamente as atividades que requeriam maior esforço - rodeios, preparação de tropas, etc. Capatazes, peões e agregados conformaram como sub-oficiais e soldados o núcleo central das forças militares que intervieram nos conflitos sulinos, sob a direção das classes pastoril-latifundiárias - Guerra Farroupilha, Intervenções no Plata, Revolução Federalista, Revolução de 1923, etc. Laudelino Medeiros registra a visão "romântica" e "bucólica" do "citadino", normal nas reconstruções apologéticas do presente e do passado, das pesadas e duras tarefas pastoris, iniciadas ao nascer do sol e desenvolvidas sob o rigor das intempéries. Apresentado comumente como uma verdadeira "diversão", o trato montado do gado em campos abertos foi sempre atividade rústica, causa de acidentes graves e, não raro, mortais. O autor assinala a verdadeira naturalização dessas condições de trabalho pelos peões e capatazes que desconheciam uma outra forma de existência. Organizados por produção que os isolava nas fazendas e lhes ensejava percepção individualista de suas práticas sociais, capatazes e peões possuíam historicamente uma muito limitada consciência de suas necessidades sociais, sobre a qual se apoiou o mito da concordância de interesses entre fazendeiros e gaúchos, base do forte movimento tradicionalista rio-grandense - GTG. Os 32 capatazes entrevistados tinham habitualmente de 30 a 49 anos de idade, sugerindo que a velhice punha fim aos laços empregatícios. Em geral, eram casados - quase 71% - e suas mulheres trabalhavam comumente na sede e cozinhavam para os peões. A escolaridade e a família dos capatazes eram pequenas - 4,65% pessoas por família. Os capatazes moravam em casa de madeira, de coberturas de telhas ou de folhas de zinco, sem os confortos comumente encontrados na moradia próxima dos seus patrões - água encanada, eletricidade, banheiros, etc. Os capatazes recebiam em torno de um salário mínimo e, nas fazendas maiores, possuíam algumas cabeças de gado e, raramente, um lote de terra, mesmo urbano. Eles conheciam alta rotatividade profissional, baixa mobilidade territorial, escassa ascensão social e eram habitualmente naturais da região e filhos de pais ocupados no pastoreio, não possuindo expectativas de mudar de profissão, da qual não tinham alta estima. Portanto, em geral, trocavam comumente de emprego, durante a vida produtiva, sempre na região onde nasciam, o que exigia naturalmente respeito à disciplina social, caso quisessem manter-se no mercado de trabalho. Na época, era incomum que capatazes e peões procurassem a Justiça do Trabalho. Os peões, um pouco mais jovens, tinham entre 20 e 49 anos (62,7%) e eram em boa parte pardos e negros, herança da importante população de cativos empregada nas estâncias sulinas em tarefas de apoio e nas práticas pastoris propriamente ditas - cativos campeiros. Os peões conheciam a mesma baixa mobilidade profissional, social e territorial que os capatazes. Escutavam raramente a rádio, não liam jornais, havia quem não soubesse o que era a televisão, ainda em 1964! Em geral, devido aos descontos cobrados pela alimentação e a moradia, recebiam salário abaixo ao mínimo da época, não raro inferior ao determinado por lei. Visitavam volta e meia as povoações próximas, usando os veículos da estância ou o ônibus e, raramente, o cavalo. Os fazendeiros negavam-se a empregar peões casados. O trabalho marginal das esposas e filhos dos peões não supriria os gastos com o alojamento e a alimentação. Temeriam, sobretudo, que núcleos familiares criassem laços associativos que apoiassem a luta pela democratização da terra. Quase 75% dos peões eram solteiros, não possuindo, portanto, direito à família e à reprodução, o que contribuiu para o escasso desenvolvimento demográfico e econômico das áreas pastoris rio-grandenses, sobretudo em relação às comunidades colonial-camponesas do nordeste rio-grandense. O autor descreve a triste moradia do peão: "(...) dormem numa peça junto ao galpão, mais propriamente uma divisão no galpão: o quarto dos peões. Ali se encontram quatro ou cinco camas rústicas (...)." Assinala que essas instalações encontravam-se em "contraste acentuado com as usadas pelos fazendeiros". Laudelino assinala, igualmente, sem se aprofundar na questão, os efeitos dissociativos, pessoais e grupais, da manutenção de população masculina jovem, semi-encerrada, à margem do direito de acasalar-se e constituir família. Era habitual que nas comunidades pobres a que se refere o autor, ao lado do "bolicho" e da "cancha" assinalados, houvesse prostíbulos onde o gaúcho deixava periodicamente seu magro salário, na mesa, bebendo cachaça e carteando com jogadores espertos, ou na pista de dança e no catre, com mulheres tristes, prostituídas devido à impossibilidade de outra inserção social. Temos ricas notícias sobre os hábitos zooeróticos e escassa informação sobre as ideologicamente mais corrosivas práticas homossexuais eventuais do gaúcho. O gaúcho possuía vida cultural pouco desenvolvida, valorizava escassamente a profissão, não tinha planos estruturados para o futuro. Perguntando o que pretendia fazer sobre sua vida, um jovem peão respondeu: "[...] se í dando certo, vô ficando". Salvo engano, divulgado através de alguns exemplares mimeografados, em 1969, o valioso trabalho de Laudelino T. Medeiros, "O peão de estância: um tipo de trabalhador rural" jamais foi publicado como livro. (*) Mário Maestri, 58, rio-grandense, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net |
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