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16 de março de 2006 |
«O Brasil é uma imensa contradição»
Patrizia di Malta
- Quem é Urariano Mota? -Em primeiro lugar sou Urariano, o meu nome, este nome esquisito, que veio de um sonho do meu pai. Em segundo lugar, eu sou a perda fundamental da minha mãe, aos oito anos. Em terceiro, sou os desastres que eu cometi, as leituras que me serviram de arrimo, os amigos e até os não amigos que conheci. Sou soma, uma adição, como todo o mundo. -Como decidiu tornar-se escritor? -Quanto à formação cultural, ao ser livresco, devo dizer que eu busquei os livros, quero dizer, eles não vieram a mim, eu os procurei para que me dessem alguma chave, algum esclarecimento, para os problemas que cruzaram o meu caminho. Em busca da clareza, que não ganhei, terminei por colher o que não pensava: o gosto e o supremo prazer do conhecimento. Levei por isso anos para ler o Dom Quixote - eu me detinha na frase, no gosto das linhas, na graça de Cervantes, e por isso rápido eu não avançava. Antes dele, os russos, Dostoievski aos quinze anos, depois Tolstoi, Gorki, mais adiante, sob o fogo e derrota de uma paixão, Baudelaire, e Balzac, e Goethe, Thomas Mann, e Freud, naquela obra magistral "A interpretação dos sonhos". Dos brasileiros, a maior revelação foi e é Machado de Assis, o contista Machado. E o Graciliano de Memórias do Cárcere. A rebeldia e a crítica permanente de Lima Barreto. A poesia de Manuel Bandeira. Até descobrir, em meio à mais funda selva escura, quando tudo parecia perdido, que o amor era o mais revolucionário. Aquele amor que move o Sol e as estrelas, e Newton nenhum diz. No começo dessa resposta, eu dizia que a perda da minha mãe era a segunda coisa da minha formação. Agora vejo, e escrever também é isso, descobrir o que antes não víamos, agora vejo que ela é todo fundamento. Todo feito, toda realização, tudo é busca de vencer carência. Em resumo, Patrizia, eu sou um homem de esquerda que perdeu sua mãe. -E o jornalista? Eu sei que você também é jornalista. -Mau, muito ruim jornalista. É que eu procurei no jornalismo o que ele não me podia dar. Caí no engano comum, o de achar que se um indivíduo gosta de escrever, então ele é jornalista. Isto é falso. O jornalismo e a literatura são tão semelhantes quanto a piscina e o mar. Ambos possuem um elemento comum, mas que diferença! A literatura é o mar, o fundamento e gênese. Daí que em trabalhos no rádio procurava me abrigar, disfarçar o meu ser em um cantinho das ondas do ar como uma praia, com pequenas crônicas. No jornal impresso, escrevi em páginas de Opinião. E mesmo hoje, quando escrevo em sítios críticos na web, como La Insígnia e Observatório da Imprensa, sou um escritor que escreve artigos. Aqui e ali, erro muito, erro menos, ou acerto pouco. Um texto sobre o assassinato do brasileiro Jean Charles de Menezes corre o mundo, em português, espanhol, inglês e, agora, em italiano, por suas mãos. Outro, sobre o violonista Canhoto da Paraíba, sem nenhuma solicitação minha foi divulgado pela Rede Globo de Televisão, e terminou por gerar uma pensão do governo, que hoje suaviza o sofrimento desse gênio. No entanto, um texto sobre Roberto Carlos, que mencionava as relações entre a música do "Rei" e a ditadura militar, me gratificou com alguns insultos, dos quais o mais suave foi, "a inveja mata!". Sobrevivi. -O que você acha da cena da literatura brasileira, hoje? -O que se vê comentado em resenhas de revistas brasileiras muito longe está da criação do Brasil. Os "críticos" fazem uma linha de transmissão da indústria editorial. E disto falo com a viva experiência. Quando Os Corações Futuristas foi publicado, enviei-o para os comentaristas do Rio e São Paulo. E um deles, de uma poderosa revista, me disse: "O teu livro é bem escrito, mas ..". Mas o quê?! Por Deus, o que se pede a um livro, em primeiro lugar, a não ser que venha bem escrito? Não há, na grande imprensa, um sujeito de fibra que se diga: "Vamos ler isto, sem olhar pro selo editorial". Os prêmios literários, por sua vez, se tornaram uma briga de editoras. O resultado disso não é bom, e nada de bom vem daí. Quem quiser saber o novo do Brasil, há de alcançá-lo por meios marginais, pela web, por exemplo, porque a criação está fora do circuito. Por outro lado, há uma nova linha, meio bárbara, que por meios bárbaros, imediatos, quer expressar a barbárie da vida brasileira. E isto não é bem literatura. É depoimento gravado, roteiro de reportagem policial, flashes indiscretos de casas de massagens. O lugar insubstituível da literatura, como o lugar da reflexão sobre o destino humano, está fora do circuito. -No seu entender, o que a literatura brasileira deveria representar para os europeus? -Em primeiro lugar, não deveria representar o ser exótico, o documento da cor local, o material para estudo etnográfico. Não somos índios nas selvas nem vivemos ao som de atabaques. Neste particular sentido, a literatura de Jorge Amado foi um mal imenso. Ela se tornou uma extensão cultural, na falta de melhor nome, de um pacote de agência de viagens. Somos um povo grande, como insiste em lembrar Nei Duclós, soberano, uma complexa civilização. Somos o gênio de Machado de Assis desde o século XIX. Somos a rebeldia do heróico escritor Lima Barreto desde inícios do século XX. Somos João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, há muitos e muitos decênios. Representamos todos a angústia, a dor e a alegria de viver em um país desigual, realidade mais funda que a de um país tropical. Representamos, ou deveríamos representar os conflitos do ser humano em um país-continente, a expressão artística desse mundo em guerra. Devemos dizer, a quem nos procura, comunguem da nossa humanidade, irmãos de todas as paisagens e climas. -Que influência, então, representa viver no Brasil, para sua escrita e a de outros escritores? -Fundamental. Este é o nosso berço e identidade. E dizer isto não é reivindicar um exclusivismo de nação, uma estreiteza nacionalista. É apenas dizer que estar e viver no Brasil é ir além de um acidente geográfico. É a língua e a vida da nossa infância, são as pessoas e a gente que nos fizeram e que levaremos conosco aonde formos, ainda que não estejam ao lado como pessoas físicas. O ser múltiplo, a gente múltipla da nossa memória. Como pode ver, isto é universal, cada escritor, cada pessoa é história da sua gente, em todo e qualquer lugar do planeta. O particular da nossa literatura, a diferença, se se busca isso, está em que ninguém poderá falar com mais autoridade sobre a nossa dor quanto nós mesmos. Na literatura não há brazilianistas. Pode haver críticos literários, mas em dor brasileira nenhuma autoridade virá de laboratório exterior. Veja, especialistas de outras nações podem falar o que representa a ascensão de Lula para a sociedade do Brasil, situá-lo no contexto de uma nova ordem política. É possível até que façam isto com mais competência que os analistas brasileiros, mergulhados que estamos na luta mesquinha da politicagem de todos os dias. Mas somente um escritor brasileiro vai conseguir expressar a festa do povo do Recife no último comício da campanha, somente um escritor brasileiro expressará o sentimento que via santas nos vidros das janelas, as nossas senhoras que desapareceram, quando Lula cresceu nas eleições. -A propósito, o que acha do governo Lula? -Digo-lhe de imediato que votarei nele mais uma vez. Mas sei que ele não pode realizar os nossos sonhos. Governar para o povo, numa democracia formal, é o mesmo que ser elegante, educado, com as calças abertas e rasgadas nos fundos. O congresso reproduz a sociedade antidemocrática, e não se governa sem ele, ou melhor, tenta-se governar apesar dele. Realizar algumas mudanças em nosso país, tamanha é a "naturalidade" da exclusão social, é o mesmo que tentar uma revolução. Como a reforma agrária, por exemplo - são séculos e séculos de opressão mais larga que o tamanho dos latifúndios. Reforma agrária no Brasil continua a ser coisa de comunista, de subversivo, acredite. Pois o Brasil é não só o país do grande futebol e da maravilhosa música popular. O Brasil é uma imensa contradição, é a miséria material e humana que vê o paraíso ao lado, a menos de 50 metros. Combater isso é um pequeno assalto aos céus. Votarei portanto em Lula, pela esperança que ele acende e ascende na gente, ainda. -Nesse contexto, o que você acha do experimentalismo em literatura? -A sua pergunta me faz lembrar uma frase de Lukács: "quem tiver alguma coisa a dizer em literatura que o faça da melhor forma possível". Olhemos a nosso redor a natureza. Para continuar na metáfora da literatura que é mar, desçamos à profundeza das águas. Veja, a natureza não pede licença a nossos olhos, ela não nos pergunta se tal coisa é lógica ou ilógica, se peixes, vegetais, podem ter esta ou aquela forma. Ela nos arrebenta a percepção, com seres que sequer imaginávamos, em cores, em luzes, em possibilidades. Mas esse jogo infindo de linhas e assimetrias vem por uma necessidade orgânica, como se fosse uma experimentação dos elementos sob a superfície. Agora voltemos à terra. Ao chão. À literatura sem metáfora, supondo que exista essa violência. Experimentar, buscar formas de expressão que sejam mais adequadas ao que se deseja escrever é uma ordem, é uma necessidade. Agora isto é diferente do experimentalismo, do experimentar por experimentar, como um brincar ao acaso de um caleidoscópio. É preciso reconhecer, no entanto, que recursos formais "inúteis", na aparência inúteis, podem servir à expressão de problemas que de início não eram percebidos. Isto é do próprio conhecimento humano, atinge até mesmo a mais racionalista ciência. Um jogo de dados pode não ser um simples jogo aleatório. Pode guardar uma ordem não ainda racionalizada. Como uma intuição, um palpite certo, uma voz íntima ainda sem explicação. Em resumo, quero dizer, reconheço o direito de brincar, de jogar, em escritores, artistas, toda a gente. Mas esta não é a minha praia. Tenho 55 anos e a vida, ou resto de vida, se quiser, não me permite mais o usufruto desse recurso. Tenho, nesta altura, a consciência que todos nós deveríamos ter desde mais jovens: o nosso tempo de vida é pequeno, avarento, mesquinho. Vamos mudar de assunto? -Vamos. Como você teve a inspiração para escrever Os Corações Futuristas? -A inspiração, nesse caso, se houve, não foi um estalo. Não veio assim de repente, caída no cérebro sem que se esperasse. Os Corações Futuristas é um romance de formação, é a narrativa de uma geração que se fodeu e quis amar sob a pior ditadura brasileira. É o romance de uma época do lema "Brasil, ame-o ou deixe-o". E nós amávamos muito, muito e muito o Brasil. Disse "nós" como num ato falho. Isso é esclarecedor porque Os Corações Futuristas é um livro que veio sendo escrito, sem que disso eu tivesse consciência. A vida vinha escrevendo-o comigo e para mim. Às vezes, eu dizia, numa brincadeira e meio sério, "no dia em que eu escrever um livro sobre a militância, ela não vai gostar". Mas não foi bem assim, porque depois, durante a escrita, vi que meu olhar alcançava tanto a crueldade quanto a compreensão. É o livro sobre a melhor juventude que eu conheci naqueles anos. Uma gente generosa, ao ponto de jogar sua vida pela força das idéias, percebe? Mas que, ao mesmo tempo, assim impunha a verdade, eu não podia alisar a cabeça, vendo-a só no heroísmo. Gente capaz de covardias também, de traições sórdidas também, porque é dessa massa que a vida é feita. -Em quê o seu livro é diferente dos romances escritos no Brasil nesses últimos anos? -O escritor Nei Duclós, que foi crítico literário na revista Veja e na Folha de São Paulo, disse que este é o mais importante romance dos últimos vinte anos no Brasil. No jornal Racunho dizia ele, e peço desculpa a você, Patrizia, pela citação: "Por que Os Corações Futuristas é importante? Longe das comparações entre talentos ou protagonistas literários, Urariano Mota assume seu posto de autor pelo mergulho (por ter escolhido o mais alto penhasco de onde se atira), pelo vôo (porque instaura a morada completa, ética e filosófica, de personalidades condenadas ao esquecimento) e pelo fôlego (por encontrar oxigênio no sufoco que permanece). Faz isso sem jamais pagar o tributo ao anedótico, ou ao regional ou mesmo à nacionalidade (porque é de outra têmpera o fogo de que se alimenta), tentações a que os escritores brasileiros costumam deixar-se levar para romper o cerco da condenação do ofício. Urariano não se deixa enlear pela História (esse fragmento nobre da Memória), nem pelo espetáculo (as baladas do leitor em busca de enredos fáceis), nem pelo circo de vaidades (o autor sendo festejado pelo que aparenta). Ele procura outro caminho, mais árduo, ao resgatar a missão fundadora da literatura". Peço desculpa por isso e me escondo, deixando a cabeça de fora para ver se já leram a citação. Patrizia - Você disse antes que Os Corações Futuristas fala da melhor juventude que você conheceu. Então podemos dizer que ele é autobiográfico? -Sim e não. Explico. Todo livro, por mais estranho e objetivo que seja à pessoa do autor, é autobiográfico, na medida em que fala de uma forma ou de outra sobre acontecimentos ou interesses do autor. Mas responder assim é uma fuga, reconheço. A sua pergunta, bem sei, é mais precisa e específica: trata-se de saber onde o autor, a vida do autor, acontecimentos íntimos da sua vida, estão nas páginas ali apresentadas. Sim, mais uma vez, sim, a vida e as pessoas que eu conheci estão em Os Corações Futuristas. Ele é verdadeiro, nada nele é falso, postiço, quero crer. Mas se eu disser que Samuel é a pessoa de Manuel, por exemplo, nisto eu estarei mentindo. Não é. As pessoas que eu conheci estão organizadas de um modo tal que elas não podem me dizer que são aquilo que está escrito. Neste sentido, não é autobiográfico. Em resumo, para ser claro: é um livro autobiográfico porque fala da experiência viva que travei, aqueles jovens eu vi, aquele mundo é real, mas não é autobiográfico porque desse mundo eu não fiz uma reportagem, um relato objetivo. É o mundo da ditadura que eu senti. É o mundo terrível que faz até hoje ex-presos políticos levantarem-se de madrugada, e dizerem para a mulher, "arruma a mala, arruma a mala, que a polícia vem aí". -E você, você mesmo, a sua pessoa, está nele? -Sim, em vários momentos, por que não dizer, em todo o livro. -Não é isto. Eu pergunto, em que personagem você está? -Sim, estou, mas nos termos que te falei antes. Estou em Carlos, em Samuel, estou em João, estou em Vevê. Há momentos de Samuel que me tocam mais particularmente, na sua relação com a mãe, como aqui: "Nesse dia Samuel descobriu uma nova faceta na mãe. Depois do enterro do seu pai, ao voltar para casa, e ver os cômodos ocos, como sempre acontece quando uma casa perde um dos seus moradores, ela lhe disse: "-O que você quer comer? Vamos tratar de comer. A partir de hoje o meu filho é quem manda. "E abraçou-o. E chorou, sentida, desvalida e calorosamente, como a Maria dos seus oito anos. Samuel percebeu, no íntimo, que as lágrimas da mãe caíam sobre o ombro dele como as lágrimas de uma mulher infeliz que encontrou o seu amor. Ele a sentiu em seu peso e sua graça, graça pela solidariedade que o invadiu, peso no entanto por saber que não poderia suportar tamanha esperança." -Que outros livros você escreveu? -Tenho uma novela inédita, O Caso Dom Vital, que é uma sátira crua e dura do ambiente perverso, por que não dizer, pervertido, em um colégio privado. Nela, uma criança, uma aluna é morta em plena escola, e isto gera um inquérito policial que vai desmontar a estrutura de uma boa escola cristã. Esse inquérito, arbitrário, ridículo, vai mostrar também como funciona o método de investigação da polícia. É uma novela policial à maneira de uma ópera-bufa, em muitos momentos. Outro livro, ainda sem nome, fala do amor em 2 tempos - talvez este seja um bom nome, "O amor em dois tempos". No primeiro tempo, do amor que nasce na adolescência, um amor de incesto, com os impedimentos e ardor desse impedimento. No segundo tempo, do amor ao fim, de um casal de velhos, quando tudo, menos a sensibilidade, é perdido. -E agora, o que você escreve? -Para não dizer nada, digo-lhe que escrevo semanalmente em La Insígnia e no Observatório da Imprensa. Artigos, crônicas. Mas livro mesmo, eu estou como uma cabra, a ruminar, o quê, eu não digo. Penso muito, aqui e ali em Os Corações Futuristas. Por enquanto, este livro é meu horizonte. E o meu ponto de partida. |
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