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La insignia
18 de junho de 2006


Um homem com qualidades


Helena Vasconcelos
Storm. Portugal, junho de 2006.


Por volta de 1962, Gustav Rau, um influente e abastado homem de negócios alemão, tomou uma decisão que mudou radicalmente o curso da sua vida. Tinha quarenta anos e resolveu que era tempo para se dedicar às suas duas grandes paixões: a medicina e a arte. Gustav nasceu em 1922 em Estugarda. O pai era dono de fábricas de têxteis e de componentes para automóveis da Mercedes Benz, na rica e industrializada região da Alemanha que lhe serviu de berço. Para agradar ao pai, que desejava vê-lo à frente do seu império com uma formação adequada, Gustav estudou economia e ciências políticas na Universidade de Tübingen até ser chamado para o serviço militar, já em plena 2ª Grande Guerra, em 1942. Serviu o exército durante dois anos mas as suas convicções anti nazis levaram-no a fugir para Inglaterra em 1944, onde se entregou às tropas aliadas, tendo conservado o estatuto de prisioneiro de guerra até 1947.

Nessa altura voltou à Alemanha, terminou os estudos e dedicou-se aos negócios do pai. Quando este morreu em 1970, Gustav herdou a sua fortuna e a de um tio e resolveu utilizar o legado de uma forma que poderemos considerar, hoje em dia, como totalmente inesperada e surpreendente. Decididamente vendeu tudo o que possuía para perseguir o seu desejo de se dedicar a nobres causas filantrópicas em África. Tinha tirado o curso de medicina na Universidade de Munique, especializando-se em doenças tropicais e em pediatria e a resolução de alguns dos problemas mais prementes do então chamado Terceiro Mundo parecia-lhe um objectivo capaz de satisfazer os seus desejos. Partiu para a Nigéria de onde seguiu para o antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo, onde se dedicou à prática de medicina na região de Bukavu, junto à fronteira com o Ruanda. Foi aí que, em 1977, fundou um hospital com 300 camas e criou uma Fundação destinada à angariação e distribuição de alimentos. A sua acção como médico e impulsionador de programas para uma melhor assistência a crianças subnutridas, providenciando uma assistência de saúde de acordo com as múltiplas necessidades da região, contribuiu para um eficaz melhoramento das condições de vida nesse remoto lugar. A sua vida de médico na selva era entrecortada por visitas à Europa para adquirir obras de arte, construindo com "paciência e paixão" - de acordo com as suas próprias palavras - uma extensa e valiosíssima colecção que, trinta anos mais tarde, conta com cerca de mil objectos que abarcam 240 quadros de grandes mestres até ao século XVIII, 160 pinturas dos séculos XIX e XX, 220 esculturas e, ainda, mobiliário e objectos de arte.

A sua vida - era filho único, ele próprio não teve filhos e manteve-se solteiro - é tão singular como a sua forma de coleccionar. Não era um especialista em História de Arte. Tão pouco recorria aos serviços de intermediários ou conselheiros, preferindo usar o seu "instinto". Deslocava-se pessoalmente a galerias e leilões para adquirir as suas peças de eleição que desejava que constituíssem um corpus representativo do percurso da arte europeia dos últimos seiscentos anos, o que veio a acontecer. Desde os alvores do Renascimento, com a magnificência dos painéis de Fra Angélico ( 1396 ? - 1455) até à arte depurada das naturezas mortas de Giorgio Morandi, em meados do século XX, as suas escolhas reflectem as inquietações e glórias do que é chamada a Pintura Europeia.

Em 1999, Gustav Rau decidiu legar a sua colecção à Unicef de Colónia com o objectivo de apoiar acções humanitárias, deixando-a em depósito no Museu do Luxemburgo de Paris. Foi aí, em Julho de 2000, que pela primeira vez foi mostrada ao público uma selecção de cerca de 100 obras que constituíram a exposição "Obras-primas da Pintura Europeia, Colecção Rau", organizada pelo próprio - que viria a morrer em 2002 - e por Marc Restellini. A partir daí, a mostra tem corrido mundo. Foi já apresentada em Roterdão (Holanda), Colónia e Munique (Alemanha), Bérgamo (Itália), Bogotá (Colômbia) e Portland, Oregon (Estados Unidos da América). Agora, é a vez de Lisboa a acolher no Museu de Arte Antiga, às Janelas Verdes, um acontecimento imperdível, não só porque é uma ocasião única para apreciar de perto obras que, de outra forma, só poderão ser vistas em catálogos - pouquíssimas pessoas tiveram acesso a elas antes da primeira mostra em Paris - mas também porque o roteiro expositivo constitui uma verdadeira lição de História de Arte.

Gustav Rau soube escolher e a sua colecção, ou pelo menos a parte dela que nos é dado conhecer, contém verdadeiras preciosidades, a par de obras de artistas menos conhecidos como por exemplo Taddeo di Bartolo, Lovis Corinth e o espanhol Zuloaga que muito influenciou o português Mário Eloy. A organização da mostra - pelo o que nos é dado ver no Catálogo - está ancorada na clássica classificação por Escolas: Italiana, Holandesa (Países Baixos), Francesa, Alemã, Espanhola e Inglesa e abarca obras de artistas que pertenceram a correntes e movimentos como o Impressionismo, o Expressionismo, o Fauvismo e o Simbolismo. Para além de trabalhos de artistas mais recentes e bem conhecidos como Manet, Degas, Bonnard, Sisley, Pissarro e magníficas paisagens de Monet, existem verdadeiras "jóias da coroa" como os já citados painéis de Fra Angélico, uma dilacerante Pietá de Vittore Crivelli (irmão de Carlo Crivelli), uma "Flora" de Tiepolo, radiante de beleza e sensualidade e um belíssimo retrato de Renoir que ainda não ostenta a vulgaridade de obras posteriores. De referir, ainda, um poderoso El Greco (S. Domingos) e uma "Bacante" de Courbet, o artista que Baudelaire considerou "um fanático da natureza positiva e imediata".

Para quem estes nomes soam como familiares e que se habituaram a ver a História de Arte como um território bem masculino, talvez constitua uma surpresa a representação de artistas, de mulheres, nesta colecção. Gustav Rau preocupava-se e interessava-se por pessoas, principalmente por crianças - é notável a sua forte predilecção por retratos, por rostos e corpos - e, por isso, não é de estranhar que uma das peças centrais seja uma pintura de Mary Cassat, "Louise amamentando o (seu) bebé". Cassat que nasceu nos EUA e se radicou em França, tornou-se conhecida pelos seus retratos de cenas familiares que privilegiavam a relação entre mães e filhos.

As outras pintoras que cativaram o olhar do coleccionador são Elizabetta Sirani (1638 - 1665) que trabalhou com o grande mestre de Bolonha, Guido Reni e que, apesar de ter morrido com apenas 27 anos, deixou um valioso espólio artístico; Judith Leyster (1609 - 1660), uma holandesa amiga de Franz Hals que se tornou membro da Gilda de Pintores de Haarlem, um facto que não é de desprezar, uma vez que as famosas organizações de artesãos dos Países Baixos se guiavam por rigorosos critérios; Elizabeth-Louise Vigée-Le Brun (1755 - 1842) que foi a retratista oficial da rainha Maria Antonieta, saiu de França com a Revolução e viajou por toda a Europa, tendo-se fixado na Rússia, um país que ela considerava a sua segunda pátria; e a parisiense Marie Laurencin (1883 - 1956) a pintora do "mistério feminino" que viveu uma relação tempestuosa com o poeta Apollinaire.

Mas há muitas outras (e boas) razões para visitar esta exposição (*), organizada de forma a permitir, nas palavras dos comissários, " uma visão global do que foi a produção pictórica na Europa entre a construção do modelo renascentista e a sua desconstrução. Assim, o critério da cronologia e, pontualmente, o da geografia cruzar-se-ão com uma perspectiva autoral e temática."

O próprio título, " De Fra Angélico a Bonnard. Obras-Primas da Colecção Rau" aguça imediatamente o apetite e coloca uma questão interessante. Na realidade começa pelos painéis de Fra Angélico, executados entre 1424 e 1425, representando S. Nicolau de Bari e S. Miguel, originalmente pertença do convento de S. Domingos em Fiesole, Itália, obras representativas do período de emergência do movimento renascentista e consideradas pelos peritos como a primeira pintura reconhecida do artista florentino. Mas a mostra não termina em Pierre Bonnard (1867 - 1947) mas sim com Morandi, como já foi referido. Porquê Bonnard, aqui representado por uma paisagem e uma das suas célebres "vistas" a partir do interior de uma casa? O organizador da exposição, Robert Clemenz nada refere no seu texto de introdução ao catálogo da exposição no Art Museum em Portland. Portanto, qual terá sido o critério? Será porque tanto Fra Angélico como Bonnard foram artistas que fizeram "pontes" e passagens determinantes entre estilos e movimentos, no primeiro caso entre a arte gótica e a renascentista, no segundo porque se trata de um artista dificilmente classificável, que se moveu entre o impressionismo, o simbolismo e o cubismo, redefinindo o espaço ao introduzir figuras geométricas e revolucionando o uso da cor? Um assunto a ser debatido pelos historiadores de arte e não só.

Uma ou mais visitas ao MNAA tornam-se, portanto, indispensáveis. A dinâmica imprimida a este Museu, que se está a tornar um ponto de passagem e de reflexão a nível internacional, revela uma grande vontade de "fazer bem", de redimensionar a sua importância e interesse. Só assim, acolhendo exposições desta envergadura e valorizando o seu precioso acervo é que poderemos ter a certeza de contar com uma saída da apatia e da imobilidade. A equipa chefiada pela directora, Dalila Rodrigues, está de parabéns.


(*) Exposição no MNAA, Museu Nacional de Arte Antiga
Rua das Janelas Verdes, Lisboa, Portugal
1249 - 017 Lisboa
Tel. (351) 213912800
Fax (351) 213973703
http://www.mnarteantiga-ipmuseus.pt
Entre 18 de Maio (Dia Internacional de Museus) a 17 de Setembro, 2006
Título da exposição: Grandes Mestres da Pintura: de Fra Angelico a Bonnard
Subtítulo: Obras primas da colecção RAU
Curadoria: Museu Nacional de Arte Antiga / Dalila Rodrigues e José Alberto Seabra

Nota: Este texto foi publicado na revista ELLE portuguesa



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