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16 de julho de 2006 |
Urariano Mota
«O filme "Lugares comuns", do bom cinema argentino....» Assim comecei, e assim, mal começado, de imediato vi que tudo que escrevesse terminaria por ser um grande e vasto apanhado de lugares-comuns. Dizer que o filme é bom - e observem, por favor, a gradação, o sentido particular do "bom", que entra em lugar do escrever que o filme é um muito bom razoável -, dizer que o cinema argentino é bom, e neste caso deseja-se mesmo dizer o que se escreveu, bom, aquilo que se encontra entre o ótimo e o razoável; dizer que o filme se apóia em um roteiro, e que o cinema argentino tem roteiros, bons roteiros, que se apóiam na fabulação da literatura, quando não realizam uma literatura no cinema; dizer que cinema não é só imagem, não é só uma câmera na mão, e que o caminho autoral, do diretor, passa pelo aprendizado também da leitura que não é cinema - tudo isto foi bem e melhor dito, escrito, em mais de uma oportunidade. Repetir esta trilha seria repetir a vereda-caminho-percurso trajeto e itinerário de um tedioso lugar-comum.
Daí que pego uma variante, quase uma fumaça no filme: a condenação ao vício de fumar. A condenação ao cigarro, se assim me expresso bem claro e vulgar. Por Deus - este grande lugar-comum - por Deus, já sei que sobre estas linhas desaba uma condenação dos amantes das artes, do cinema, e do cigarro, mas não nessa ordem. Comecemos pelos amantes do fumo: têm razão todos os viciados, adianto, desde já. Fumar é mesmo bom, é melhor que bom, é ótimo. Sobre isto não vamos discutir, porque, saibam, louco é quem discute com viciados: eles possuem uma lógica infernal, certeira, irrespondível, que derruba todo e qualquer argumento. Se dizemos a um, largue esse vício, ele responde: - "E o que ponho no lugar? Somente se perde um vício se se puder substituí-lo por outro". E não lhe diga que poderia substituir o fumo pelo hábito de mascar chicle, pelo vício de comer frutas, de chupar pastilhas de menta, praticar esportes, correr, não lhe diga, porque a isto ele perguntará: - "Mas tem o mesmo sabor?". Fumar, portanto, é ótimo. Mas mata, voltamos. Ao que respondem os viciados, e entre eles um brilhante editor espanhol: - "Pero os tóxicos dos automóveis, a fumaça tóxica das fábricas, os alimentos com aditivos químicos, o câncer da ordem social, tudo isto e em conjunto mata e mata mui mais". Ao que continuamos, pois a insistência, o predicar de um ex-fumante é pior que a de um pastor protestante: - Pero o fumo é você próprio sendo o seu carrasco, é você se matando aos poucos! A isto, o editor responderá: - "Hombre, para morrer eu não tenho urgência. Desejo mesmo morrer pouco a pouco. Depois, todos morrem, de uma forma ou de outra. De câncer, de bala, de guerra, de acidente. Dos gêneros da morte quizás o morrer a fumar seja o mais belo. Chega a ser poético, musical, como el vuelo del moscardón". Bueno. Os amantes das artes e do cinema, unidos em um só bloco, dirão que é de um reducionismo infame perceber em "Lugares comuns" uma condenação ao fumo. Que mesmo de passagem, em secções e quadros curtos, essa condenação não existe. O que há, ó estúpido, dirão aqui e ali com modos educados, o que há, imbecil, é a fala de uma personagem, é a morte de outro, dentro de uma paisagem de câmbios na economia, de mudanças na sociedade, a narrar momentos de uma vida etc. etc. etc. Aqui, mais uma vez, têm razão. A película não se realizou para uma campanha antitabaquista, digamos assim. Pero se nos permitem a persistência que possuem os anunciantes das boas novas do evangelho, diremos: Mirem. Há uma propaganda subliminar em toda obra de arte. Acabamos de escrever a frase e já sentimos um puxão, nas orelhas. Propaganda, e subliminar, na Arte?! Em busca de uma frase mais própria, diríamos então que há idéias, visões de mundo influenciadoras em toda obra de arte. Menos mau, agora. Ainda que os personagens não venham a nos apontar o dedo, ainda que não dêem discursos na base do "façam isto, que é bom", como nos parece ter sido a tônica de certa literatura gerada pela União Soviética, é inegável que os autores, e suas obras, transmitem pensamentos de grande força para a consciência. E o alumbramento em que nos deixam, a persuasão, digamos, daquele mundo que apenas entrevíamos, muito tem a ver com a vitória da arte, ou da sua derrota. Quando um autor de gênio como Dostoievski escreve um livro como Os Demônios e fracassa, nesse fracasso há uma vitória das suas idéias prévias, reacionárias, referentes ao movimento revolucionário. Em Os Demônios há um sinal invertido da orientação "façam isto, que é bom". Queremos dizer, a obra de arte não faz persuasão a partir do que ela anuncia, recomenda, mas por expressar comportamentos, atos, idéias, integrados no destino dos personagens. Que não poderiam ser de outra maneira, ou não seriam o que são. As idéias neles são sangue, pele, intestinos, numa palavra, orgânicas, constitutivas do seu modo de ser, do nosso modo de ser. Neste particular, a obra de arte é a maior e melhor força de esclarecimento e indução, de, vá lá, propaganda. E de tal maneira que mesmo arremedos de arte "convencem". E se nos permitem descer dessa pedra alta, onde nos equilibramos com esforço e fôlego de ex-fumante, se descemos do alto para o factual, para uma circunstância da película, o professor Fernando é um homem que fuma escondido, que fuma contra a vontade da esposa, porque não deveria mais, para dilatar um pouco mais os seus dias na terra. É um fato menor, é certo, é uma circunstância pequena da narração maior da mudança, da decadência de uma cidade européia na América do Sul, como se acostumou a ser Buenos Aires. Mas é um fato necessário, o fumar, o fumar em momentos de angústia, fumar é uma exigência para um professor de literatura, para um socialista por convicção, o fumar contra as ordens médicas é uma resposta, pois o seu próprio mundo está se acabando. Aposentam-no contra a vontade, porque o mestre passou a ser peixe fora d'água na nova ordem econômica. Diante deste fato mais grave, que se fodam os médicos, e que se foda a sua saúde, por supuesto. Como se dá ao fim. Certo, para tudo existe um fim, até mesmo para esta digressão, até mesmo para esta variante dos caminhos, dos lugares-comuns do Lugares Comuns. O professor teria um fim, o seu personagem teria um fim, desta ou daquela maneira. De susto, de bala ou vício. Mas quando o diretor, que também é o roteirista, escolhe essa circunstância, de fumar, como uma etiologia clínica, o personagem não fica em nada, em absolutamente nada artificial. Pelo contrário, ele se fortalece nisto. É um homem como nosotros. O personagem fica mais denso que a fumaça, mais sólido que a réstia de luz na tela. Por isto, ao fim do mestre e do filme, para os ex-fumantes fica uma mensagem subliminar, em nenhum momento enunciada: "não fumem, que é ruim". Mas como era bom, dizemo-nos, como era bom, vocês sabem o quê, e aqui termino, pois a vontade que vem agora nem é bom falar. |
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