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La insignia
17 de janeiro de 2006


Brasil

Cony, a Frente Ampla e o PCB


Luiz Sérgio Henriques (*)
Gramsci e o Brasil / La Insignia, janeiro de 2006.


A crônica de Carlos Heitor Cony sobre Ênio Silveira, publicada na Folha de S. Paulo em 14 de janeiro último, presta uma homenagem mais do que merecida ao "editor que deu ao livro o formato que hoje conhecemos" e que, mais do que isso, esteve no centro de algumas das articulações não militarizadas contra o regime militar instaurado em 1964 [1]. Aparecem, com o devido relevo, figuras como Renato Archer e Carlos Lacerda, e ações importantes, como a Frente Ampla, que buscavam reunir num mesmo movimento Lacerda, Jango e Juscelino, contra o arbítrio transformado em regime e método de governo.

Até aí a crônica de Cony merece uma leitura sem maiores reparos. Pelo contrário, evocar aqueles distantes acontecimentos, que já passaram da política para o terreno em princípio menos apaixonado da história, cumpre uma função muito significativa, num país em que tudo parece querer, aborrecidamente, recomeçar do zero, como se nada se acumulasse e transmitisse como legado para os novos atores e os novos contextos. Para dar um exemplo dos nossos dias: por trás da frase estulta de que tudo invariavelmente acontece "pela primeira vez na história deste país", repetida feito um bordão sem graça e sem alma - por trás desta estultice, há todo um obstinado trabalho intelectual de desqualificação da história das lutas sociais e dos seus protagonistas, com seus erros e acertos, grandezas e misérias.

O conceito de populismo andou por aí para isto mesmo. O velho PCB, eixo da esquerda brasileira durante décadas - apesar, inclusive, do fato trágico de ter sido quase sempre um partido ilegal ou apenas tolerado, um fato que, na melhor hipótese, quase sempre é visto como relativo só ao PCB e não ao conjunto do sistema partidário e da vida democrática de todo o país - nunca teria sabido organizar os subalternos em torno de uma lógica puramente de classe. Populistas por essência, os comunistas sempre teriam traído os subalternos, arrastando-os para alianças e frentes espúrias e impedindo a emergência de um partido operário quimicamente puro, que encarnasse a consciência messianicamente revolucionária, para além e independentemente de qualquer referência democrática. E é neste ponto crucial que Cony falha lamentavelmente, contribuindo, com frases curtas mas incisivas, para repisar preconceitos e lugares-comuns. Segundo Cony, na conjuntura da Frente Ampla, nos anos 1960, "o PCB atrapalhou o que podia". E, num salto mortal que desafia qualquer lógica mas talvez denote ressentimentos irremediavelmente cristalizados, afirma ter sido Ênio Silveira indicado pelo "partidão" para as reuniões preparatórias da Frente, apenas para que os comunistas "não atrapalhassem".

Difícil entender como é que os comunistas do PCB, querendo deliberadamente "atrapalhar", como requerido pela sua pérfida natureza, afinal indicassem um personagem da estatura de Ênio para participar das negociações. E mais difícil ainda é entender por que diabos iriam sabotar ou meramente dificultar uma ação oposicionista, como a representada pela Frente Ampla, que coincidia substancialmente com a sua estratégia de oposição democrática, não-militar e de massas; uma estratégia que, a duras penas e sofrendo inúmeras defecções nas próprias fileiras em prol da luta armada, iam propondo para o conjunto das forças interessadas na superação do regime militar. E, como me lembra Gildo Marçal Brandão, no seu Depoimento editado pela Nova Fronteira Carlos Lacerda, de modo insuspeito, elogia como "profissionais" e "muito bons políticos" os representantes do PC com os quais tratou da Frente Ampla, contrariando frontalmente a opinião de Cony.

Aquela estratégia do tipo frente democrática, como é sabido, revelou-se a mais adequada para a derrota da ditadura, ainda que não caiba aqui qualquer reivindicação exclusivista nem manifestação daquele tolo sentimento de "vaidade de partido", que, por sinal, tão gravemente afetaria a força dominante da esquerda brasileira a partir dos anos 1980. A redemocratização, evidentemente, foi uma conquista de toda a sociedade brasileira, não apenas dos comunistas do PCB. E estes, paradoxalmente, mesmo tendo "previsto" com alto grau de consciência os passos da redemocratização, não tiveram forças para deter o próprio declínio ou - o que teria sido infinitamente mais importante - para generalizar teoricamente, e tornar patrimônio comum das esquerdas, o amor às formas da democracia política e sua consagração definitiva, e sem ambigüidade de nenhuma espécie, como o terreno mais adequado para a luta por padrões mais altos de civilização e até pelo socialismo - se é que estamos prontos para retirar desta palavra, de uma vez por todas, qualquer significado de doutrina milenarista, com sua ortodoxia, seus guardiães e os conseqüentes "heréticos e renegados", reformistas e revisionistas traidores da "causa".

Nem o PCB teve forças para generalizar esta sua convicção, dura e contraditoriamente construída, nem outros partidos e personalidades de esquerda ou do campo que se costuma denominar "progressista", ou mesmo "libertário", tiveram a necessária generosidade para recolher algumas lições essenciais da política e da história. Cony, por exemplo, no texto que estamos comentando, afirma que "a Frente foi fechada, mas assustou de tal forma os militares que, quando houve um pretexto mais ou menos banal, o discurso do Marcito na Câmara, o regime assumiu a truculência com o AI-5. Daí em diante, a resistência só poderia ser a luta armada".

Diria que esta afirmação é simplesmente leviana e inconsiderada. Cony, romancista de mérito, deixa-se aqui trair gravemente - e não, como é óbvio, por falta de recursos para lidar com as palavras. O esquerdismo dos anos 1960, fortemente influenciado pelas teorias do foquismo, da guerrilha urbana ou rural, não queria "apenas" resistir à ditadura mas, de fato, implantar o socialismo através de uma forma dita superior de luta: aquela que se trava pelas armas. Esta visão militarizada da política, que, ainda por cima, levava o combate para o terreno em que a ditadura era inapelavelmente mais forte e só podia triunfar, foi primeiramente desmontada pelos fatos. A sociedade brasileira, diferentemente do que Cony ainda parece pensar, jamais legitimou a luta armada nem a viu como forma de luta mais avançada. Preferiu, mais "modestamente", expressar seu descontentamento e seu inconformismo através das eleições e da ampliação paulatina do terreno para as livres manifestações sociais. Lutamos, todos, contra a ignomínia da tortura e da repressão selvagem às diferentes organizações de extrema-esquerda, mas, como sociedade, jamais vimos na luta armada o caminho para amanhãs radiosos ou para a instauração de uma "ditadura do proletariado" ou de uma ditadura de qualquer espécie.

Também não creio ser esta uma polêmica passadista ou anacrônica. Se, afinal, a história política do país consagrou, como meio de deixar para trás o autoritarismo, a mobilização dos partidos e demais organizações civis, a luta pela Constituinte e a luta ainda mais árdua pela permanente construção institucional da democracia e sua viabilização como método de mudança social - se tudo isso aconteceu e já é história, desmentindo cabalmente a idéia de que "a resistência só poderia ser a luta armada", ainda resta (e como!) olhar com atenção a trajetória digna dos comunistas do PCB, no seu encontro acidentado e não isento de problemas com a democracia política. Um encontro que, uma vez plenamente realizado, mudaria para sempre, e de forma "epocal", o modo de ser dos que ainda hoje são comunistas e socialistas, assim como também mudaria o próprio modo de conceber e viver a democracia.

Há mais dignidade neste projeto - um legado do velho partidão cuja atualidade é cada vez mais insistente, num momento em que a esquerda no poder, e suas dissidências, parecem aturdidas em meio a um revolucionarismo incapaz de mudanças efetivas por ser refém daquilo que não compreende - do que a complacência com equívocos do passado ou a manutenção irrefletida de preconceitos duros de morrer.


(*) Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



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