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29 de abril de 2006 |
Nei Duclós
Tenho escutado horrores sobre o departamento de arte. Depois que o acesso ao lápis virou lugar comum, todo mundo se transformou em desenhista. A tecnologia colocou à disposição os mais completos programas de diagramação e paginação, mas esqueceu de avisar que existe um ofício por trás da ferramenta. Use o cepilho para aplainar uma tábua e verás a coisa torta que você vai conseguir. Mas como bastam alguns clics para enquadrar o texto em algo soberbo e colorido, então o costume é desprezar aqueles que abriram mão das galerias para descobrir nas letras, impressos, ilustrações, o equilíbrio necessário para que a direção não nos fuzilasse no dia seguinte ao fechamento.
O editor de arte é o exercício pleno do poder. O título é de três linhas, me dizia um deles, na Abril. Ele nem sequer prestava atenção no redator. A primeira linha é de sete toques, a segunda é de onze e a terceira é de oito. E te dava as costas. Tinha mais o que fazer. Essa matéria está estourando e não temos tempo para colocar no tamanho. Vou cortar pelo pé, diziam os diagramadores da Folha de S. Paulo. Por que meu texto entrou pela metade? A foto estava boa, reclame com teu editor. Desconfiado por natureza, o cara que senta atrás da prancheta e agora na frente da tela com todos os recursos não faz amizade no primeiro instante. Ele sabe que em qualquer pepino ele será o primeiro suspeito. A entrevista terminou com uma pergunta. O original do revisor está com visto e está certo. A que horas chega o artista? Ele sabe também que dificilmente será lembrado pelos colegas que prestam atenção apenas nas letrinhas. Esses fingidos cercam a arte para conseguirem o máximo de resultados para reportagens toscas. Querem que a arte salve a falta de informação ou de talento. Por isso o editor de arte é uma estátua de Rodin num circo de cavalinhos. Todos rodam pelo mundo afora, menos ele que sabe ser o guardião de um estuário, para onde confluem todas as palavras. O mutismo também tem a ver com a síndrome do palpite que assola as redações. Todos têm uma idéia genial sobre o aproveitamento do troço que eles produzem, mas nada entendem de identidade visual, de peso das imagens, de seqüência. E ainda ficam horas para inventar algumas legendas e títulos, como se isso fosse o parto da montanha mágica. Quando os textos eram coisas impressas em papel sedoso e duro, e que precisavam ser colados com grude comum numa grande folha, o diagrama (ou algo que valha), aconteciam episódios impensáveis hoje. Os donos do jornal que, deslumbrados, faziam o past-up da primeira edição. Era vê-los gordinhos e engravatados brincando de fazer jornal. Deixa eles, me dizia o diretor de redação, descobriram a pólvora, daqui a pouco cansam. O diagramador que colocava parágrafos de ponta cabeça e descobriram que ele era analfabeto. O poderoso que arrancava as notas da Ilustrada xingando o autor do textículo, furioso com a falta de conivência com a necessária auto-censura. O recado que foi posto sem querer na maçaroca que o pobre diagramador formatava como coluna social e que provocou um escândalo sem limites. O responsável pela arte não lia as notas, claro. O que estava no bolo, publicava. Pelo silêncio, todo editor de arte é um pensador. Mas alguns são fundadores de uma escola filosófica, como foi o caso de Reginaldo Fortuna, com quem fiz uma news-letter por dois anos. Fortuna era conferencista, pois já estava na idade memorialística quando me aproximei dele. Mas escutava como ninguém. Quando falei o que esperava do pequeno jornal ele me cravava aqueles olhos pequenos de quem enxerga o milímetro torto de um fio e dava uma piscada. Era o sinal de que tinha captado e que faria o certo, ou seja, como bem entendesse, e isso iria me agradar, como realmente não só agradou, como deslumbrou. Fortuna inventou a diagramação enxuta que mais tarde os softwares providenciaram. Fazia isso no olho e na mão, conceituando o tempo todo. Eu fazia uma diagramação suíça, na linha reta, no Pasquim, me contava ele em intermináveis papos depois de nossas reuniões de trabalho. Aí vinha o Jaguar e dava uma esculhambada em cima, colocava o Sig, essas coisas. Dava certo. O importante é que a arte obedeça aos fundamentos. A partir disso você cria o que quiser. Senão vira carnaval, não funciona. Ficava esperando minha reação. Eu só ouvia, imóvel. Ele continuava: Por que um livro tem margens ao lado dos textos? me perguntava. Para colocar o dedão, o polegar, para que a pessoa possa segurar o livro sem atrapalhar a leitura, dizia Fortuna, leitor assíduo de Gutemberg, o pai de todos. Fortuna era admirador dos argentinos que vieram para o Rio mudar as artes gráficas no Brasil. Admirava seus mestres e os citava sempre. Na época em que trabalhamos juntos fortalecemos uma amizade que tinha apenas sido ensaiada na época da Ilustrada (quando ele era o editor de arte do Folhetim). Fortuna estava praticamente fora do mercado. Ninguém importante (com a chave do cofre) telefonava para ele. Era o tempo das barbaridades inspiradas pelo USA Today. E nas revistas, era costuma entortar as fotos. Ninguém vira a cabeça de lado para ver ou ler, dizia ele, que implicava com essa mania confundida com criatividade. A arte não podia provocar torcicolo no leitor. E o olho humano é traiçoeiro, dizia. Lemos da esquerda para a direita e não de cima para baixo, então por que colocar título na vertical? Era moda. A moda agora é o flash, a porção cineasta da editoria de arte. Você visita o site e fica esperando o artista fazer suas demonstrações. Prefiro o fundo creme, a imagem fixa e limpa, o texto preto no branco, a elegância do maranhense Fortuna, que se foi prematuramente, no auge dos seus projetos. Fui avisado com algumas horas de atraso, pois os acontecimentos se atropelaram. Peguei o metrô (trabalhava na avenida Paulista) e desci no cemitério da Consolação. Custei a descobrir o local. Todos já tinham ido embora. O sol forte batia nas flores, nos recados, nas saudades, nas orações recém feitas. Eu estava lá, no meio de um mar de sepulturas, diante de um jazigo oculto, desconfortável com a presença do sol quase a pino. O choro veio descontrolado, porque eu sabia que sentiria falta daquela voz ao telefone, me dizendo tudo o que eu precisava saber sobre imprensa, arte, diagramação, redação, sacanagens do mercado e tudo o mais. Fortuna era o conferencista de uma amizade preciosa, a pessoa que sabia tudo e que representa não só seus pares (todos seus discípulos de uma forma ou outra), mas principalmente os veteranos que fizeram História e para os quais temos uma dívida impagável. Jamais saberemos retribuir o tesouro que ele nos colocou nas mãos e que se espalha por muitos ofícios, entre os quais o de magnífico cartunista e desenhista, texto admirável de humor ultra-sofisticado. No Correio da Manhã dos anos 50, criou duas páginas de humor para onde acorreram os grandes cartunistas que até hoje dão as cartas (e debochava das seções que publicavam as piadas e colocavam em cima "Humor"; é para avisar, dizia, ele, em riso convulso). Ao lado de Tarso de Castro, criou o Panfleto, o Pasquim, Folhetim, a nova Careta, entre muitos outros veículos. Fez misérias com seu Diz, logotipo, quando colocava a publicidade no seu devido lugar, sem os salamaleques de hoje. Poucas pessoas compareceram ao lançamento do seu livro Acho tudo muito estranho. Fortuna não era da moda. Tinha atingido a eternidade. |
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