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12 de abril de 2006 |
Nei Duclós
Cada batida da roda no trilho é uma paisagem nova que a janela improvisa. Não nova no sentido de novidade, mas verde quando é pampa, azul quando é serra, infinito quando é água. O tranco do passo da locomotiva leva o vagão para a curva do destino. A fila de imagens que não canso de olhar é o cinema que me falta. Amanhecer ao lado da grande tela de vidro embaçado é antever o sol que ainda não veio, e basta uma lufada de mão na neblina cristalizada para ver um raio que atinge o pássaro ao pé de um riacho, a ponte inútil de madeira comida, o gado esparso na grama cercada. Mais um pouco de luz e tudo se descortina, principalmente a viagem que talvez agora chegue ao fim, depois de uma noite mal dormida, em meio à população que se dirige a algo que não entende, a vida passada em trajetos sem sentido. Ao meio dia é hora do almoço na estação antiga e conviver com o cheiro de panela de ferro, arroz de outras vidas, talvez com o gosto de infância ou de liberdade. A carne que só existia naqueles lugares ermos, para onde jamais voltaremos, mas que ficam no corpo como sinais incompreensíveis. O refrigerante em garrafas escuras, que guardavam licores abandonados, e as prateleiras onde se divisava um rádio de ondas curtas, que pegava a guerra distante e a música que sumiu totalmente do mapa.
Estrada É de trem que eu preciso, para chegar ao tempo que me absolve. Não se trata de fugir ou de puxar a memória como um elástico frio. Mas de viajar de novo, enquanto o país desmoronado nos permite uma trégua e haja homens de chapéu e senhoras de véu na cabeça e adolescentes como nós, empertigados em nossas roupas providenciadas pela mãe que nos deus adeus no ponto de partida. Ela ficou lá plantada, enquanto, ingratos, sumíamos para o futuro, aquela mãe que não nos abandona e reza por nós enquanto fazemos alarido nos bancos esfolados de couro velho. Passeamos pela serpente enferrujada, apertados em corredores de bancos ou de dormitórios precários, até chegar ao restaurante onde arriscávamos uma cerveja fabricada na beira daquela estrada, porque o mundo se localizava no lugar onde estávamos e não era essa confluência de nadas, em que não nos deciframos, mesmo que tenhamos certeza de que é assim que seria, e nada poderíamos mudar com nossas calças curtas, nossa camisa de jersey, nosso cabelo engomado, nossa escassez de criaturas datadas. Mala Queríamos saber o que o arco-íris nos reservava, sem atinar que o trem era o que passaríamos a vida buscando. Não era nossa intenção ficar fixos neste eterno presente, em que não se tolera reminiscências, e quando elas existem é para mentir sobre o que fomos um dia. Por isso faço a mala, ponho meu terno azul marinho, e envergado sobre mim traço a viagem de volta. Aguardo junto com outros passageiros que, como eu, voltam para reencontrar o que deixamos para trás. Estamos novamente enganados. Não é no fim da linha que teremos novamente o café com pão da família perdida, nem na cidade que deixamos por mero capricho. É esse retorno que nos incomoda, porque há desconforto, noite mal dormida, solavancos. E talvez o trem atrase outra vez, já que ele não existe mais, mas teima em ficar parado algum tempo embaixo da lua cheia, enquanto ficamos aflitos à espera do reinício do impulso que nos carrega. Teto Nunca vamos aprender que andar é o caminho, e que os destinos, no começo ou no final da jornada, são mais precários do que qualquer sonho despertado no meio da noite, quando vemos o teto do vagão sumir para que possamos ver as estrelas. Isso tem me acontecido ultimamente. Deito e olho para cima e vejo novamente o céu que deixei há poucos instantes. Com todas as estrelas e fiapos de nuvens, o que torna a visão ainda mais verossímel. É como acampar sem barraca, contar estrelas cadentes, seguir o risco de satélites que usam as constelações como parada. No fundo da madrugada, o trem pára novamente. Olhamos pela janela, que também dorme. Uma luz cercada pelo fogo fátuo das mariposas nos diz que ali é um ponto conhecido, por onde passaremos mais uma vez em direção ao que não nos consola. Crianças se agitam, senhores do povo conversam baixo sobre pescarias e negócios. Há um cheiro de cabelos engomados, de chapéu de feltro, de xales de lã. Onde estou? me pergunto. Talismã Estou no meio do meu ofício, que é tentar entender a passagem obscura pela terra envolta em mistério. Estou só, como a criança que adormece no crepúsculo e acordo na boca da escuridão com um solavanco. Ela vê o homem fardado passar com seu boné de autoridade máxima da viagem. O homem recolhia passagens quando todos se aboletaram pelos bancos. Agora ele vigia o sono de quem escolheu esse momento para percorrer a trilha insana de uma vida. A criança fecha novamente os olhos e o embalo da serpente emplumada o leva para longe. Para lá, onde a poesia dorme e as palavras soltas como um rebanho pastam no esplendor de uma revelação. Nada nos salvará desse enigma. Por isso agradecemos a Deus quando o dia firma e alguém oferece um café recém feito, uma bolacha dormida ou um jornal comprado na corrida numa parada qualquer. Entre um gole e a mordida do trigo providencial, vemos estampada na primeira página nosso rosto adulto, a nos olhar com ar sagrado da santidade. Para esse rosto rumamos, carregando a infância como um talismã. Ela está dentro de uma pequena caixa, que guardamos no sobretudo. Da tampa aberta, salta a bailarina, ao som de uma valsa tocada por cristais e acompanhada pelo brilho de diamantes de um filme que vimos no cinema lotado, quando havia cinema e quando éramos a alegria da criação em desencanto. |
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