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1 de abril de 2006 |
Nei Duclós
A palavra não se instala nas criaturas por prazo de validade. Não é porque a
criança completou determinado número de meses que estará automaticamente
apta para articular a ponte com seus semelhantes. É um trabalho árduo. Os
instrumentos disponíveis para a fala entram em fase dura de exercício desde
o primeiro instante. O choro e, quando necessário, o berro, são as primeiras
manifestações que servem para alertar sobre o uso dos recados. Mas entre
manifestações desse tipo e a primeira palavra, há uma série de eventos que
incluem as nuances definidas pelo som que passa na garganta e depois
encontra a gruta onde mora a mágica, a língua em movimento, os dentes e o
céu da boca, limites que decidem sobre as consoantes em choque com as
vogais trazidas do berço.
Vejo isso na minha neta, que me resgatou a memória dos bebês, da qual estava apartado por ter sido pai muito cedo - aos 24 anos, coincidindo com minhas primeiras redações. Quando entrei na Folha da Tarde, da Caldas Junior, abraçado a uma versão traduzida e resumida dos Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, além de provocar o comentário debochado dos veteranos ("pronto, mais um intelectual de sovaco", disse Jorge Escosteguy) eu no fundo queria levar para o novo ofício o que me seduzia desde muito cedo: a possibilidade de, num mundo escasso, conseguir sintonizar com a força da permanência. Tarefa impossível para quem foi jogado no mundo real, o de contar buracos de rua e fazer plantão no aeroporto. Assim como toda família espera a primeira palavra com o coração na mão de tanta ansiedade, no jornalismo fomos empurrados para a criação de um estilo, ou seja, a linguagem conquistada com esforço, diante de uma platéia de leitores radicais, os colegas da redação. Para isso era preciso humildade. Mas não totalmente naquele ambiente liderado por Walter Galvani, que tinha Danilo Ucha, Luis Fruet, Scotch (que me contava mais tarde, às gargalhadas, sua primeira impressão sobre o foca que chegava esperançoso de ler um livro no intervalo dos textos), entre muitos outros . Fui estimulado a colocar na roda o que me cercava e foi assim que fiz meu primeiro lead inesquecível. A notícia era saborosa. Um teco-teco vinha pelo campo e bateu numa vaca. O caso foi ao tribunal porque o fazendeiro não se conformou com a perda do animal. O juiz então perguntou para o piloto:
- A que altura o senhor vinha voando? - Pois na próxima vez, advertiu o juiz, venha na altura de vaca e guampa. A abertura inusitada provocou gargalhadas na redação e foi publicada. Foi assim que fui festejado na primeira vitória diante desse trabalho insano que é articular as palavras para que todos entendam e fiquem com vontade de ler. Quando migrei para São Paulo, empurrado pelo estreito mercado de trabalho na terra de origem, cheguei com as fumaças daquela festa e imediatamente fui colocado no meu lugar. Woile Guimarães me chamou num canto e sussurou: estes lugares comuns que você colocou aqui, seu gaúcho, são uma grande porcaria (não exatamente com essa abordagem família, mas com uma saraivada de outras, ainda impublicáveis). Redescobri então que deveria começar de novo, não para agradar o chefe rigoroso, mas porque essa era pedreira que precisava encarar. No rodízio que cumpri religiosamente pelos veículos, encontrei textos encarnados em pessoas brilhantes. Vi Macedo Miranda, filho, definir os contornos do texto de uma revista, de estrutura circular e com os parágrafos sintonizados sem nenhum vício; vi Ricardo Vespucci, de olho saltado, cinzelar textos perfeitos a partir de matérias de repórteres inigualáveis como Caco Barcelos e Audálio Dantas; vi Genilson César e Antenor Nascimento, nas madrugadas, conseguirem repassar para a publicação pequenas jóias do jornalismo e acompanhei o trato com a escrita que Humberto Werneck, Nirlando Beirão, Mino Carta e Wagner Carelli davam em cada linha, como se fosse a última. Foi assim que passei o tempo que me deram para viver sobre a terra. Plantado no jornalismo como um eterno aprendiz, me perguntava quando chegaria a hora de também colocar preto no branco algo que poderia ler muito tempo mais tarde. Foi nessa luta com a primeira palavra que inaugura um texto para se destacar do rebanho, e que define uma identidade sem esperança de que ela terá permanência, que trafeguei entre jornalismo e literatura, como vasos comunicantes que jamais se negam. Era a maneira de encarar os dois ofícios como um só, limpando de cada trabalho toda a veleidade que transforma sonho em papel datado. Uma criança, como o eterno foca, compõe a roda de sons com a alegria dos iniciantes, que aprende a sobriedade em contato com quem chegou antes. Depois das vogais dos primeiros instantes, surgem algumas consoantes para desencadear a pressa dos mais velhos. Ela disse mãe, ela disse vô, ela disse titio, exultam os adultos. Mas a criança guarda seus segredos trazidos da além vida. Uma sílaba pode batizar várias coisas e a celebração de uma vitória aparente entra em dúvida quando a mesma emissão de voz serve para mais de um batismo. É cedo ainda, nos dizemos. Ainda não veio a primeira palavra. Moramos nessa expectativa enquanto a criança deita e rola na véspera da linguagem. Ela engatinha, depois anda e aponta com os bracinhos esticados o que quer. Pássaros são chamados com gritos agudos. Um choro específico é a fruta fora do alcance. Mas chega o momento em que todos correm para registrar o que seria enfim o som, tão esperado. - Baia baia didi tum, diz a neta, para espanto da assistência. Para que não fiquemos frustrados, ela faz seu gesto característico: franze o narizinho e emite um sopro que é puro charme. Quem precisa de palavra quando o espírito é vasto e o amor rege nossas vidas fora dos esquemas poderosos que tentam nos esmagar com suas leis? |
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