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La insignia
12 de setembro de 2005


Ventos demais


Nei Duclós
La Insignia. Brasil, setembro de 2005.


Há excesso de ventos, mesmo para quem faz parte deles, como os pescadores. Foi-se o tempo da viração, quando ventos conhecidos mudavam de lugar. Aragem sobre a varanda faz parte da memória familiar, quando era comum abrir a casa para dissipar o mormaço. Pé- de-vento que guardava saci ou levantava saia, quando ainda existiam sacis e saias. Que subitamente fazia o chapéu tomar um elevador, quando se usava chapéu.

Talvez os ventos tenham se revoltado com a pouca importância que os novos contornos urbanos lhes reservaram. Não fazem mais parte da paisagem, a não ser em terras privilegiadas de ilha e pampa, mesmo assim sem a convivência próxima com os habitantes, como costumava acontecer. Decidiram então unir forças para que possamos entendê-los. Ou, pelo menos, enxergá-los. Ampliaram ou corromperam suas rotas originais e, confederados em ciclones, lambem a costa galopando as marés.

Ares de tempestades caem com granizo aproveitando o choque entre massas frias e quentes, espiralando-se em fúria e fazendo soar a trombeta em cidades famosas pela música que produziam. Levam por diante esse objeto permanente de desejo, o automóvel, empilhando-o de maneira assustadora. Conluiados com as águas, os ventos confederados assomam em lugares inéditos, aterrorizando populações cevadas nas calmarias, que agora se debatem, tentando chamar a atenção para a novidade tenebrosa, enquanto a metereologia ainda confia em satélites, previsões, algoritmos.

Os ventos resolveram fazer nós gigantescos em forma de tornados, atirando-se sobre as plagas que nunca tinham experimentado nada igual. Eles chegam revelados pelo raio xis das nuvens transfiguradas de pavor, fazendo um pacto entre o chão desesperado e o céu próximo demais. Arrastam correntes de coisas, como se constituíssem um sinal bíblico jamais captado pelos profetas.

O que nos dizem os ventos nesta hora em que a inocência perde a batalha em seus últimos redutos? Quando nada mais há esconder, quando sabemos o tamanho do estrago, quando temos noção exata do que foi feito de nós e do mundo em volta, todos os ventos resolveram se manifestar, livres de velhas amarras. Não há mais obstáculos para os ventos outrora represados pela consciência, a cultura, a esperança, que por um longo tempo aprisionaram essas forças que agora se desatam.

Vemos a assembléia de árvores pedindo socorro. Os galhos são nossos braços e as folhas soltas as palavras que tínhamos a dizer. Os barcos que estavam ancorados em rodízios de cais e trapiches, em baías mansas, agora se acotovelam nas pequenas ruas das vilas do litoral. O grande calado do nosso espanto atravanca o exíguo reduto dos hábitos acumulados.

Não podemos mais adiar a reflexão sobre esse desencadear de fúrias, que trazem revoltos os cabelos de extintos monstros marinhos. Como aliens forçando as frestas, como gigantes destelhando vidas, como deuses drogados que decidem dar uma volta no planeta entregue à desfaçatez, quadrilhas de ventos pilham propriedades e esvaziam os bolsos que estavam repletos de ilusões e farsas.

Somos agora retirantes desse sopro que nos acossa por todos os lados. Migramos da surpresa para a fuga e enquanto corremos vemos voando, ao nosso lado, tudo o que estava quieto e sereno. Os peixes se atiram sobre as planícies. As montanhas descem suas lavas de detritos. As cidades viram monturos. A vaidade humana descobre que os ventos, aliados das descobertas, voltaram enlouquecidos por um pânico ainda indecifrável. Talvez eles tenham cansado de nos mimar com seus balanços. E agora nos atormentam para que enfim possamos acordar.

No fundo da barca dorme o deus de que somos feitos. Ele desperta, fica de pé, adverte quem se entregou ao desgosto e num gesto acalma o vendaval. O nevoeiro se dissipa e a brisa, vento mulher, pousa ao nosso lado como uma pomba.



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