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22 de maio de 2005 |
Urariano Mota
Movido por acontecimentos recentes, esta semana voltei a ler Goethe. Não precisamente um livro inteiro, mas algumas frases, marcadas e marcantes desta vida que desejo ainda verde. E me ocorreu, enquanto relia alguns pensamentos, que grande autor de auto-ajuda perde o mundo em não ler Goethe! Antes que alguém, superior, torça o nariz a esta qualificação ultrajante de um clássico, leia estas frases colhidas como num lance de dados:
A noite é a metade da vida, e a melhor metade. Olho rápido e vejo que pincei 10 pensamentos. Mas poderia ter pinçado outros 10, 20, 30 ou mais 100. Todos de quase equivalente teor de sabedoria e estímulo. Cada um deles valeria uma crônica, um texto, um momento da vida onde ele, o olímpico e sereno Goethe, foi um guia, um apoio, um alento em horas de angústia ou de amargura. Por exemplo, existe melhor festa para um homem de meia-idade que o ouvir de um poeta que a juventude é a embriaguez sem vinho, ou que a noite é a melhor metade da vida? Certo, um cínico poderia responder que a velhice, em compensação, é o vinho sem a embriaguez. Ou mais simplesmente tão-só a ressaca. Ou mesmo que a noite às vezes chega muito cedo, bem antes da metade. Certo, mas os cínicos não compreendem Goethe. Ele é um autor que exige uma receptividade moral. Se não, vejam: "Todos os anos leio algumas peças de Molière, da mesma forma que costumo olhar de tempos a tempos gravuras de grandes mestres italianos. Nós, homens medíocres, não somos capazes de conservar no nosso íntimo a grandeza de tais coisas; temos por isso, de tempos a tempos, de voltar a elas para renovar em nós a impressão original". Nós, Goethe se dizia, os homens medíocres ... Que diremos nós, os verdadeiros medíocres, que perdemos horas da curta existência a ver comédias da mais grossa vulgaridade? Nós, os verdadeiros medíocres, deveríamos ler e reler e reler durante anos a fio coisas como: "A crença em nossa imortalidade vem do conceito de atividade, pois se eu me conservo ativo ininterruptamente até a morte, a natureza vê-se obrigada a conceder-me uma nova forma de existência logo que o meu espírito não possa suportar mais a minha atual forma corpórea". Que beleza conseguimos sentir diante de tal pensamento. Eckermann escreveu que ao ouvir isto se perguntou quem não quereria trabalhar até o fim para dessa maneira conquistar a cidadania da vida eterna. Nós, 176 anos depois, vemos nisto a visão de que o espírito em atividade rejeita o envelhecimento, melhor, rejeita e poderia superar o apodrecimento. É mais que um conceito, é uma pensamento de felicidade permanente. Então da Elegia de Marienbad nos lembramos, da paixão de Goethe aos 74 anos de idade por uma jovem de 19 anos. E do "não" que recebera, e do superior poema que fez, diante da recusa que um velho recebe nessa adolescência tardia:
".... Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi, Que podemos nós, os medíocres reais, dizer à prova manifesta desse espírito que se rebela contra o seu fim? Aqui, nesta altura, deveriam também findar estas linhas. Mas o espírito da lembrança do que este homem nos fez também aqui se rebela. Como olvidá-lo naquela quadra da nossa vida em 1977, quando deixávamos tudo em Pernambuco, emprego, mulher e filhos, e seguíamos com os olhos vermelhos para São Paulo? Seguíamos num rompimento que desejávamos definitivo, com os olhos voltados para o mar, para o litoral da praia pernambucana, o corpo para o Sul, o sentimento para o Norte. Então ele nos disse, na voz de um amigo:
- Se não obedeceres ao nasce e renasce... Sim, então eu compreendia, morre e renasce, morre e renasce, como as batidas de um músculo no peito. E com os olhos vermelhos seguia, porque desejava renascer, quando na verdade fazia um nascimento a fórceps. O leitor já vê que o escritor de auto-ajuda chamado Johann Wolfgang von Goethe é um gênio de ajuda muito especial. Ele não nos dá fórmulas, ele nos ensina um programa. Ele não nos dá palavras e ações mágicas, ele nos exige ação no mundo. Ele nos conforta, é verdade, e este é seu único parentesco aos livros de auto-ajuda. Mas que conforto duro! "O talento se educa no silêncio e o caráter na tempestade... Vive quem ousadamente vive....". Ou então: "Em um momento determinado da vida morremos sem que nos enterrem. Cumpriu-se o nosso destino. O mundo está cheio de gente morta, que ignora essa condição". Poderia ser dito que citações feitas ao acaso, ao azar, não valem. Que citações violentam o orgânico do contexto e do pensamento. É fato. Então vejamos o que ele pensa em uma obra madura, Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. E aqui sabemos que trocamos um mal grande por um mal menor, porque não poderemos no limite do tempo e destas anotações citar um pensamento com o universo que rodeia as aspas. - "Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas seu erro. Quem só saboreia pouco o seu erro, nele se mantém por muito tempo, e dele se alegra como se fosse uma felicidade rara. Mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro, conquanto não seja demente". Isto ele escreve na voz de um pároco rural, que explica a razão de Wilhelm não haver recebido antes uma orientação que lhe evitasse o erro. E mal temos tempo de meditar sobre esse programa de pedagogia, e mal temos tempo de digerir e maturar isto que deveria ser um sinal para professores, e sequer respiramos para meditar sobre a nossa própria experiência, das quedas que sofremos, porque Goethe, pela voz de Wilhelm, acrescenta: "De que outro erro esse homem pode estar falando, senão daquele que me perseguiu a vida inteira, que me fazia buscar cultura onde não havia nenhuma, e imaginar que podia adquirir um talento para o qual não tinha a menor disposição?" E quando, por fim, vemos nisto algo referente não só à vida de Wilhelm Meister, eis que Goethe conclui o Livro VII do seu romance com essas linhas luminosas: "Chegaram ao fim teus anos de aprendizado: a Natureza te absolveu". Meu Deus, permitam dizer, meu Deus, isto é mais que uma frase, um parágrafo assim é capaz de fazer de um livro uma força da natureza. Em letrinha miúda, após esta frase, anotei há cinco anos: É mais que um livro. É uma oração, uma prece. É um canto. É uma ambição de atingir o mais fundo e mais guardado e oculto do que é o homem. A estas linhas, em outra caligrafia, trêmula, foi acrescentado esta semana: Ter sobrevivido ao descaso e ao descrédito tem um sabor, mas como dói! Goethe sabia disto, porque mui acertadamente havia ensinado páginas antes, "a história do homem é seu caráter". Obrigado, poeta. Gracias, muchas gracias, companheiro de tormenta. |
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