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La insignia
22 de julho de 2005


Brasil

Cabo Anselmo e os neogolpistas


Fernando Soares Campos
La Insignia. Brasil, julho de 2005.


Janeiro de 1969. Eu contava lá com os meus 19 anos de idade. Foi nesse período que me apresentei a bordo do Submarino Bahia (S12) a fim de me incorporar à tripulação como marinheiro do serviço de máquinas. Como em todas as unidades militares da época, no Bahia havia diversos "secretas" (era como o pessoal denominava os agentes do CENIMAR - Centro de Informações da Marinha). Em qualquer setor de bordo, podia-se identificar pelo menos um deles. Eram, em geral, elementos do quadro subalterno, os quais faziam questão de exibir suas relações com oficiais de alta patente que os indicavam para aquelas funções de alcagüete. Na verdade, os "secretas" não passavam de colaboradores voluntários dos serviços de informação. Em troca dos seus préstimos, invariavelmente conseguiam transferência para servir em unidades de suas preferências.

Naquela época, momento em que o golpe militar havia se consolidado recentemente, através do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um sargento meu amigo, ali, entre as fainas de manutenção dos velhos Fairbanks Morses, me contava sobre a atuação do cabo Anselmo à frente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Cabo Anselmo transformara-se no mais famoso agente da repressão na Armada. No entanto sua atuação se dera sob o disfarce de um agitador a serviço das entidades de esquerda. Era um elemento infiltrado entre sindicalistas e estudantes, auxiliando o CENIMAR a monitorar os movimentos sindicais e estudantis. E era disso que o pessoal se lembrava. Alguns se referiam a ele imprimindo um tom de desprezo; outros falavam de seus liderados tratando-os com jocosidades, considerando-os elementos ingênuos, inocentes úteis; todos, porém, concordavam que o cabo Anselmo não passava de um oportunista, um indivíduo sem convicções ideológicas, tratando-se tão-somente de um pau-mandado a serviço das forças de repressão, um elemento sem vontade própria, movido por interesses pessoais menores.

Cabo Anselmo atuava como um agitador, agia no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, insuflando os marinheiros à indisciplina. Distribuía panfletos nas unidades militares, o que, por si mesmo, já seria suficiente para que todos desconfiassem dele. É inconcebível que um militar subalterno pudesse agir daquela forma sem o consentimento de autoridades superiores. E o líder dos "grumetes" fazia propaganda revolucionária nas dependências do maior complexo de instituições da Marinha de Guerra do Brasil (o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro), sem ser importunado, sem sofrer represália ou qualquer tentativa de obstrução de sua panfletagem - exceto alguns poucos casos em que a "repressão" e "punição" serviram apenas para lhe conferir aspectos de agente do "comunismo ateu". As eventuais punições que sofrera com base no regulamento interno tinham como propósito disfarçar as relações de servilismo do cabo Anselmo com a oficialidade do CENIMAR. Ele sofreu duas "punições de prisão rigorosa" por 10 dias em cada aplicação da pena. De acordo com o regulamento interno da Marinha, com mais uma punição dessas, ele seria automaticamente desligado do serviço militar (praticamente uma expulsão). E isso sempre foi fácil aplicar. Qualquer tenente que tivesse interesse em demitir um marinheiro perseguia seu desafeto e, com pouca sutileza, encontrava motivos para enquadrá-lo e enviá-lo para audiência de julgamento de sua infração, arbitrada pelo comandante da unidade.

Em pouco tempo de atuação, cabo Anselmo já se movimentava com muita habilidade e conhecimentos nos meios sindicais e estudantis, transformando aquela associação de marinheiros lá do CIAW em uma instituição parceira de legítimos movimentos da esquerda militante. No dia 27 de março de 1964, a AMFNB, sob a liderança de cabo Anselmo, provocou a paralisação de parte das atividades da Marinha. Os marinheiros "amotinados" recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho. Foram presos em um quartel do Exército, porém foram inexplicavelmente soltos, poucas horas depois, e saíram em barulhenta passeada pela cidade do Rio de Janeiro. Certamente os militares agaloados poderiam ter impedido que o movimento "insurgente" assumisse aquele vulto, pois conheciam seus movimentos desde o princípio, quando a proposta da AMFNB se limitava a proporcionar atendimento social e recreativo aos seus associados. A entidade era dirigida por disciplinados marinheiros, os quais, a exemplo do próprio cabo Anselmo, eram, em geral, elementos protegidos de certos oficiais graduados, do contrário não teriam oportunidade de criar qualquer núcleo de defesa dos próprios direitos dentro das instalações militares (a AMFNB não tinha sede própria, funcionava nas dependências do Centro de Instrução Almirante Wandenkolk - CIAW).

Há quem acredite que cabo Anselmo mudou de lado quando voltou do exílio (Uruguai e Cuba) em 1970. Engano. Na verdade, ele era um agente infiltrado nos movimentos populares que precederam o golpe militar. Sua primeira prisão, em 64, no momento da investida dos militares contra um governo legal e democraticamente constituído, não passou de um jogo de cena dos serviços de informação. E sua fuga da cadeia não foi senão mais uma etapa desse jogo. Veja que eu cheguei a bordo do Submarino Bahia em janeiro de 1969, e, naquela ocasião, os mais antigos já o tratavam como traidor (à boca pequeníssima, claro). Também a sua prisão pela equipe do delegado Sérgio Fleury (não se sabe como ocorreu), pouco tempo depois de sua volta do "exílio", foi, sem dúvida, mais uma armação dos aparelhos repressores, a fim de legitimá-lo como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e viabilizar a continuação de seu papel como delator.

O golpe militar que depôs o presidente João Goulart, usando tanques de guerra, jornais, emissoras de rádio e tevê e procissões de beatas, foi articulado com muita antecedência. Os movimentos golpistas começaram mesmo antes de Goulart sentar-se na poltrona presidencial, em 7 de setembro de 1961. Os conspiradores foram assessorados por fontes altamente qualificadas. No apoio logístico, contaram com a vasta experiência da espionagem ianque: sabotagem, tortura física e psicológica, propaganda, mercado, apoio financeiro, colonialismo, imperialismo, enfim, tudo que houvesse necessidade para conter o avanço do comunismo na América, que já contava com um péssimo exemplo: Cuba. O apoio recebeu o nome de "Operação Brother Sam". Em 64, no comando da operação, estava o embaixador Lincoln Gordon. Em atividade, os agentes, que chegavam travestidos de padre, pastor, jornalista, executivo, ou mesmo de simples turista. No entanto a singela insatisfação pessoal não constitui argumento suficiente para se executar um golpe de Estado. Precisa-se de "motivos" que justifiquem uma ação dessa grandeza. Os agentes da CIA e os conspiradores daqui e de alhures sabem muito bem que os autóctones entreguistas necessitam de "agasalhos" para aquecerem as suas glaciais consciências. Em 64, a "ameaça comunista" fez o papel de psicotrópico com efeitos sedativos, calmantes, estimulantes, antidepressivos... uma verdadeira panacéia, a fim de que os militares brasileiros fizessem "revolução" (num coquetel psicotrópico desses, deve ser acrescentada vitaminas morais). Em 64, uma esquadra dos Estados Unidos fora colocada on standby para o caso de as tropas brasileiras não darem conta do recado - o socorro emergencial.

Mas estamos mesmo em 2005. Os trabalhadores não pressionam o governo como em 64, exigindo radicalizações do tipo "reforma agrária já!". O próprio MST, de certa forma, aguarda na disciplina. Sindicalistas participam do governo central. Os militares estão ocupados em eletrificar os muros dos quartéis a fim de evitar que os traficantes de droga saqueiem os seus paióis. A Igreja Católica "parece" mais preocupada em fazer proselitismo para recuperar parte do rebanho perdido para os neopentecostais nos últimos anos. Num quadro desses, aparece uma oposição que não tem costume de ficar nesta posição. Porém não dá pra conceber uma passeata de capitalistas gritando palavras de ordem, nos centro das grandes cidades. Até que já ensaiaram alguma coisa parecida: tratores agrícolas invadiram o Planalto e centenas de fazendeiros agitaram-se em frente ao Palácio do Governo, aproveitando o momento para exigir uma polpuda ajuda financeira. Contudo a História indica meios mais sofisticados para fazerem seus "protestos": os tentáculos da mídia. E saibamos nós que os atuais golpistas preferem o enfraquecimento político do governo Lula, através da difamação e da calúnia, ao golpe do impeachment. Desejam ainda menos a deposição à força com o uso de tanques de guerra, como em 64. Querem voltar de "cara limpa". Entretanto temem a reeleição do ex-metalúrgico retirante da seca do Nordeste. Um homem que às vezes se confunde e fala coisas que os adversários usam para fazer chacota. E aí, ninguém se surpreenda se eles partirem para o vale-tudo.

O presidente João Belchior Marques Goulart era muito mais pressionado pela classe trabalhadora do que Luiz Inácio Lula da Silva, portanto aquele esteve mais vulnerável a agitações populares que resultassem em desestabilização de seu governo do que este. Goulart é tratado por muitos historiadores (e nem tanto) como um "fraco de caráter". Chegam a dizer que o seu governo "não foi derrubado", apenas "caiu de poder". Escrevem "histórias" contando que o golpe de 64 não fora o resultado de planejamentos conspiratórios delineados com muita antecedência, mas sim um movimento improvisado, oportunista. Hoje a imprensa já está se antecipando à História: antes mesmo da possível derrubada de Lula, já lhe conferem características desse tipo. Falam dele como um "acuado". Dizem até que tomou decisões atendendo exigências de Roberto Jefferson, quando do depoimento deste na CPI dos Correios e nas suas declarações à imprensa. No artigo "É só Jefferson mandar...", revista Época, assinado por Raquel Ulhôa, a autora apresenta a matéria com a seguinte epígrafe: "Depois de Dirceu, Lula demite três diretores acusados pelo deputado [Roberto Jefferson] de desviar dinheiro de Furnas e, acuado, se prepara para mudar o ministério". No contexto, encontram-se declarações atribuídas ao senador Álvaro Dias (PSDB): "Parece que só o senhor [Roberto Jefferson] demite neste governo. Pediu a demissão de José Dirceu e ele saiu da Casa Civil. Provocou a demissão das diretorias dos Correios e do Instituto de Resseguros do Brasil. Agora, com uma frase, derrubou a direção de Furnas". Cita-se ainda um certo (não dá nome) ministro que teria dito: "O que vai acontecer se na próxima entrevista Jefferson atacar mais gente do governo? Todo mundo que ele disser que é ladrão vai ser demitido na hora? Esse poder seria maior que o do próprio Lula". Pode não ser, mas parece que estão pintando propositadamente uma imagem de Lula de tal forma que, depois de ser banido do Planalto, seria colocado na galeria dos "fracos de caráter", como fazem com João Goulart.

Andei pesquisando sobre o cabo Anselmo e li alguns comentários estarrecedores. Não propriamente em relação ao alcagüete oficial da repressão, mas espantosos no que diz respeito à opinião de certas pessoas sobre a sua sórdida conduta: a delação que levou muita gente a ser sumariamente executada pelos aparelhos de repressão. Talvez um comentário desse tipo não merecesse qualquer referência., muitos preferem ignorá-lo, porém gosto de chamar a atenção para determinados sofismas que parecem meros equívocos de opinião. Apenas parecem. Tem um rapaz aí chamado Álvaro Velloso de Carvalho que escreveu isto:

...a revista Época publica uma matéria gabando-se de ter encontrado "o traidor", o cabo Anselmo. Foi ele quem denunciou dezenas de membros das guerrilhas, durante a ditadura militar, praticamente desmontando o esquema da luta armada. Segundo a revista, ele foi um "traidor da pátria". Traidor da pátria coisíssima nenhuma. Traidores da pátria eram os facínoras que ele denunciou; traidores eram os jovens descerebrados e desprovidos de senso moral, prontos a matar todos os seus inimigos políticos e a seguir rigorosamente todas as ordens que viessem de seus superiores da União Soviética ou da China. Sem as denúncias de cabo Anselmo, a ditadura teria sido muito mais terrível, e teria havido muito mais derramamento de sangue: a guerrilha teria continuado, e muitas vidas teriam sido perdidas no conseqüente confronto entre Exército e guerrilheiros. A denúncia de cabo Anselmo poupou muitas vidas, tanto de guerrilheiros, quanto de militares (e já mostramos aqui* como, comparativamente, morreram mais militares do que guerrilheiros durante a ditadura).

Será que muito em breve vamos ler versões deste tipo justificando os arrotos de Roberto Jefferson? Quem viver lerá.

Eu disse aí em cima que é um equívoco pensar que o cabo Anselmo virou a casaca depois de voltar do exílio no Uruguai e em Cuba, em 1970. Tentei comprovar isso contando sobre o que ouvi a seu respeito em janeiro de 1969 (ingressei na Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia em 1967 e, ao término do curso, embarquei no Submarino Bahia). Continuo afirmando que a AMFNB foi uma entidade utilizada "pelos próprios golpistas" para radicalizar artificialmente as lutas sociais e, assim, desestabilizar um governo que demonstrava simpatia pelos inimigos dos Estados Unidos da América (hoje está claro que o governo petista demonstra simpatia pelo governo venezuelano).

Em 1988, uns amigos meus, jornalistas pernambucanos, me indicaram como colaborador do jornal Folha de Pernambuco. Naquela ocasião (23/11/88), escrevi um artigo intitulado "As Especulações e os Golpes". Eis alguns trechos desse artigo:

Alguém aí já ouviu, em qualquer época, o anúncio [oficial] de um golpe de Estado em andamento?Acredito que não. Então, por que a imprensa nativa, geralmente ao som de boatos, procura as autoridades competentes para confirmar ou desmentir os rumores de um provável golpe que estaria sendo articulado nos bastidores do poder? (...) Não se especula as possibilidades de um golpe junto a quem deseja a virada da mesa. Negar é dever de quem conspira, ignorar é inconsciência de quem não tem compromisso com a Democracia; desmentir, baseando-se em declarações oficiais, é direito de quem não quer jogar lenha na fogueira.

Hoje o que me causa estranheza é ver que os próprios alvos de um golpe de Estado negam a existência de um complô contra o governo Lula, incluindo aí o próprio presidente Lula, que já exteriorizou seu ceticismo em relação aos "boatos" de golpe. Muita gente alega que a política do atual governo está plenamente alinhada com os interesses das elites econômicas e financeiras daqui e de além-mar. E por isso descartam as possibilidades de um golpe contra um governo eleito com esmagadora aprovação popular (só isso já constitui motivo suficiente para os derrotados nas urnas desejarem golpear).

Desconheço as verdadeiras diretrizes do governo brasileiro no que diz respeito à sua política econômica. Sei apenas que sou um dos milhões de trabalhadores vítimas do arrocho salarial que o presidente Lula tanto combateu quando fazia oposição às políticas econômicas dos últimos governos. Nesse sentido, concordo que os detentores do poder econômico continuam cada vez mais poderosos, e que nós, trabalhadores, permanecemos reféns do capital (produtivo ou não). Contudo não creio que os senhores da vida e da morte se contentem em comandar à distância; que se conformem em não ter o controle direto dos órgãos da máquina administrativa. Eles não aceitam ver as luzes dos holofotes iluminando um ex-metalúrgico. Não podem aceitar que um retirante da seca nordestina tenha o poder de mandar a Polícia Federal investigar e prender poderosos corruptos; que a "incultura dos iletrados" demonstre competência nas relações internacionais; enfim, para eles, dinheiro realmente não é tudo. o Poder institucional, sim, é a melhor parte do tudo. É o orgasmo.

Mas vamos parar de nhenhenhém e partir pros finalmente.

E finalmente gostaria de destacar um trecho do artigo "Um novo agosto com outros fortunatos", de Frédi Vasconcelos, na revista Fórum:

Depois da morte do PT o país será melhor. Toda a corrupção acabará e nosso servilismo à pátria mãe América voltará a ser com dantes, na terra de FHC Abrantes... Todos dormirão em paz no país mais injusto no mundo. Esse grito não terá efeito. Os donos do poder já decidiram e contaram com a ajuda de diversos idiotas e corruptos no PT e no governo. Mas mais uma vez tenta-se prender Gregório Fortunato para derrubar Getúlio, ninguém de verdade preocupado com o crime.

Você ainda está querendo saber por onde anda cabo Anselmo? Ora! desde o princípio ele está fazendo o seu papel de "secreta". O "cabos Anselmos" da Nova Era jogam excrementos no ventilador, falam e escrevem meias-verdades e mentiras completas. Na era da informática, os tanques de guerra já podem ser apenas miragens, projeções holográficas. A moeda agora não passa de uma ilusão ótica nos terminais de computadores dos bancos; a um clique num mouse ou no teclado, entram e saem do País como num passe de mágica. Mesmo com tudo isso, os golpistas precisam de pílulas filosóficas e de apoio moral. Terá sido por isso mesmo que, em agosto do ano passado, o novo embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Danilovich, pretendendo apresentar suas credenciais ao atual governo, errou de endereço e apresentou-se primeiro a sua ex-Excelência FHC?

Taí, gostei de La Guaira (Venezuela). Estive lá em dezembro de 1969. Será que, hoje, vendendo meu velho Renault, eu conseguiria comprar um chalezinho naquelas montanhas?


(*) http://oindividuo.com/avelloso/idiotas/eladir.htm
http://oindividuo.com/avelloso/idiotas/apocalipse.htm



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