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4 de julho de 2005 |
Felipe A. P. L. Costa (*)
Charles David Keeling (1928-2005), químico cujo trabalhou deu origem à chamada "curva de Keeling", morreu na segunda-feira da semana retrasada (20/06), em sua casa, nos EUA, vítima de problemas cardíacos. Soube do seu falecimento apenas na sexta-feira (24/06), lendo uma matéria da editoria de Ciência e Meio Ambiente da Agência Estado; no mesmo dia, o Jornal da Ciência E-mail registrou o fato, divulgando uma curta nota publicada pelo jornal Folha de S. Paulo [1].
Em ambos os casos, as matérias aparentemente eram simples reproduções (breve uma, brevíssima a outra) de material produzido por agências de notícias - a matéria da FSP foi creditada à Associated Press, a da AE apareceu sem crédito. Nenhuma delas trouxe qualquer tipo de comentário ilustrativo ou esclarecedor, por parte, digamos, de algum especialista brasileiro. A exemplo do que comumente ocorre em ocasiões como essa, mais uma vez nos deparamos com um registro burocrático, preguiçoso e repetitivo, do tipo que é produzido por quem faz jornalismo sem sair da frente de um teclado: Ctrl-C, Ctrl-V e bola para frente. Alguns jornais e articulistas graúdos, é bom que se diga, nem isso fizeram. A edição (No. 335) da semana passada do Observatório da Imprensa, por exemplo, reproduziu um artigo [2], no qual o articulista chama a atenção para a total ausência de notícias sobre o desaparecimento de Keeling (e principalmente de Jack Kilby, criador do circuito integrado, que também faleceu no mesmo dia 20/06). Mesmo para os padrões da imprensa brasileira, convenhamos, é pouco. E olha que dessa vez ninguém pode alegar que o falecido era um autor difícil ou que pouco ou nada sobre ele ou seu trabalho havia até então sido publicado no país. Pois não era esse o caso; não há bem uma fartura bibliográfica, mas os frutos do trabalho de Keeling são conhecidos e vários livros publicados no país fazem menção explícita a ele ou ao seu trabalho. Como ocorre, por exemplo, no livro de Bill McKibben, O fim da natureza, Nova Fronteira (1990); um gráfico com a curva de Keeling aparece (embora sem menção a seu nome) no livro de Carl Sagan, Bilhões e bilhões, Companhia das Letras (1998); na literatura técnica, a curva de Keeling aparece, por exemplo, no livro de Robert Ricklefs, A economia da natureza, Guanabara Koogan (2003). E mais: vários detalhes sobre a vida e o trabalho de Charles Keeling podem ser apreciados no livro de Jonathan Weiner, Os próximos cem anos, Campus (1992). Um obituário "oficial" pode ser localizado no sítio eletrônico da Instituição de Oceanografia Scripps [3], Califórnia (EUA), onde Keeling trabalhou durante quase toda a sua vida profissional. Além disso, inúmeros comentários (não em português, é verdade) podem ser encontrados com facilidade na Rede. Química ao ar livre Ao contrário do que alguém possa pensar, Charles Keeling não foi o descobridor do dióxido de carbono (gás carbônico), nem foi ele o primeiro a chamar a atenção para a presença desse gás na atmosfera ou sequer o primeiro a falar em efeito estufa. (A atmosfera que recobre a Terra funciona como um gigantesco cobertor, retendo calor e mantendo a temperatura relativamente elevada, mesmo durante a noite. Certos gases atmosféricos, com destaque para o dióxido de carbono, são os responsáveis por isso.) Duas de suas mais importantes contribuições científicas têm a ver com medições precisas e continuadas da concentração do dióxido de carbono na atmosfera: primeiro, a descoberta de que tal concentração exibe variações naturais periódicas, tanto diárias como sazonais; e, segundo, que essa concentração tem aumentado de modo continuado ao longo das últimas décadas, notadamente a partir de meados do século 19, por razões não-naturais. (A concentração de dióxido de carbono atmosférico em épocas remotas pode ser estimada pela quantidade relativa desse gás presente em amostras de ar aprisionadas, por exemplo, em camadas de gelo permanente.) Keeling era um químico de formação. Ao concluir os estudos universitários, porém, ele não quis simplesmente fazer o que a grande maioria dos seus colegas fazia: ir trabalhar na indústria, onde os químicos de então eram pagos para "fazer sucrilhos mais crocantes, gasolina mais potente, plásticos mais baratos e antibióticos mais caros" (citado na página 16 do livro de Weiner, Os próximos cem anos). Como gostava da vida ao ar livre, terminou se envolvendo com trabalhos que deveriam ser conduzidos do lado de fora do laboratório. Seu obstinado trabalho de monitoramento ao ao livre foi logo reconhecido, tornando-se algo muito maior e mais importante do que todas aquelas baboseiras comerciais que detestava. Na verdade, não seria exagero afirmar que os frutos do seu trabalho ajudaram a sedimentar a visão que temos hoje da dinâmica planetária. E tudo começou há pouco mais de meio século... Em 1954, Charles Keeling arranjou um primeiro emprego no Caltech, o Instituto de Tecnologia da Califórnia, nos EUA. Lá, ele se envolveu com uma questão química fundamental, daquelas que aparentemente estão desconectadas de todo e qualquer tipo de preocupação mais "aplicada": a pressão de um gás (digamos, o dióxido de carbono) seria a mesma no ar e na água? Na busca pela resposta, Keeling se converteu em um obstinado medidor da concentração do dióxido de carbono. Ou melhor, em um colecionador de amostras de ar "puro": dia e noite, noite e dia, e em lugares cada vez mais remotos, lá estava Keeling capturando e colecionando amostras. Paralelamente, ele também se dedicou ao aperfeiçoamento do próprio aparelho (manômetro) utilizado para efetuar as medições. Em pouco tempo, os resultados começaram a formar padrões intrigantes. Onde quer fosse, por exemplo, a concentração do dióxido de carbono no ar atmosférico girava em torno de 315 partes por milhão (ppm), embora o valor exato flutuasse ao longo do dia, atingindo um mínimo pouco depois do meio-dia e um máximo, nas altas horas da madrugada. A explicação para esse ciclo diário está relacionada ao comportamento das plantas verdes: a concentração atmosférica diminui à medida que as plantas retiram do ar grandes quantidades de dióxido de carbono (utilizadas como matéria-prima na fotossíntese), voltando a subir quando as plantas liberam (via respiração) quantidades igualmente expressivas desse gás. Mauna Loa Em 1957, como parte das comemorações do Ano Geofísico Internacional, Keeling se viu envolvido em um esforço internacional para medir e monitorar a concentração de gases atmosféricos em escala planetária. Naquele ano, dois climatólogos [4], haviam chegado a uma conclusão surpreendente e inesperada: embora a concentração de dióxido de carbono na água do mar fosse várias vezes superior à concentração na atmosfera, os oceanos não funcionariam como escoadouros das gigantes quantidades desse gás despejadas por nós na atmosfera. Ora, se os oceanos e a vegetação terrestre não são capazes de absorver o excesso de dióxido de carbono que as atividades humanas despejam no ar, então a concentração desse gás na atmosfera só tende a crescer. Como parte do esforço para monitorar a concentração de dióxido de carbono na atmosfera, uma base de pesquisa foi montada em um dos lugares mais remotos e distantes do planeta, a ilha vulcânica de Mauna Loa, no Havaí, em pleno Pacífico tropical. Com pouco mais de 5,2 mil quilômetros quadrados, Mauna Loa está o mais distante possível de atividades perturbadoras - i.e., atividades que injetam ou retiram dióxido de carbono da atmosfera em grandes quantidades. Cedo ou tarde, as correntes aéreas que passam pela ilha trazem consigo amostras de ar provenientes de todo o planeta. As leituras da concentração de dióxido de carbono em Mauna Loa começaram em 1958. Entre janeiro de 1958 e abril de 1964, no entanto, problemas técnicos impediram a leitura por diversas vezes, comprometendo a obtenção de sete médias mensais (janeiro, fevereiro, junho e outubro de 1958; fevereiro, março e abril de 1964). Esses problemas não tornaram a se repetir após abril de 1964 e as leituras em Mauna Loa continuam ininterruptamente até hoje. Já são assim 47 anos (41 de modo ininterrupto) produzindo várias leituras diárias, que são depois convertidas em médias mensais [5].
A curva de Keeling é uma apresentação gráfica desses resultados, na qual é possível enxergar dois níveis simultâneos de variação: flutuação sazonal, como seria esperado, acompanhada, porém, de um impressionante, gradativo e ininterrupto aumento anual na concentração do dióxido de carbono atmosférico. O aspecto preocupante dessa curva, que exarceba o efeito estufa e ameaça a própria continuidade da vida em nosso planeta [6], é a ininterrupta elevação nas médias mensais de um ano para o outro. Em março de 1958, por exemplo, a média foi de 315,71 ppm; em março de 1959, foi de 316,65; em março de 1960, já foi de 317,58, e assim sucessivamente, até chegar a 378,41 ppm, em março de 2004. Resultados assim foram obtidos em todos os demais meses do ano. Essa dupla escala de variação dá à curva o seu aspecto característico: uma curva que serpenteia, ao mesmo tempo que escala uma colina. Keeling e vários outros cientistas se debruçaram sobre o estudo dos fatores que poderiam provocar toda essa variação. A maioria dos climatólogos e de outros cientistas que lidam com o assunto tem poucas dúvidas ao afirmar que essa preocupante escalada tem sido promovida essencialmente por nós, seres humanos. Aqui, basta registrar que o comportamento de ascensão da curva está relacionado à quantidade de dióxido de carbono que injetamos todos os anos na atmosfera. No fim das contas, há quem pense que o aspecto geral da curva sugere que estamos marchando como sonâmbulos em uma jornada rumo ao precipício. Nesse caso, restaria saber se ainda é possível acordar a tempo... Charles Keeling deixa viúva, filhos e netos.
Notas
(*) Biólogo meiterer@hotmail.com, autor do livro ECOLOGIA, EVOLUÇÃO & O VALOR DAS PEQUENAS COISAS (2003). |
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