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7 de fevereiro de 2005 |
Nei Duclós
Ninguém decifra o enigma Rosebud em Cidadão Kane. A solução da charada morre
junto com o personagem , fechando o círculo onde se encerra uma vida privada, a
única com existência real, já que o perfil público do homem que construiu um
palácio de Mil e Uma Noites é pura representação, tragédia e deboche. Chamá-lo
de cidadão é apenas uma ironia, pois se tratava de um déspota, que usou a
riqueza para ludibriar a democracia. Disseram horrores sobre o que significa
Rosebud, algumas impublicáveis, como a que se referia ao que a amante de Kane
trazia encerrada nas vestes de luxo. Mas a complexidade do enigma é a sua
simplicidade: Rosebud é uma palavra, gravada num brinquedo da infância e foi
proferida na hora da morte, quando tornou-se uma bolha de vidro que rola pelo
chão para ocupar aparentemente a periferia de um drama, quando na verdade é o
seu centro oculto e indevassável. Por ser uma palavra que ninguém decifra e não
um objeto, Rosebud é a essência de uma impossibilidade: a de o espectador jamais
fazer parte do filme que o exclui, mesmo que saia do cinema com a impressão que
entendeu do que se tratava. Essa armadilha, a mais genial da história da sétima
arte, transformou Orson Welles no mais cultuado cineasta do mundo e fez sua
obra-prima ocupar o topo de todas as listas dos melhores filmes de todos os
tempos.
Trenó O plano final, em que o trenó da infância queima junto com a sua palavra de batismo, é a ilusão maior desse gênio que dedicou a vida a enganar seus contemporâneos para poder iluminá-los. Ele cercou-se do imaginário das massas, dos discos voadores à riqueza excessiva, para ocupar o papel do mágico que ilude a percepção da platéia e arranca aplausos pelo que é percebido no primeiro olhar, sem nunca revelar que o melhor fica para depois da sessão: a reflexão obsessiva sobre o que foi visto. É por isso que Cidadão Kane não abdica da sua posição de filme maior, porque sempre haverá algo a dizer sobre o que foi concebido no espaço sagrado de uma arte imortal, lá onde os deuses brincam de Criação. Tudo o que é resgatado na biografia de Kane vira lixo e ficamos sós com a sensação que nos foi transmitida: a de que a verdadeira alegria de viver está no deslumbramento primordial do olhar não contaminado pela morte. Rosebud é a palavra que rola junto com o trenó sobre o cenário gelado de um mundo indiferente e só ela tem a chave de uma felicidade para sempre perdida. Não tive a sorte de ver o filme na hora certa, quando eu ia ao cinema por determinação e destino, esse paradoxo que carregou minha geração para a a revelação e o assombro. Feito em 1941, sete anos antes de eu ter nascido, só tive contato com a enigma muito mais tarde, quando fui ver o filme obrigatório que todos citavam. Mas não tinha sido a primeira vez que vira Welles. Antes disso, eu fora sacudido para sempre do meu sono cultural com o maior dos pesadelos já criado no cinema, O Processo, baseado em Kafka. Kafka O que impressiona em O processo é a passagem entre um cenário e outro, numa continuidade sem fim, quando somos arrastados para uma prisão. Não há ruptura entre cenas e somos deslocados à força por lugares gigantescos. Somos massacrados pelo escritório ocupado por mil mesas com máquinas de escrever, em que Anthony Perkins, esse ator do medo e da repressão, caminha para sua maldição. De lá vamos para lugares majestosos cheios de pessoas acusadoras, mas antes passamos por um flagrante doméstico de uma mulher lavando roupa. O que quer nos dizer Orson Welles com essa punhalada mortal em nosso vício de ver? Que estamos presos numa cela muito pequena, vazada por onde entra o riso do Mal, e somos convocados para a destruição em lugares que deveriam ser o da sobrevivência. Queremos acordar para nos salvar, mas se acordarmos, fatalmente descobriremos que nos transformamos num gigantesco inseto. Para mim, Welles chegou antes de Godard e o toda a vanguarda que o cercava, provando que o cinema poderia ser outra coisa. Estávamos imersos no sono da sala escura, achando que mudar significava apenas migrar para um outro tipo de filme, como faz hoje a indústria cultural. Passar do faroeste à aventura e à comédia romântica eram as opções daquela época, limitação que voltou com tudo depois que os grandes cineastas se retiraram de cena. Welles rompeu com essa rede e tremeu tudo o que nos inspirava até então. O Processo me levou à leitura de Kafka, porque a literatura sempre foi a fonte do melhor cinema. Toda uma obra cinematográfica dedicada a apenas uma palavra, Rosebud, é a prova de que a alfabetização é a porta que se abre para o infinito e tudo o mais se rende a ela. Xanadu O palácio construído por Kane é uma coleção de brinquedos. Ele procurou desesperadamente reproduzir o sentimento perdido, mas em vão. Morreu dentro da sua prisão, amargando a saudade daquilo que o transformava em ser humano, portanto, o salvaria. Tinha virado uma casca de luxo e é esse superfície que é resgatada ao longo do filme. A profundidade daquela vida escapa à obra, que ao se afastar do núcleo vira de cabeça para baixo toda a dramaturgia tradicional, pois o que foge à trama é o seu principal acontecimento. |
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