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2 de fevereiro de 2005 |
Nei Duclós
Stanley Kubrick nos ensina que ver sem apoiar-se em parâmetro algum, ver pela
primeira e única vez, ver como se o espectador estivesse nu diante do cosmo, é
saber. Rever é arquivar, é perder esse tesouro do primeiro olhar, é desdobrá-lo,
tentar entender o que foi visto. No filme De olhos vendados, o médico
interpretado por Tom Cruise não pode ter acesso ao que a elite vê. E o que a
elite vê? A própria elite, que não pode ser desmascarada. Ele descobre isso por
meio do seu amigo pianista, que é contratado para uma festa em vasta mansão,
desde que toque com um lenço tapando os olhos. Estão proibidos de ver, portanto,
de saber. O protagonista então engana a segurança e vê o que jamais poderia ver,
sabe o que nunca deveria ter sabido. Ver, portanto, é uma questão de classe
social. Para o resto, é preciso cobrir o olhar com todo o tipo de repetição,
para que se turve a percepção, para que nunca vejam e, portanto, saibam. Quem
vê, tem poder.
Titan Os anos 60 pegou a elite desprevenida. Via-se pela primeira vez um monte de coisas. A saída foi enquadrar a criação que emitia a luz para o primeiro olhar. Entrou em cena o repeteco de massa, do qual a TV aberta brasileira é o mais sinistro exemplo. Só é permitido mostrar o já visto e se for algo inédito, é preciso vestir a novidade de todas as formas, para que tome uma forma reconhecível. Não nos deixam ver as imagens de Titan. Dizem antes que o satélite de Saturno é laranja, que tem mar de metano, ventos de tungstênio e outras bobagens. Deixem-nos ver, como Kubrick fez. Fui a um cinema da Cidade Baixa em Porto Alegre, a cidade da cultura, e vi então 2001 pela primeira vez. Nunca mais me refiz daquele susto. Pensei que aqueles homens-macacos do início do filme eram reais, e não atores. Vai ver, eram mesmo de verdade. Aquele travelling longuíssimo da nave em direção a Júpiter, que não acabava mais, marcou para sempre o cinema. Star Wars usou outro plano, um contra-plongée (como me ensinaram num curso de cinema que fiz ainda no ginásio, obra de um irmão marista que nos revelou pela primeira vez que os filmes não eram obra de atores, mas de diretores, o que é uma meia verdade). Mas no fundo é a mesma coisa. Vai fazer filme sobre o espaço? São aquelas roupas, aquela estética, aquele visual. Até o horrível Cowboys do espaço (o tropeço de Clint Eastwood) usa essas soluções. É porque todos precisam repetir o que Kubrick fez, pois aprenderam com ele, mas não se dão conta que o perdem, pois o que realmente importa é aquela primeira percepção. Luz Em O Iluminado, Jack e o filho vêem os fantasmas, só eles sabem o que está acontecendo. O terror da mulher é que ela não vê, apenas enxerga no que o marido se transformou, mas não sabe o que está por trás dessa mutação. Jack vê, e essa é a sua maldição. Vê não porque não tenha diversão, vê o horror insepulto no hotel vazio porque perdeu a capacidade de enxergar com a criação. Como não imagina, acaba se deparando com a brutal revelação dos assassinos fantasmas, que o orientam sobre o que deve fazer. Jack refugiou-se no hotel para não ver mais nada a não ser o que criaria no seu romance. Mas como ele vedou toda a capacidade de enxergar, ficou confinado no lugar que nada tinha a mostrar. Por isso ele consegue ver o que está por trás das paredes, o que se esconde embaixo do piso, o que desce do teto, o que escorrega pelos corredores. Somos transportados para essa maldição em Kubrick, o de ver o que nunca tínhamos visto, portanto o que jamais imaginávamos ver. No fundo não queríamos ver o que não sabemos, mas somos obrigados a isso pela câmara de Kubrick. Seu desafio foi o maior de todos, pois precisava impactar um público viciado em ver, cansado de tanto ver. A indústria audiovisual tinha chegado a sua saturação. Godard partiu para a ruptura, desistindo da intensificação do ver e levou todo mundo para a reflexão, fruto de sua formação literária. Godard disse: vejam, vocês estão vendo, aprendam a ver. Kubrick não é didático. Kubrick diz: veja só, um retângulo escuro e alto que emite um ruído e aparece no meio dos macacos e depois enterrado na Lua. Veja, um mar de sangue inunda o corredor. Vejam essas gêmeas fantasmas, esse rosto retorcido de Jack se anunciando depois de quebrar a porta com o machado. Godard explica: você está vendo. Kubrick te joga numa praia distante num mar de metano, sob fortes ventos de tungstênio. Tente respirar e terás ácido sulfúrico. Revolta Em Spartacus, a revolta começa quando o grande escravo negro vê a elite gargalhando e pedindo a morte do adversário vencido. O escravo ousou levantar o olhar até o camarote onde estavam os poderosos e viu lá, pela primeira vez, a quem servia e o que ele, escravo, representava de verdade. Essa revelação desencadeou a revolta. Os escravos então optam pelo que sabem ver: querem ter a vida de senhores e fazem destes os novos servos. Spartacus orienta o olhar para outra direção: vamos formar um exército, diz ele e com essa estratégia quase derruba o império. O poder não vê Spartacus no final, mas tenta. Pergunta quem é o líder da guerra. Todos então se levantam e se anunciam, numa cena que arranca lágrima de rocha. Os escravos vencidos ludibriam o olhar do poder, não revelam o que a elite quer ver para que a vitória seja completa. Spartacus então se transforma em todo o povo submetido à escravidão. O poder vê a massa como um só líder e tem medo. Manda crucificar todo mundo. Até hoje agonizamos junto com Kirk Douglas, na cena final de mais esse filme de Kubrick, o cineasta da libertação do olhar. Versão A versão de que a primeira descida do homem à Lua em 1969 é obra de Kubrick serve para múltiplas interpretações. A fraude revela a força do poder: ele submete o libertador do olhar, que se transforma num algoz, pois impõe a imagem de outro mundo por meio de truques. Ao mesmo tempo, essa versão pode ser vista como um reforço do que dizemos aqui: vimos a Lua pela primeira vez pela mão de Kubrick, se for correta a história que rola na Internet. Em vez de ser uma fraude, é a glória: Kubrick teria levado o olhar para o Outro Lado por meio da imaginação e da ciência. No fundo, é o que deveria ser sempre. Prefiro Kubrick ao noticiário da tevê (me vê? ou me obriga a ver daquele modo?). Kubrick mente menos. |
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