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4 de janeiro de 2005 |
Uma outra Porto Alegre não é possível
Mário Maestri (*)
Sem ter governado jamais, a classe média impera inconteste no Rio Grande do Sul. Nesse longo reinado, repete habitualmente diante do espelho a resposta à pergunta que jamais faz: - Espelho, espelho meu, não há ninguém mais perfeita do que eu! Através do Brasil, ao máximo, suas irmãs gêmeas apresentam-se como o ponto do equilíbrio desejável. No Sul, ela sequer imagina-se como denominador comum ideal, sonhando-se como a única expressão da equação social que a corrói pelas duas pontas.
Não é por nada que os mitos fundadores sulinos, a "democracia pastoril" e a "produção sem trabalho", falam de passado regional singular, no qual o gaúcho seria companheiro e jamais serviçal do patrão. Nesse universo fantasioso, o próprio fazendeiro prepotente posa para a história e na entrada da capital nos panos democráticos do peão humilde. O Rio Grande do Sul seria mundo que jamais conheceu a pecha degradante da escravidão, construído sobretudo pelo trabalho do colono europeu proprietário. Apesar do Rio Grande ter sido uma grande província escravista, plantou-se fundo no imaginário popular a visão das raízes meramente européias e democráticas do passado e da história sulina. O rei e seus súditos Todo o reino tem seu paço faustuoso, onde a luz do rei e de seu séqüito ofusca e esconde a imagem dos demais protagonistas sociais, sejam as multidões dos servos vergados pelo trabalho duro, sejam os mais escassos burgueses movendo nas sombras os comandos da nação. Com seus cinemas, teatros, bares e restaurantes sem fim, Porto Alegre constitui muito mais do que a corte desse estranho universo virtual. Em Portinho, tudo se vê, ou deve ser visto, como sua classe média desejaria que fosse. Na capital, ela se esforça para que nada lhe escape das mãos, para que o mundo se materialize no tamanho de suas medidas e sonhos. Em Porto Alegre, melhor do que em qualquer lugar no Brasil, o PT, fugidio amor de verão dos trabalhadores, passou a dançar sob a batida pesada e lenta do grande capital, regido pela batuta irreal de classe média inebriada pela ilusão de que comanda a orquestra pela qual é dirigida. Porto Alegre não aceita outro retrato. Se quer feliz, esperta, progressista e, sobretudo, branca. Uma outra Porto Alegre não é possível! Meu tio matou um cara Em "Meu tio matou um cara", o cineasta gaúcho Jorge Furtado construiu capital fantástica, espécie de Metrópolis tupiniquim bem comportada, com habitantes que falam todos os sotaques do Brasil. Parece que pretendia despegar-se da estética urbana porto-alegrense da última cinematografia sulina, para interpretar um Brasil urbano indeterminado. Obter a tal saída do singular para chegar ao geral. Mas como resistir ao grito da selva! Como superar a sina de que entre o desejo enunciado e o ato realizado medeiem os amores que guardamos envelopados no fundo d´alma! Portanto, deu no que deu. Jorge Furtado reproduziu, outra vez, tintim por tintim, o mundinho da classe média porto-alegrense, não como ele é, mas como ela sonha e deseja que ele seja, é claro! Com os jovens por público-alvo, já que se trata de "comédia romântica adolescente", o filme aborda o mundo dos nossos filhos. Não como ele é, mas como desejaríamos que fosse, como já dito. Os adolescentes do filme são o gáudio dos pais: estudiosos, educados, amáveis, solidários, vivem bem consigo e com o mundo, sem qualquer grilo mais complicado. Exatamente como papai e mamãe desejam e sonham. Jovens espertos Todos eles dominam a modernidade high-tec dos novos meios de comunicação e expressão cultural. A idéia da superioridade juvenil sobre os adultos na solução das questões da vida quotidiana serve-se da surrada referência à desteridade e à inteligência obtidas na prática quotidiana dos jogos informáticos. Mas não se diga que não se foi além-Mampituba, no plano geográfico, e não se superou o Menino Deus, no mundo social! A trama tem como núcleo central família negra de classe média formada por filhinho, papai e mamãe. Todos tão ajustados que parecem relógios suíços. Bonitos, realizados, empregados, consumidores, felizes, igual ao que exigem a Veja e a Globo. A única nota não muito destoante é Éder, o jovem e simpático tio da família ideal, empresário atrapalhado, namorado de boazuda branca, que se enreda em assassinato que realmente não cometeu, pois se tivesse cometido corria-se o risco de reforçar a tradicional equação brasileira negro é igual a delinqüente! Ser em extinção A pitada social é que Duca, o herói de 15 anos, é o único negro no seu colégio de classe média, privado, folga dizer. Devido a essa descuidada concessão ao realismo, quase se arma tensão crescente entre o que se propõe e a autonomia do proposto, entre a construção virtual de mundo ideal, formado por quase apenas brancos, e Duca, o adolescente negro incapaz de alcançar o objeto de seu desejo desajustado, já que ele se materializa na tela, mais e mais, como um quase exemplar único de sua espécie. Isto porque Duca ama Isa, sua colega e melhor amiga, que ama Kid, o terceiro vértice do triângulo juvenil, os dois brancos e de classe média, é claro. Ressalte-se que a eventual tensão racial na disputa por Isa é indiscutivelmente atenuada por ser Duca pequeno e desajeitado, enquanto que Kid é alto, forte e bonito. Ou seja, o guri que qualquer jovenzinha desejaria, mesmo negro. Enquanto se desdobram as ações do trio juvenil para livrar a barra do tio complicado e as movidas sempre éticas de Duca para impedir que Kid acabe namorando Isa, tudo salpicado pelos tradicionais merchandisings explícitos globais, vão-se construindo cenários sociais e familiares quase idílicos, como o de pais que deixam os filhos visitarem o tio na prisão, recomendando apenas que peguem um taxi, e não o ônibus. Pobreza à vista! E é nessa viagem de ônibus que os jovens assistem, de passagem, ao longe, quase perplexos, à pobreza disciplinada e pouco agressiva que se aceita existir em Porto Alegre. Um cenário de quase cartão de visitas, em que a violência urbana perde materialidade para se transformar em espécie de fantasma que habita nossa imaginação quase sem sabermos por quê. Isa rompe com Kid, pego em contubérnio com a gostosona e oferecida namorada do tio de Duca, que sai da prisão jurando começar vida nova, sem mudar nada da antiga. Numa última comovente cena, para pôr fim a qualquer idéia de fratura racial, Isa e Duca beijam-se candidamente, prometendo namoro que encantará a classe média gaúcha, desde que a filhinha não repita a arte na vida real, é claro. Porto Alegre, 1º de janeiro. Ao sairmos do cine, às 22:30 horas, atravessamos a pé o imundo, maltratado e decaído centro histórico da capital sulina, cruzando trabalhadores que se retiram atrasados para suas casas e, sobretudo, seres molambentos e desconjuntados que habitam a já vaidosa Rua da Praia, por não terem onde ir ou, simplesmente, por não desejarem ir. Em boa parte, espécimes negros, desses de carne e osso, que se encontram apenas na vida real. Todos, exemplares multicolores do imenso povo porto-alegrense que, por mais que mostre a cara, por mais que tente, já quase sem esperanças, participar da festa, jamais termina na foto complacente do álbum da grande e feliz família porto-alegrense. (*) Mário Maestri, 56, historiador, nasceu e vive em Porto Alegre. É autor, entre outros, de Por que Paulo Coelho teve sucesso [Porto Alegre: AGE, 1999.] |
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