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13 de janeiro de 2005 |
Contribuções para a reforma universitária
Alfredo Pereira Júnior (*)
I. Introdução
Ao se discutir, elaborar e implementar uma Reforma Universitária, é preciso clarificar os pressupostos a partir dos quais se faz o diagnóstico dos problemas da universidade atual e se define a universidade ideal a ser buscada por meio da reforma. O pressuposto central que rege os raciocínios apresentados neste ensaio é que, na sociedade contemporânea, a principal contribuição da universidade para o desenvolvimento humano-social consiste na geração de conhecimentos científicos e tecnológicos que capacitem a população a enfrentar seus desafios econômicos, políticos, ambientais e existenciais. Nesta perspectiva, as principais responsabilidades da universidade pública brasileira seriam:
a) produzir conhecimentos novos, que se apresentem como potenciais soluções para os problemas enfrentados pelo país, em seu processo de desenvolvimento; A partir do pressuposto central acima, sugiro que a instituição universitária deveria funcionar como um coletivo de investigadores-empreendedores, que procurasse a cada momento identificar os principais entraves e as oportunidades que se apresentam para o processo de desenvolvimento econômico, social e humano, vindo a elaborar e testar soluções, e aplicá-las em tecnologias que viabilizem a remoção dos entraves e a promoção de novos empreendimentos. Neste processo, seria preciso superar as limitações das disciplinas e áreas de conhecimento acadêmicas, procurando uma interação e complementação de saberes e habilidades, com vistas a que instituição como um todo venha a atuar como "enzima do desenvolvimento" (na seção seguinte deste ensaio discuto o significado das expressões "investigador-empreendedor", e "enzima do desenvolvimento"). Tomando como referência o pressuposto apresentado, qual seria o diagnóstico dos problemas da universidade real? Historicamente, podemos observar três etapas na constituição da comunidade científica brasileira. Com a implantação tardia das universidades e demais instituições de pesquisa, procurou-se inicialmente aprender a fazer ciência, não se hesitando em eventualmente "reinventar a roda" como forma de desenvolver uma competência local. A segunda etapa, que se estende até os dias atuais, corresponde ao processo de criação e consolidação do sistema de pós-graduação, formando uma nova geração de doutores, e atingindo em vários grupos de pesquisa o nível de excelência científica. Em busca da demonstração dos padrões de qualidade atingidos, a pesquisa foi direcionada para a produção de trabalhos publicáveis em periódicos de primeira linha. Porém, tais padrões foram definidos de modo descontextualizado. Como conseqüência, em sua grande maioria estes trabalhos não estão concatenados com esforços no sentido da promoção do desenvolvimento brasileiro. Segundo análise realizada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos (A Universidade no Século XXI, Cortez: 2004), tal tendência não seria exclusiva da universidade brasileira: "o conhecimento universitário...foi, ao longo do Século XX, um conhecimento predominantemente disciplinar, cuja autonomia impôs um processo de produção relativamente descontextualizado em relação às premências do quotidiano das sociedades" (p.40). O conhecimento daí resultante é "para inglês ver", ou mesmo para tirar proveito: temos gratuitamente fornecido subsídios para empresas multinacionais. A terceira etapa, que se almeja alcançar, alia à competência científica e tecnológica um vetor pragmático, direcionando as investigações para projetos e parcerias que viabilizem o desenvolvimento. Podemos notar que as principais agências de fomento à pesquisa, exemplarmente a FAPESP e o CNPQ, já passaram a considerar tais aspectos pragmáticos na aprovação de projetos. Ainda segundo Sousa Santos, o conhecimento característico do Séc. XXI, que ele chama de pluriversitário, "é um conhecimento contextual na medida em que o princípio organizador de sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada. Como esta aplicação ocorre extramuros, a iniciativa da formulação dos problemas que se pretende resolver e a determinação dos critérios de relevância destes é o resultado de uma partilha entre pesquisadores e utilizadores. É um conhecimento transdisciplinar que, pela sua própria contextualização, obriga a um diálogo ou confronto com outros tipos de conhecimento" (p.41). Coloca-se então, neste momento, uma questão central: qual o tipo de desenvolvimento que se pretende alcançar por meio de partilhas entre a universidade e outras organizações/instituições da sociedade? No caso da FAPESP, por exemplo, destaca-se sua parceria com o empresariado paulista, voltada para a geração de inovações tecnológicas capazes de potencializar a atividade econômica e atrair novos investimentos para o estado de São Paulo. Pessoalmente, entendo que o desenvolvimento não pode se limitar ao crescimento econômico, devendo se voltar para a inclusão social, a preservação ecológica e a melhoria da qualidade de vida de toda a população; ou seja, deve ser um desenvolvimento integral. Para que uma estratégia de desenvolvimento integral assumida pela universidade pública possa ser efetivada, é preciso ainda que esteja em consonância com um Projeto de País (vide Sousa Santos, p. 45-49, 116) assumido (ao menos) pelo Governo Federal. Na quarta seção deste ensaio apresento quatro desafios do desenvolvimento brasileiro, compatíveis com a agenda do governo Lula, que me parecem ser os mais prementes. A partir dos pressupostos acima, a questão da quantidade de alunos ingressantes na universidade pública e gratuita deve ser enfocada sob um prisma apropriado. Ao lado do direcionamento da universidade pública para o fim maior de geração de conhecimento novo e relevante, é preciso conter - no que depender da própria universidade - o processo de desvalorização de seu diploma (também citado por Sousa Santos, p. 12). Infelizmente, o que se tem observado nos últimos anos é que muitos egressos da universidade pública vêm a competir por empregos técnicos ou sem quaisquer requisitos, deste modo desperdiçando o curso realizado, e tomando o lugar de outros trabalhadores que não tiveram a oportunidade de cursar a universidade. O objetivo da formação universitária não deveria ser a reprodução dos privilégios de classe (reduzindo o diploma da universidade pública a um símbolo de status), nem a qualificação de uma massa de trabalhadores para o mercado de trabalho (uma visão populista e enganosa, que subtrai da universidade o seu papel transformador), mas sim a formação de investigadores-empreendedores, que atuem como promotores do desenvolvimento integral. Sem dúvida é preciso que o Estado ofereça à população condições para que todos os jovens, de todas as classes sociais, tenham possibilidade de acesso à universidade, mas ao mesmo tempo é preciso que haja dentro da universidade um processo seletivo, que assegure o princípio de que apenas as pessoas que tenham real vocação e competência para a investigação científica venham a se graduar. Através da geração de conhecimentos e práticas novos, adequados ao processo de desenvolvimento, os egressos da universidade podem criar ferramentas que dêem suporte a novas empresas, ampliando o processo de desenvolvimento, e conseqüentemente gerando novos empregos (seja tornando-se empresários, seja por sua atuação junto a outras organizações ou instituições). Para que tal esforço tenha dimensão nacional, é preciso que a tarefa seja assumida não só pelos institutos de pesquisa, mas por toda a universidade pública, seja ela federal, estadual ou municipal. Portanto, como passo inicial para uma reforma da universidade pública seria preciso uma reforma do ensino. Apresento na terceira seção deste ensaio uma proposta de operacionalização destas diretrizes, em termos da implantação de um Ciclo Básico, com a duração de um ano, o qual teria as funções de contribuir para a formação de investigadores-empreendedores, e selecionar os alunos aptos a prosseguir nos cursos universitários por eles escolhidos. II. Os investigadores-empreendedores e seu papel de enzimas do desenvolvimento A atividade de investigação científica é mais ampla que a pesquisa. O pesquisador científico é aquele profissional que se dedica a realizar pesquisas com vistas à publicação, obtenção de patentes e/ou apresentação em eventos científicos, ou aquele que desenvolve projetos e produtos para empresas públicas ou privadas; portanto, o termo "pesquisa" tem a conotação de atividade teórica sistemática, ou de investigação sistemática no laboratório ou no campo. A noção de "investigação", por sua vez, abarca, além da pesquisa científica, outras atividades de geração de conhecimento. Por exemplo, os mecânicos precisam realizar investigações para descobrir defeitos em motores (este mesmo exemplo foi dado por Rubem Alves no livro Filosofia da Ciência; Brasiliense: 1985). A investigação pode ter um caráter científico, na medida em que estiver em consonância com os princípios do(s) método(s) científico(s), como a elaboração e teste de hipóteses, e busca de amostragem significativa, mesmo que tais princípios não sejam explícitos para o investigador. Também um médico, ao examinar seu paciente para a elaboração do diagnóstico de uma doença, deve realizar uma investigação de caráter científico, analisando os sintomas apresentados, solicitando exames de laboratório e imagens dos tecidos afetados, e raciocinando logicamente para concluir a respeito das características da doença, suas possíveis causas e o tratamento mais apropriado. Enfim, todas as profissões que exigem qualificação universitária são profissões cujos praticantes devem exercer a investigação de caráter científico, mas não necessariamente a pesquisa no sentido estrito. É importante notar que a pessoa de perfil investigativo-empreendedor possui uma aptidão geral para lidar com problemas, que pode se aplicar a diferentes contextos e diferentes tarefas. A existência desta aptidão geral de forma alguma implicaria que tal pessoa possua conhecimentos enciclopédicos. Pelo contrário, a "concepção bancária da educação" (na expressão de Paulo Freire) e a erudição forçada podem dificultar a construção desta aptidão. Na mesma linha de argumentação, Edgar Morin (A Cabeça Bem Feita, Ed. UNESP: 2004, p. 21), inspirado por Montaigne, distingue entre a cabeça bem cheia, aquela onde o saber é "acumulado, empilhado", e a cabeça bem feita, que dispõe tanto de "uma aptidão para colocar e tratar os problemas" quanto de "princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar sentido". A capacidade de realizar investigações é muito importante para a sociedade, pois possibilita criar soluções para os problemas enfrentados. O que a distinguiria do simples procedimento de tentativa e erro? A capacidade investigativa pode ser analisada em termos das seguintes habilidades:
a) identificar os problemas existentes, sejam eles problemas teóricos da ciência, ou problemas práticos que afligem o ser humano, assim evitando a realização de investigações que não estejam centradas em um problema bem definido; Quando a mentalidade investigativa se estende ao empreendedorismo (ou seja, quando o processo atinge os itens e, f e g), temos a felicidade de contar com pessoas e grupos socialmente valiosos, que atuam como "enzimas do desenvolvimento". Utilizo aqui uma metáfora, para ilustrar um tipo de processo que ocorre em vários sistemas, de diferentes naturezas. Outra metáfora semelhante é a da pequena "faísca" necessária para desencadear uma reação de grandes proporções. No contexto da Teoria de Sistemas Dinâmicos Caóticos, faz-se referência ao "efeito borboleta", em que uma pequena causa gera um efeito de grande magnitude. Na célula viva, existem muitas reações químicas necessárias para a vida, as quais não ocorreriam pela simples junção dos reagentes, pois requerem um fator adicional, que é a enzima. A enzima é uma proteína com dois ou mais sítios ativos, os quais se ligam aos reagentes, promovendo uma interação indireta entre os mesmos, e síntese de novos produtos. Da mesma forma, na sociedade existem problemas que se afiguram como insolúveis sem a intervenção de um agente qualificado, que venha acrescentar o ingrediente em falta, para que possam emergir os processos transformadores. Encontramos, no Brasil atual, diversas iniciativas que ilustram o papel transformador que a investigação de tipo científico, estendida ao plano do empreendedorismo, pode exercer. Na área de reciclagem do lixo urbano, por exemplo, temos alta proporção de reaproveitamento do alumínio das latas de bebidas; fábricas de tijolos e telhas que utilizam resíduos como matéria-prima, e a utilização da borracha de pneus para a cobertura asfáltica em rodovias. Nem todas estas iniciativas derivam de pesquisa acadêmica, ou da "pesquisa e desenvolvimento" de produtos visando o lucro empresarial, mas de investigadores-empreendedores bem intencionados, que souberam identificar um problema, avaliar sua relevância, encontrar uma forma de remediá-lo ou resolvê-lo, construir ferramentas para operar as transformações desejadas, reunir meios para implementar a solução, e gerenciar o sistema assim criado para que efetivamente viesse a atingir os fins planejados. Estamos hoje convencidos que as habilidades cognitivas humanas decorrem de múltiplos fatores bio-psico-sociais que interagem de forma complexa na história de cada pessoa. Conforme transcorre a evolução deste complexo interativo, formam-se pessoas com mentalidade investigativo-empreendedora mais acentuada, ou pessoas de tendência mais reativa, cujo comportamento tende a se limitar a responder às iniciativas de seus pares. As últimas se adaptam melhor a modalidades de trabalho repetitivas, também chamadas de "técnicas" (no sentido de que não envolvem a investigação científica/tecnológica), onde se limitam a seguir procedimentos traçados por outras pessoas. Pode o ensino universitário interferir na evolução cognitiva dos jovens, em um ou outro sentido? Como os alunos, em sua maioria, ingressam na universidade no período final da adolescência, é inevitável que o ambiente cultural que ali encontram venha a interferir em seu processo de maturação cognitiva. Do ponto de vista neuropsicológico, há proximidade temporal do ingresso na universidade com o período final do processo conhecido como "poda", no qual ocorreria uma seleção de sinapses (as mais ativas sendo reforçadas e as menos ativas descartadas), correspondendo ao estágio final de maturação do córtex frontal e de suas funções (chamadas de "executivas", as quais incluem o estabelecimento de metas a serem atingidas, planejamento de ações visando tais metas, maior desenvolvimento do raciocínio abstrato e definição da identidade pessoal, possibilitando maior estabilidade emocional). Além disso, muitos alunos progressivamente se afastam da família (principalmente quando a universidade está localizada em outra cidade), estabelecendo um novo universo de relações pessoais, e se defrontando com a necessidade de administrar sua própria vida. Neste contexto, parece certo que um ambiente universitário que reforce a rotina do ensino médio e dos cursos preparatórios para o vestibular - ou seja, um ensino que se ocupe na maior parte do tempo de aulas expositivas, voltadas à memorização de informações - provavelmente fará com que a evolução cognitiva dos alunos tenda para o campo da mentalidade tecnicista, a qual dificilmente será revertida (exigindo grande esforço dos orientadores, quando alguns destes alunos ingressam em cursos de pós-graduação). Por outro lado, parece ser provável que um ambiente dinâmico e participativo, principalmente no primeiro ano da universidade, poderá gerar o efeito inverso, ou seja, influenciar a evolução cognitiva no sentido da formação de investigadores-empreendedores. III. Uma proposta para a reforma das universidades públicas Ao optarem pelo procedimento científico como fator de inovação e parâmetro para a (auto)regulação das relações humanas, as sociedades contemporâneas ampliam o horizonte de possibilidades de desenvolvimento. No que tange às políticas públicas, pode-se ainda conseguir aumento da eficácia e eficiência dos programas sociais, subtraindo o espaço de práticas populistas, que terminam por favorecer a corrupção e o privilégio de minorias. Para que possa assumir o papel histórico de "enzima do desenvolvimento", a universidade pública deve começar por uma transformação interna, na qual se valorize a mentalidade científica/tecnológica inovadora, em detrimento das distorções burocráticas, corporativistas e assistencialistas freqüentemente encontradas. Como se poderia viabilizar tal transformação? Faço aqui a proposta de um Ciclo Básico, comum a todos os cursos universitários, com duração de um ano, cuja implementação poderia ser o ponto de partida para se ajustar a universidade ao perfil institucional almejado. Um dos principais problemas da atual estrutura de ensino é que os alunos chegam à universidade despreparados para o exercício da investigação científica ou para qualquer modalidade de pensamento criativo. O ensino médio está voltado para a memorização de informações que possibilitem a aprovação do aluno no vestibular, atitude que acaba se reproduzindo em sua vida universitária. Não existe ainda, na estrutura de ensino, um momento no qual se coloque para o aluno a necessidade de passar de consumidor a produtor de conhecimento. Em consonância com idéias já levantadas na atual discussão da Reforma Universitária, proponho a criação e implementação de um Ciclo Básico, com aproximadamente o seguinte currículo:
a) Disciplinas Teríamos portanto um total de 600 horas de aulas no período de um ano, correspondendo a 20 h/a semanais, que poderiam ser programadas em um único turno (manhã, tarde ou noite), possibilitando que o aluno tenha tempo para as atividades de extensão (16 horas semanais), para realizar estudos e pesquisas por conta própria, e participar de atividades culturais que enriqueçam sua formação. Tendo a condição de cursar este Ciclo Básico em seu primeiro ano de universidade, os alunos poderão apresentar, no restante do curso, o desempenho de investigadores-empreendedores que a universidade exigiria deles para a graduação e pós-graduação. Com a implantação do Ciclo Básico, seria possível dobrar o número de ingressantes na universidade pública, tornando desnecessário, em diversos casos, a realização do vestibular. Deste modo, um número maior de alunos oriundos das classes de menor renda poderiam ingressar na universidade pública e gratuita, e competir em igualdade de condições com os demais alunos para passar para a segunda fase da graduação. Com base nas avaliações realizadas durante o primeiro ano, seriam selecionados os alunos que apresentem motivação, competência e dedicação para se tornar investigadores-empreendedores, aos quais seria facultado permanecer na universidade pública, nos cursos que escolheram por ocasião de seu ingresso. Cada universidade fixaria o número máximo de alunos, por curso e por ano, que teria condições de comportar. Os demais alunos seriam encaminhados para cursos de terceiro grau com perfil de qualificação de mão de obra, recebendo, na medida do possível, bolsas do Estado para custeio de mensalidades (no caso de serem encaminhados a instituições de ensino pago, como ocorre no programa Universidade Para Todos/PRO-UNI, iniciado pelo Governo Federal em 2004). Devemos reconhecer que muitos jovens não têm aptidão para a investigação científica, do mesmo modo como muitos não tem aptidão para serem jogadores de futebol ou músicos profissionais. Portanto, os mesmos poderão se adaptar melhor a instituições de ensino voltadas para a qualificação profissional para o mercado de trabalho. Da parte dos docentes, é preciso um grande empenho para que as universidades públicas venham a desenvolver as investigações apropriadas para as estratégias de desenvolvimento. Atualmente, a maioria dos docentes faz parte do regime de dedicação exclusiva, que já comporta a realização de pesquisas, porém muitas destas pesquisas geram apenas relatórios para uso interno ou publicações, as quais, embora apresentando mérito científico, não contribuem efetivamente para se enfrentar os desafios do desenvolvimento. Deste modo, sugiro ainda algumas diretrizes a serem discutidas, com relação à atividade docente. Seria de grande importância a vinculação da carreira docente, e dos respectivos vencimentos, às contribuições do docente para os objetivos da universidade. Sendo assim, os docentes que apresentam o perfil desejado de investigadores-empreendedores, gerando conhecimentos novos e pertinentes para o país, e contribuindo para sua aplicação no contexto social apropriado, deveriam ter maior progresso na carreira, e receber salários maiores. A motivação financeira para realização das investigações e disseminação de seus resultados viria do próprio salário da universidade, e não de receitas pró-labore recebidas de forma irregular (que terminam por desmoralizar as regras do regime de dedicação exclusiva). Evidentemente, os novos critérios de avaliação docente seriam rediscutidos, e fixados da forma mais justa, exata e descomplicada possível. A avaliação do desempenho docente, segundo os pressupostos apresentados, não poderia ficar restrita à quantidade de publicações ou à qualidade dos periódicos, ou a fatores de impacto (p.ex., número de citações, número de patentes), mas deve abranger todas as formas de contribuição à comunidade, devidamente documentadas, que sejam decorrentes das investigações realizadas. Atividades assistenciais ou de prestação de serviço, desvinculadas do ensino e da pesquisa, deveriam ser reduzidas ou abolidas; quando remuneradas, os valores recebidos deveriam ser contabilizados para a universidade, e não para os docentes envolvidos (exceto, é claro, se os mesmos não pertencerem ao regime de dedicação exclusiva e exercerem as atividades de modo independente). Para que os docentes tenham tempo e energia para realizar as atividades-fim da universidade, é imprescindível que não estejam sobrecarregados com uma quantidade excessiva de carga didática. Na UNESP, universidade em que trabalho, estabeleceu-se o mínimo de 8 horas/aula semanais (em média anual) por docente, mas os órgãos colegiados "se esqueceram" de fixar o número máximo de horas-aula. Na minha experiência pessoal, entendo que 12 horas/aula semanais deveria ser o máximo admitido por docente, pois acima disso se torna difícil compatibilizar a qualidade das aulas com a qualidade da pesquisa e da extensão. Deste modo, não se descartaria a possibilidade da utilização de bolsistas de nível doutorado, devidamente remunerados por meio de um valor adicional em suas bolsas, para ministrar aulas no Ciclo Básico a ser criado, atuando sempre sob a supervisão dos docentes responsáveis. Seria ainda preciso reduzir o número de horas de aula da segunda fase de todos os cursos, para que a introdução do Ciclo Básico não implique no aumento do tempo de graduação; com esta redução, os docentes teriam melhores condições de administrar sua carga horária, de modo que fique entre 8 e 12 h/a semanais. Também Marilena Chauí (A universidade pública sob nova perspectiva, Revista Brasileira de Educação 24: 2003), cuja visão da Reforma Universitária têm aspectos em comum com esta proposta, entende ser necessário "reformar as grades curriculares atuais e o sistema de créditos, uma vez que ambos produzem a escolarização da universidade, com a multiplicação de horas/aula, retirando dos estudantes as condições para leitura e pesquisa, isto é, para sua verdadeira formação e reflexão, além de provocarem a fragmentação e dispersão dos cursos, e estimular a superficialidade" (p. 13). Para que os recursos disponíveis sejam suficientes para a realização das mudanças que se fazem necessárias, é preciso, além da captação de verbas junto às agências de fomento, que se evite o desvio das verbas disponíveis para atividades burocráticas ou assistencialistas. Em especial, é preciso fiscalizar se os Hospitais Universitários estão efetivamente centrados em atividades de formação e pesquisa. Quando existirem atividades assistenciais desvinculadas do ensino e pesquisa, é preciso que as mesmas sejam autofinanciadas (através de verbas do Sistema Único de Saúde ou de contribuições privadas), pois a universidade não tem condições de substituir o Estado em uma de suas funções básicas, que é prestar assistência em Saúde a toda a população. Na próxima seção discuto brevemente quatro problemas atuais do desenvolvimento brasileiro, frente aos quais a universidade pública poderia atuar como a "enzima" ou "faísca" adicional, necessária para que se encontrem as soluções possíveis, facilitando a emergência de novos caminhos para o desenvolvimento. Desafios no desenvolvimento brasileiro A sociedade capitalista da fase tecnológica é usualmente definida como sendo aquela em que o acúmulo da riqueza se faria principalmente através do valor agregado às mercadorias por meio do conhecimento. Contrariando as expectativas decorrentes desta definição, o atual ciclo de desenvolvimento por que passa a economia brasileira se engendrou principalmente através da atividade agrária, se concentrando em produtos de baixo valor agregado voltados à exportação. Com certeza estes produtos se beneficiaram de valiosas pesquisas, feitas pela Embrapa e por diversas universidades, que aumentaram a produtividade de nosso setor agrário, colocando-o em novos patamares de competitividade internacional. Tais pesquisas aperfeiçoaram o processo de produção, mas não conferiram aos nossos produtos características diferenciais que lhes habilitassem saltar para faixas mais elevadas de valor de venda sem o correspondente aumento do custo por unidade. Ao contrário, estima-se que a desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar seja fator essencial para se explicar tal sucesso das exportações. No momento em que escrevo estas linhas, analistas econômicos fazem o balanço do ano de 2004, apontando que o país está pagando em dia o serviço da dívida externa, o que tem levado a uma baixa do "risco-país" e, em conjunção com um contexto internacional favorável, tem atraído novos investimentos externos. A razão pela qual conseguimos obter aparentes vantagens no comércio internacional, com tal estratégia, pode escapar aos economistas, mas com certeza é percebida pelos biólogos. Exportando produtos agrários, como já ocorreu em outros ciclos históricos, estamos exportando bens que são escassos, ou de custo mais elevado, nos países importadores, ou seja, estamos vendendo recursos essenciais como luz, água e riqueza do solo. O grande problema que aqui se apresenta é que este ciclo, examinado a partir de nossas experiências do passado, não seria sustentável, pois a monocultura de alta produtividade, como acontece com a cana-de-açúcar e a soja, causa um grande desgaste do solo, gerando aumento do custo de produção, devido à utilização de insumos; torna-se progressivamente vulnerável a pragas, e eventualmente leva - por várias rotas - a um comprometimento dos recursos hídricos. Uma forma de tornar este desenvolvimento sustentável é a formação de Sistemas Agro-Florestais (SAFs), por meio da combinação das culturas de alta produtividade com outras espécies vegetais, possibilitando maior proteção dos solos e da água, dando suporte a uma maior variedade da fauna, diminuindo a vulnerabilidade das espécies cultivadas e reduzindo a necessidade de fertilizantes químicos e defensivos. Já há na universidade importantes conhecimentos sobre os SAFs, mas sua utilização para as culturas de cana e soja, de modo a se garantir a competitividade dos produtos, requer ainda muita investigação científica, da parte de agrônomos, engenheiros florestais, biólogos, químicos, físicos, economistas, administradores, sociólogos, e outros acadêmicos e profissionais. Uma segunda vertente de desenvolvimento está na área de energia, onde, através de pesquisas realizadas durante décadas, a Petrobrás tem conseguido significativo resultado na detecção e exploração de petróleo; o gás natural já está sendo disponibilizado em diversas regiões; foi criado o Biodiesel e regulamentada sua comercialização; e principalmente, a produção de álcool emergiu, em nível internacional, como a grande alternativa de combustível limpo e renovável, a partir da implementação do Protocolo de Kyoto. Entretanto, o motor a álcool atualmente existente é apenas uma adaptação do motor à gasolina, a partir de pesquisas realizadas na década de 1980; o desenvolvimento de uma nova geração de motores a álcool, combinado com nossos avanços na produção e exportação deste combustível (que deverá triplicar em 2005, conforme as projeções oficiais), poderia colocar o Brasil na vanguarda da indústria de transporte. Trata-se de uma tarefa que requer uma vigorosa iniciativa por parte da universidade, mobilizando seus recursos humanos nas áreas das engenharias para a formação de grupos multidisciplinares, tendo em vista a grande importância estratégica deste empreendimento. O terceiro e maior desafio diz respeito às questões da exclusão social e da destruição ambiental. Apesar dos avanços conseguidos nas áreas anteriormente citadas, há ainda uma grande massa de desempregados nos grandes centros urbanos, fruto do declínio relativo da atividade industrial e da emigração do campo para a cidade. Parte desse contingente se associa ao "movimento dos sem-terra", que pleiteia uma Reforma Agrária que lhes conceda a propriedade de um lote de terra, potencialmente reduzindo o desemprego e a exclusão social. Por outro lado, tem ocorrido um grande avanço na ocupação e uso do território, especialmente na região amazônica, de uma forma depredatória, ameaçando a continuidade dos processos ecológicos que recompõem nossos recursos ambientais. Enquanto analisados de forma estanque, os problemas da exclusão social e da destruição do ambiente, assim como a questão pendente do pagamento da dívida externa brasileira, todos eles se afiguram como sendo impossíveis de se enfrentar com sucesso. No entanto, quando analisados de forma sistêmica, uma solução conjunta se apresenta, a partir de uma possível atuação da universidade. Seria sem dúvida interessante para o Estado brasileiro saldar parte da dívida externa, para tal se utilizando nossa própria moeda, e não o dólar. Também seria interessante que o processo de Reforma Agrária fosse intensificado, dando ocupação para parte da massa de excluídos que se encontra organizada em movimentos reivindicatórios. Seria ainda altamente desejável que a Reforma Agrária ocorresse segundo diretrizes que garantissem que a ocupação da terra ocorresse de modo ecologicamente correto (para uma análise da situação atual desta Reforma, vide o artigo de M. Resende e M.L. Mendonça, A Contra-Reforma Agrária do Banco Mundial, em: http://www.lainsignia.org/2005/enero/econ_009.htm). A universidade pública pode formar equipes multidisciplinares para elaborar e implementar projetos de Empresas Ecológicas, que gerem ocupação produtiva para trabalhadores sem terra, vindo a explorar comercialmente, de forma sustentável, espécies nativas, principalmente as arbóreas, produzindo frutas, fibras, madeira, resinas, etc., para o mercado interno e externo. Tais empresas seriam financiadas pelo Estado, incluindo-se aí a aquisição das terras e a composição do capital inicial. A partir de projetos criteriosamente formulados pelas equipes, inclusive quanto aos aspectos jurídicos e administrativos, e prevendo ações de educação ambiental, seriam feitas propostas aos nossos credores, de trocas de partes da dívida por ações destas empresas (a aceitação desta proposta, acredito, seria menos improvável que a idéia levantada em 2004 pelo ministro Tarso Genro, de se trocar partes da dívida por investimentos em educação, pois tal idéia conflita diretamente com as diretrizes do Banco Mundial, que são favoráveis à privatização do ensino). A partir do estabelecimento de acordos com os credores, teríamos assim a oportunidade ímpar de planejar um modelo de civilização, gerando emprego, reduzindo a dívida externa, trazendo materiais das florestas brasileiras para uso no dia-a-dia da população urbana, e evitando que a ocupação do território brasileiro continue a se fazer de modo destrutivo. O último desafio do desenvolvimento brasileiro que cito de exemplo diz respeito à área de Saúde Coletiva. O estresse da vida nas grandes cidades, associado muitas vezes à alimentação de má qualidade, sedentarismo, precárias condições de vida e falta de perspectivas, têm levado ao crescente consumo de drogas legais e ilegais, sendo que o consumo das últimas, como se sabe, alimenta a rede de criminalidade e violência. Para combater as doenças que acometem esta população, a medicina atual utiliza prioritariamente recursos farmacológicos, que também são drogas (antibióticos, antitérmicos, antiinflamatórios, antidepressivos, etc.), os quais, juntamente com seus inegáveis efeitos terapêuticos em curto prazo, terminam por apresentar efeitos colaterais, aumentando em longo prazo o estresse químico e a intoxicação da população. Ao se perceber os limites das terapias farmacológicas, a população em geral, e os gestores do sistema de saúde pública em particular, têm desenvolvido esforços preventivos, educativos, alternativos e complementares. A revalorização da medicina popular, dos recursos fitoterápicos, é uma forma de atenuar o estresse químico. Práticas médicas consideradas alternativas, como a homeopatia, acupuntura e medicina ortomolecular, ganham espaço inclusive no sistema público de saúde. O papel de profissionais de saúde não-médicos, como psicólogos, enfermeiros e terapeutas ocupacionais, nas equipes de saúde multidisciplinares, aponta para uma reconsideração dos fatores psico-sociais envolvidos no processo saúde-doença, e, conseqüentemente, para a consideração de metodologias terapêuticas que combinem o tratamento farmacológico com outras modalidades de prevenção e terapia. A implementação dessa nova abordagem junto à população tem ocorrido no programa Saúde da Família, onde as equipes multidisciplinares, juntamente com agentes comunitários e residentes de cursos universitários, têm apresentado resultados promissores. Outro exemplo importante é o processo de Reforma Psiquiátrica, que preconiza a redução progressiva das internações em hospitais psiquiátricos e a abertura de serviços substitutivos, que funcionam em regime aberto. Todas estas iniciativas demandam a decisiva participação da universidade pública, realizando investigações sobre os novos procedimentos utilizados, e também oferecendo atividades de supervisão e formação para os profissionais atuantes. Para se enfrentar os desafios na área de saúde, é essencial investigar as tecnologias utilizadas na área médica, que podem revolucionar não só o diagnóstico (como já ocorre atualmente), mas também os métodos terapêuticos, por meio da colaboração entre pesquisadores em física microscópica, biologia molecular e medicina. Destacam-se ainda as pesquisas sobre a interação cérebro-computador, onde o desenvolvimento de tecnologias (principalmente as não-invasivas) poderá propiciar, além da produção de melhores próteses para deficientes físicos, o desenvolvimento de novos equipamentos para uso cotidiano. Todas as possibilidades levantadas nesta seção dependem da geração de conhecimentos novos e sua implementação prática, tarefa que requer a colaboração de milhares de investigadores-empreendedores. O conhecimento de valor estratégico para o desenvolvimento não é o que já está pronto, mas o que se constrói no contexto apropriado. Nesta dinâmica, é possível que "no meio do caminho" se descubra algo inusitado, ou se conclua que aquilo que está sendo procurado precisa ser redefinido. É preciso, portanto, que haja esforço continuado, da parte das instituições responsáveis (universidades e institutos de pesquisa), para se buscar a inovação de modo sistemático. Infelizmente, a universidade atual não segue estas diretrizes. Ela está voltada para a disseminação do conhecimento consolidado, erradamente supondo que este seria suficiente para se enfrentar os desafios, e conseqüentemente deixando de investir na inovação. Isto ocorre praticamente em todas as áreas do conhecimento. Por exemplo, a física newtoniana tem grande importância histórica, mas no contexto atual não tem condições de propiciar a criação de novas ferramentas tecnológicas, que contribuam para o processo de desenvolvimento. Nossos cursos na grande área de exatas (com as devidas exceções) estão baseados no paradigma da física clássica; poucos pesquisadores ousam se aprofundar na física contemporânea e desenvolver os recursos tecnológicos que ela propicia, como o laser e respectivas aplicações na biologia molecular e medicina. V. Comentários finais Neste ensaio, proponho que a atividade-fim da universidade seja a investigação científica engajada no processo de desenvolvimento integral, o qual englobaria não só o crescimento da atividade econômica, como também a inclusão social, a preservação ambiental e a melhoria da qualidade de vida de toda a população. Mostrando a possibilidade de que a ciência aplicada à tecnologia pode promover o desenvolvimento integral, é digna de nota a recente iniciativa do Governo Federal, de organizar um seminário e a publicação de um livro sobre Tecnologias Sociais (vide http://utopia.com.br/rts.net/artigos/Teconologia%20social.pdf). Deste modo, a principal contribuição da universidade e dos institutos de pesquisa, com o apoio das agências de fomento, seria a geração de conhecimentos científicos e tecnológicos novos, adaptados ao nosso contexto, e sua implementação prática, voltada para a solução de problemas. Ambos - conhecimentos e práticas - são necessários para construir as ferramentas que possibilitem a superação dos obstáculos ao desenvolvimento, abrindo, através da inovação, novos empreendimentos que gerem empregos e riqueza. A universidade pública tem condições de se aproximar deste perfil, deixando para as demais instituições de ensino superior brasileiras a tarefa, também importante, de qualificação de mão de obra para o mercado de trabalho. Para operacionalizar tal proposta, sugeri um currículo de Ciclo Básico voltado para a formação de investigadores-empreendedores, com caráter seletivo, separando os alunos com real vocação para a investigação científica daqueles que poderão se beneficiar mais de um curso técnico voltado para sua inserção nas vagas disponíveis do mercado de trabalho. Também sugeri algumas medidas, no âmbito da atividade docente e da administração universitária, que seriam importantes para se atingir as metas propostas. Acredito que as questões aqui abordadas deveriam receber maior atenção no debate sobre a Reforma Universitária que atualmente se desenrola em nível nacional, o qual corre o risco de se perder em questões periféricas. Também poderiam ser discutidas pelas universidades estaduais paulistas, pois no movimento grevista realizado em 2004 se tornou evidente que nossos problemas não decorrem apenas da dotação orçamentária recebida. Podemos e devemos utilizar nossa autonomia para construir uma universidade mais comprometida com o desenvolvimento econômico, social e humano, esforço que sem dúvida se converteria, ao longo do tempo, em melhores condições para o exercício da atividade docente. (*) Professor Livre-Docente do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da UNESP/Campus de Botucatu; Graduado em Filosofia (UFJF) e Administração de Empresas (FCCA Machado Sobrinho); Mestre em Filosofia Contemporânea (UFMG); Doutor em Lógica e Epistemologia (UNICAMP); Pós-Doutorado em Ciências do Cérebro e da Cognição (MIT-EUA; bolsa FAPESP); Bolsista de Produtividade na Pesquisa (CNPq); e-mail: alfredo.pereira@gmail.com |
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