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La insignia
4 de dezembro de 2005


A literatura, o que é?


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, dezembro de 2005.


Leitor distante, suponho que de mares além muito além de Olinda, me escreve para pedir uma orientação. Às vezes isto ocorre, as pessoas pensam que um escritor, ou pior, em meu caso, um sujeito que põe um verbo ao lado de um sujeito, pode alguém orientar. Então este ser à procura de um N, de um norte, ainda que viva ao leste do Norte brasileiro, recebe:

"Caro Urariano, li uma resenha sua sobre o livro Budapeste e gostei muito!
Gostaria de saber se você poderia me ajudar com algumas indicações, pois tenho que realizar um trabalho sobre o mesmo livro mas numa disciplina de literatura comparada, portanto há a prerrogativa de se comparar fontes. Na sua opinião, como e com quais obras poderia relacionar esta do Chico.
Peço, desde já, desculpas pela intromissão em sua caixa postal e agradeço a possível ajuda!
Um cordial abraço! "

Regra geral, fórmula vulgar e universal, a primeira linha de uma mensagem é pura gentileza. O que importa mesmo, aqui, é o segundo parágrafo, que pede indicações de obras relacionadas a Budapeste, para um trabalho de literatura comparada. Bueno. Recebida a mensagem, fiquei sem saber para que Norte ou Budapeste eu fosse. À margem do pedido, somente para mim e algum leitor devo confessar, nessa relação de cumplicidade que travamos: o primeiro disparate que um demônio me soprou foi "Isto é o próprio Chico, sob pseudônimo, que te escreve para te enredar. Não vês? Isto é para ele ter certeza de que não passas de um desorientado". Um indivíduo sem noção, como dizem os adolescentes. O que muito me irritou, na medida exata em que era absoluta expressão da verdade. Diminuída a contrariedade, passado o susto, me iluminou uma noção, até como prova de que alguma eu tinha. A mensagem poderia mesmo ser de alguém para alguém menos desorientado, por hipótese e esperança. E por isto assim respondi:

"Caro amigo
O livro Budapeste é muito ruim, e é de uma ruindade que não chega nem a ser 'antológica', digo, exemplar, de ruindade. (Como um Zé do Caixão, por exemplo, pro cinema.) Tudo nele é falso, e frágil. Falta verdade em sua narração. Disseram a Chico que ficção é invenção, e, por ser uma rima, ele acreditou!
O resumo da ópera é este: esta não é a praia de Chico. A dele é música popular, em que é um dos grandes, no Brasil e no mundo. E tudo o que se relacionar com música, como musical, adaptação de ambientes e enredos para que ele exerça a sua melhor arte.
De sorte, ou de azar, que as obras a se relacionar com Budapeste seriam obras falhadas, ruins, pretensiosas - e para isto você pode pegar qualquer autor que esteja em moda no Brasil. Não digo nomes porque aos 55 anos tenho de ser muito seletivo, o tempo não está a meu favor. Portanto, não tenho tempo de ler mais o medíocre. Abri uma exceção para Chico, pelo nome e arte do compositor. O resultado foi o que se viu.
Acredite, falo bem-humorado.
Abraço pernambucano".

A isto o amigo dos longes dos longes de Olinda nada mais falou. Emudeceu. É natural, ele não poderia responder, por exemplo, esta primeira linha de cortesia: "Caro Urariano, li a resposta sua sobre o livro Budapeste e gostei muito!". Por isso respondamo-nos duas ou três coisas.

A primeira delas é que o presente escrevinhador se põe fora e a salvo dos autores que naufragam em obras falhadas, ruins e pretensiosas. O que é, em primeiro lugar, uma pretensão. E em segundo lugar, pasmem, uma prova da maior sanidade mental. Entendam, por favor: se um indivíduo, apesar de todos seus esforços em dizer algo de valor, atingisse a imagem objetiva de se ver como um autor pretensioso, falhado, ruim e medíocre, acreditem, o passo mais razoável seria amarrar uma pesada pedra ao pescoço e mergulhar no mais fundo mar de Olinda. É portanto normal que não vejamos a nós mesmos com os olhos do inimigo, que a esta altura levantamos à posição de inimigo da literatura. Por outro lado, supondo que mudamos para outro lado, deixemos para que outros digam que os nossos escritos são ruins, fracos, fracassados, ridículos. Deixemos tal juízo para esses outros, por supuesto, insensíveis, brutais, encarniçados inimigos da literatura. A nós já basta a nossa cruz de tentar, tentar algo de bom e falhar, todos os dias.

A segunda coisa é mais grave e menos simples. Trata-se da confusão entre ficção e invenção, e haja rima para tamanha falta de imaginação. Vejam, com paciência, vejam. Somente esta segunda coisa mereceria um trabalho mais profundo, desenvolvido por mãos bem menos incompetentes que as minhas. Mas com paciência e boa vontade, acompanhem, por favor, vejam e reflitam. Pausa.

O fato, elementar, de um trabalho de ficção ser absolutamente distinto de um relato objetivo, de um relatório, de um retrato, de uma foto batida por máquina produzida por outra máquina em partenogênese, deu e dá margem a todo tipo de mito e mistificação. Ao comum da gente que sempre "adivinhou", percebeu, viu personagem, narração, como um fiel retrato do autor, os escritores sempre responderam muito bem que a ficção é livre do factual, que, liberta do ocorrido puro e simples, a ficção mais falava a possibilidades que a fatos. Daí se caiu em outro extremo: se assim é, a falar do que não ocorreu, a ficção é pura invento. E que o bom escritor, portanto, é o de poderosa imaginação, porque, afinal, sua obra navega no mundo da fantasia. E etc. etc. etc.

Pensemos. Em nível geral, abstrato, dizemos, cobertos de fatos concretos, que o real é que é inesgotável. O real é o dom supremo. A maior fantasia, a jamais imaginada invenção é a realidade. Para não ir muito longe, pensemos somente neste ser que vemos todos os dias, no homem. E imaginemos se algum deus, se o Deus mais inspirado poderia algum dia inventar este ser fedorento, que ama, caga, fode, cria e gargalha. Este produto da realidade é que é a maior invenção. Sábio e maravilhoso e profundo e genial é o artista que o vê. Como Cervantes com o Dom Quixote, para citar um só gênio. E quando dizemos real, referimo-nos também às possibilidades disformes, conformes e multiformes do homem e da sua criação. O real é o todo, o real é o absoluto.

Cheguemos agora mais perto da imaginação. É um desastre mais que conceitual, ora ingênuo, ora cínico, ora cênico, ora estúpido, o acreditar que a literatura é obra da pura imaginação, e por imaginação o substantivo implícito, o miserável e empobrecido conceito de que imaginação é o sonhar além, sem lei da gravidade, uma criação acima e fora do mundo. Solta, além de toda e qualquer limitação. Ora, muito bem imagina quem melhor observa. Isto quer dizer, por um lado, que a imaginação sempre se exerce sobre o existente, anterior ao imaginar. Por outro lado, que a imaginação é uma imitação do que antes de si foi criado, um salto, uma descoberta, fruto de uma pesquisa livre. Mesmo quando o artista disso não se dê conta, não perceba, conscientemente. Nenhum homem nem criador se diz, "bem, agora é hora de observar". Ele faz, ele observa, como uma imposição do seu modo de ser. Até mesmo como uma condenação, muitas vezes como um conflito do qual não pode fugir.

Daí que chega a ser estúpido, pueril, o dizer, ou pior, o fazer um livro, um romance, ou o que se queira criar, na vã e fútil crença de que a criação é fantasia, invenção! Por Zeus, não é assim, desde os gregos, passando por Kafka e Proust, até Hesse, Mann e João Cabral de Melo Neto. As pessoas não vêem, ou não querem ver, que o grande e vasto mundo criado pro Balzac possuía bases sólidas na França das ruas observada. Balzac seguia, perseguia o que no futuro seria personagem. As pessoas não vêem, ou não querem ver que Da Vinci perseguia bêbados, devassos, marginais, para mais adiante transformá-los em seres evangélicos. A mais santa e imaculada Virgem Maria tem formas e seios de mulher parideira, será que não percebem? O que é mesmo A Metamorfose a não ser a discriminação, o desprezo e vergonha que damos a nossos amados parentes caídos em desgraça? Será que não vêem que Doutor Fausto não existiria sem a realidade nazista? Os exemplos são infinitos, melhor dizendo, finitos em número, mas tão fundos que parecem não ter fim. O contrário a essa realidade universal, o que poderia ser puro exercício da imaginação, se isto é possível, é sempre um rotundo e acabado fracasso. No que voltaríamos a Budapeste.

A terceira e última coisa é o parentesco entre Budapeste e as obras em moda no Brasil. Isto exigiria mais que uns parágrafos, melhor hora para estas notas, de preferência no começo das cinco da manhã. No momento, são duas da tarde em Olinda. Todas as tentações nos chamam, mas em lugar de tentados, tentemos, ainda assim.

A primeira característica das obras em voga no Brasil é que as pessoas, vá lá, os escritores, brincam de escrever literatura. Quero dizer, o escrever não é à vera, não é a sério nem sério. Queremos dizer, a literatura não é um destino, uma determinação de vontade, o desejo de um lugar único, e somente único, não mais que único, sem jamais pensar qualquer outra riqueza, a não ser esta honra suprema, como por ela enlouquecia Lima Barreto:

"Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras".

Os indivíduos, os "escritores" brincam. Dão entrevistas, fingem que escrevem, julgam-se criadores, seguem em frente. Como se dão bem, porque recebem resenhas com os mais caros elogios - e pelo visto, pela qualidade das críticas, os críticos ainda vão conseguir matar os significados de qualquer adjetivo -, vão em frente. Como as resenhas promovem, os livros se vendem. E porque se vendem, as editoras investem nessa qualidade. Há um círculo vicioso. Se falam de um nome como escritor, ele é bom escritor, e se ele é, recebe edições, e se recebe edições, é digno de ser resenhado. Façam a volta no círculo perfeito, porque tudo volta a ser recomeçado. O marketing é o próprio fazer literário - há casos, e certamente este exemplo não é só brasileiro, há casos de escritores que recebem resenha e críticas elogiosas antes, bem antes de o livro ser escrito. É uma consagração antecipada, por ovo futuro, que a galinha ainda não pôs nem botou.

Esse fazer literatura, diria melhor, esse "acontecer" literatura, termina por trazer para a escrita o próprio mundo do business, que no Brasil, em se tratando de arte, é voltado para o mundo da música popular. O compositor é que é, tão bom ou melhor que a coca-cola: poeta, gênio, galã, ator, conselheiro, guru, modelo, pensador, cineasta, cantor, e, até, acreditem, músico. Nessa ordem. A isto se acrescenta, nesse novo tempo: escritor. E acontece então um paradoxo, na melhor das hipóteses uma ambivalência: diante de intelectuais, o compositor finge que é só escritor, diante de músicos, afirma que é só compositor. Para ser fiel às suas profundas leituras e formação literária, deveriam se apresentar sob o pseudônimo de Don Diego, o próprio Zorro da Califórnia. Com a máscara, literato. Sem ela, músico.

E a literatura, sei que estão nos perguntando, e a literatura, o que é? "Vamos, responda!". Então respondemos: - Em Olinda, são 3 e 30 da tarde de um sábado 3 de dezembro de 2005. Em Madrid, são 8 e 30 da noite do mesmo dia. Isto poderia iniciar um bom conto.



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