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14 de agosto de 2005 |
Arraes, urgente
Urariano Mota
Os obituários que sempre esvoaçam e rondam a agonia dos grandes homens desta vez falharam no alcance e na sua mira. Abutres, de bom faro e argúcia, desta vez os obituários erraram o cadáver do brasileiro que se vai. E não exatamente por falta de tempo e de informações. Miguel Arraes de Alencar, presidente do Partido Socialista Brasileiro, encerrou sua vida neste 13 de agosto depois de quase dois meses internado em um hospital. Na altura de lúcidos e incansáveis 88 anos de idade, tempo, importância, fatos e história não foram parcos. Os obituários que temos diante dos olhos, no entanto, foram todos redigidos e arquivados como se ele passasse por nós como uma sombra do golpe de 1964, como um sobrevivente que resistisse a nos lembrar aquela infâmia, com uma insistência cujo desagrado era inevitável. "Em seu primeiro mandato como governador, foi deposto pela ditadura militar. Exilou-se na Argélia, em 1965, e só retornou ao Brasil 14 anos depois, beneficiado pela Lei da Anistia. Já foi eleito três vezes deputado federal", diz-nos a Folha Online, relacionando dramas históricos como a ocorrência de chuvas, sol e gripes passageiras. Como fatalidades fúteis. O Globo On Line, com menos má vontade e omissão, evita a economia na gravação dos dados de uma vida venturosa. Mas o mal vem enformado no título, "o último representante da velha esquerda". De Pernambuco, na imprensa local, o JC Online informa, desinforma, mal informa, nada informa: "Quando a ditadura militar foi instalada, o governador foi deposto e permaneceu quase um ano preso na ilha de Fernando de Noronha. Depois de conseguir um habeas corpus, o político embarcou para a Argélia, onde viveu 14 anos no exílio." Nada, em suma, que alcance o homem que esteve sob seus olhos e olfato a padecer nos últimos 58 dias. Nada à altura dos 88 anos que se vão como um fio de luz neste sábado de agosto. E nem precisariam compor uma hagiografia, um perfil de um santo, o mais convencional e falso perfil que se faz de alguém que morre. Não. Esse homem que se vai gerou também desgostos, inimizades e queixas no interior da própria esquerda brasileira. Havia militantes sindicalistas que o descreviam como coronel, caudilho, autoritário, pouco afeito a ouvir a divergência, porque, no governo, não atendia às reivindicações dos servidores públicos. Outros havia, ex-companheiros do tempo da resistência democrática, que o acusavam de concentrador, porque não distribuía com justiça cargos, valores e representações, e, pior, não abria espaço para que os ex-companheiros também ascendessem ao poder no tempo bom. E, por unanimidade quase, ongs se irmanavam em condená-lo como um ser atrasado, do século dezenove, a ver o mundo com os olhos das populações analfabetas do nordeste brasileiro. Por coincidência, este foi o mesmo conceito com que o viu o Estado neoliberal no Brasil, dos Fernandos Collor e Henrique Cardoso aos conservadores de todas as convicções. Mas por que e para que tanto furor contra esse dinossauro, mau orador, incapaz de discurso de arrepiar as massas, que falava baixo e ruim e com dicção difícil? - O povo o amava. O povo o idolatrava. O povo se rasgava por ele. O povo entrava em febre por ele. O povo entregaria a própria vida por ele. Uma das maiores dificuldades de Gregório Bezerra, no primeiro de abril de 1964, foi convencer camponeses a não virem ao Recife. Massas de trabalhadores se dispunham a vir à luta armados apenas de facões, facas e enxadas contra fuzis e tanques do exército brasileiro. Bastaria este fato para dar a dimensão desse homem que se foi. Mas ainda é pouco. A coisa dita assim, até parece que massas ignorantes, fanatizadas, dispunham-se ao sacrifício, a entregar o próprio corpo ao genocídio. Mas não. Tal amor é manifestação testemunhal por atos concretos do que foi o primeiro governo Miguel Arraes. É com ele que surge o revolucionário, o pioneiro e odiado "Acordo do Campo": trabalhadores da cana-de-açúcar tiveram os mesmos direitos que os trabalhadores urbanos de Pernambuco: salário, décimo-terceiro, carteira assinada... deixavam de ser escravos. Daí o fanatismo desses atrasados. Impossível não lembrar as palavras de um espartano citadas por Marx: "Você sabe o que é ser um vassalo, mas nunca provou a liberdade para saber se ela é doce ou não. Porque, se a tivesse provado, teria nos aconselhado a lutar por ela não apenas com lanças, mas também com machados". Um homem assim, que gera tais sentimentos, quando se vai, deixa sempre na gente o gosto amargo da sua ausência. Mas quando isto se dá numa hora como a que todos no Brasil passamos, o que dizer? Talvez esperar em silêncio que renasçam políticos à semelhança do Miguel Arraes de Alencar, que em discurso, entre pigarros e sem levantar a voz, declarou: "Como homem público, tenho que esperar tudo, sem queixa, porque é minha obrigação ir pra cadeia, se é pra manter a minha posição de defesa do povo e não capitular diante dele. É minha obrigação ir pro exílio, se não posso ficar na minha terra. É minha obrigação manter a posição, manter firmemente a posição que pode mudar o nosso país e melhorar as condições de Pernambuco." Mais Miguel Arraes, urgente.
Fotografia O governador Miguel Arraes deixa o Palácio das Princesas, preso, após 14 meses de governo, levado por um oficial do Exército (PE, abril de 1964. Acervo do Diario de Pernambuco).
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