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La insignia
4 de abril de 2005


O anjo pornográfico


Tostão
Folha de São Paulo. Brasil, abril de 2005.


Nesta semana de Fla-Flu, sonhei que entrevistava Nelson Rodrigues, o maior tricolor e o maior e mais extravagante cronista brasileiro. Quando ele me viu, disse: "Como vai, Anão de Velázquez?". Assim ele me chamou numa de suas crônicas, referindo-se ao anão que aparece numa das grandes pinturas de Velázquez, "As meninas".

- Quando nasceu o Fla-Flu?, perguntei.
- O Fla-Flu não tem começo. O Fla-Flu não tem fim. O Fla-Flu começou 40 minutos antes do nada. E aí as multidões despertaram. E Mario Filho, antes do paraíso, já dizia que o Fla-Flu ia ser o milagre do futebol.
- E a sua paixão pelo Fluminense?
- Eu já era tricolor antes do Fluminense, antes de mim mesmo e até antes de Cristo. Tudo passa. Só o tricolor não passará jamais.
- Quem vai ganhar hoje?
- Desde ontem o Fluminense. Só um cego, hereditário e póstumo, não enxerga o óbvio ululante. Faço um apelo aos tricolores, vivos ou mortos, para não faltarem ao Maracanã. Após o jogo, só restará aos flamenguistas sentar na calçada e chorar lágrimas de esguicho.
- Quem vai decidir a partida?
- O Sobrenatural de Almeida e a alma. Os idiotas da objetividade e os entendidos não vão além dos fatos concretos. O entendido só não se torna abominável porque o ridículo o salva. Não percebem que o mistério pertence ao futebol. Não há clássico sem um mínimo de fantástico. Até a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeareana. E sem alma não se chupa nem um chicabom. A alma é tudo, o resto é paisagem.
- O que você pensa da crônica esportiva?
- O pior cego é o míope. E pior do que o míope é o que enxerga bem mas não entende o que enxerga. Há pessoas, sobretudo jornalistas esportivos, que não têm inteligência visual. Existe na "Divina Comédia" um lapso indesculpável. É que no inferno dantesco não aparece um único jornalista esportivo.
- O que têm em comum os craques?
- A falta de modéstia. A maior virtude do Pelé era a imodéstia absoluta. Ele se achava acima de tudo e de todos. E acabava intimidando a própria bola, que lhe beijava os pés com a docilidade de cadelinha.
- Outro dia continuaremos a entrevista. Tenho de escrever sobre a seleção brasileira. Sou um desses entendidos que tenta explicar os fatos.
- Que se danem os fatos. Escreva mais sobre a paixão no futebol. Os fatos e o videoteipe são burros. Não tenha medo do ridículo. Só os imbecis têm. Não há amor sem um toque de ridículo. Dê um grande abraço no Armando Nogueira.


Duas seleções

Como disse José Trajano, houve contra o Uruguai uma seleção brasileira sem áudio e outra com áudio -a da TV Globo, que transmitiu o jogo.

A seleção sem áudio, real, jogou com muita garra, marcou bem no meio-campo e na defesa, mas teve pouquíssimo brilho. Do meio-campo para a frente, ficava embolada com três duplas na faixa central (dois volantes, dois meias e dois atacantes). Ninguém atuava pelos lados.

Robinho entrou bem, mas também jogou pelo meio. Nenhum lateral do mundo consegue marcar, fazer a cobertura do zagueiro e avançar, com freqüência, pela ponta. A seleção com áudio, a que é assimilada e repetida pela maioria das pessoas e que passa a ser a verdadeira, fez uma grande partida, além de jogar com garra.

Parecia que o Brasil dominava o jogo e que as grandes chances de gol eram da seleção brasileira. Ronaldinho Gaúcho, o único que ensaiava e quase completava espetaculares lances, era o único criticado. Até o Ricardo Oliveira, mais estático ainda do que o Ronaldo, atuou bem.

No outro dia, Parreira declarou: "A seleção mostrou o verdadeiro futebol brasileiro, botou a bola no chão e impôs a sua técnica. Foi uma atuação que me encheu de alegria". Ele deve ter assistido ao teipe e ficado eufórico com tantos elogios ao time.

A mesma influência acontece também na sociedade. Como já disseram algumas vezes respeitáveis sociólogos, a cultura brasileira é das novelas, dos "Big Brothers" e das celebridades.



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