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La insignia
13 de outubro de 2004


«O silêncio do delator», de José Nêumanne Pinto

Testamento de uma geração


Ruy Fabiano (*)
La Insignia. Brasil, outubro de 2004.


Os anos 60 do século XX constituem um século dentro do século. Foram de tal intensidade e abrangência as transformações comportamentais, ideológicas e culturais ali operadas que seus efeitos morais e psicossociais marcaram as gerações seguintes? e continuam em plena vigência, desafiando artistas, pensadores e estudiosos em geral. Foi um século (isto é, uma década) que não acabou? ainda.

Nela, entre outros, desfilam Beatles, Rollings Stones e Bob Dylan; a revolução sexual, o movimento hippie, o culto às drogas e ao psicodélico; a utopia marxista, a Guerra Fria, o assassinato de Kennedy, a Guerra do Vietnã, a revolta estudantil em Paris, o cinema cult/experimental de Godard, Pasolini, Visconti, Fellini, Antonioni, Buñuel etc. Entre (muitas) outras coisas.

No Brasil, a década foi igualmente movimentada: golpe militar, cinema novo, bossa nova (nascida na década anterior, mas consolidada e exportada na dos 60), festivais da canção, músicas de protesto, jovem guarda, tropicalismo, teatro experimental, drogas e barato total, tendo como desfecho trágico, em dezembro de 1968, a edição do AI-5 e o aprofundamento da ditadura militar. Uma década insepulta a pairar como espectro na memória de um dos séculos mais densos e movimentados da história humana. O Silêncio do Delator, romance do escritor e jornalista paraibano José Nêumanne Pinto, recém-lançado pela Editora A Girafa, propôs-se a inventariar aquela geração. Inventário moral, estético, político-ideológico, espiritual. O desafio não é pequeno, mas pode-se dizer que o autor o enfrentou com categoria ? e saiu-se bem.

Conseguiu dar ao texto um ritmo vertiginoso, que se mantém ao longo das suas 544 páginas, recheadas de citações da cultura pop e do universo intelectual da esquerda marxista, como convém a uma década que sonhou simultaneamente com a revolução pelas armas, pelas drogas e pela música, e cujo charme está não no fracasso, mas no glamour com que o protagonizou.

O fio condutor da narrativa é a música. Música Pop. Mais precisamente, a música dos Beatles e de Bob Dylan, extraída dos legendários discos Sergeant Pepper's lonely hearts club band (Beatles) e Bringing it all back home (Bob Dylan). Cada capítulo se refere a uma das faixas desses dois discos. E termina com uma estrofe do belo poema Inventário, de Pedro Paulo de Sena Madureira, dedicado ao autor, que de um de seus versos extraiu o título do romance.

A história se desenvolve em planos temporais distintos e simultâneos. Em 2004, num lugar qualquer do Ocidente (o autor propositalmente não o situa), dá-se o velório do protagonista e narrador, João Miguel, professor universitário e escritor fracassado. Como um Brás Cubas contemporâneo e mais cético ainda que o original, João Miguel narra a história, os sonhos e frustrações de sua patota, cujo nome é uma paródia do legendário disco dos Beatles: a "patota dos sovacões solidários do recruta Pepé". Seu velório é o de sua geração, que sonhou mudar o mundo, mas apenas o virou do avesso. Os amigos do morto se reencontram no velório e, em torno das lembranças que ele evoca, repassam os sonhos e desventuras da década dos 60. O finado os escuta e intervém em pensamento, com observações e relembranças. Não é ouvido, mas ouve ? e cabe-lhe conduzir a narrativa. Nêumanne diz ter concebido essa história há mais de vinte anos, sem conseguir ir além de um esboço no papel, que considerou ruim. Foi no início deste ano, quando assistiu As Invasões Bárbaras, do diretor canadense Denys Arcand, que teve o estalo para fazê-lo. E o fez compulsivamente, em nove meses de frenético labor matinal. O parto deu-se em setembro.

Apesar do tom crítico e desencantado, o romance é uma comovida homenagem àquela década, na evocação de seus poetas, líderes, idéias e ideais. Para contar essa história, Nêumanne recorreu a artifícios formais complexos, que, mesmo sem essa pretensão, inovam a narrativa romanesca brasileira contemporânea.

O romance é contado em sete "vozes", conforme os versos do samba A Voz do Morto, de Caetano Veloso (Voz do Morto, Pés do Torto, Cais do Porto, Vez do Louco, A Paz do Mundo, Atrás do Muro, Na Glória). Em cada uma dessas vozes, são contadas as histórias dos personagens da patota, suas lembranças e reflexões. E o corifeu desse coro de narradores é o finado João Miguel? João em homenagem a John Lennon, e Miguel em homenagem a Mikhail Gorbachov, os dois coveiros das duas utopias que embalaram os jovens rebeldes dos anos 60.

A história começa em 1967, quando um personagem-chave da narrativa, Marco Antonio, codinome Coelho, apresenta à "patota dos sovacões solidários" os dois discos que iriam marcar os demais anos da década e se intrometer na seguinte. Coube-lhe também apresentar à turma o LSD, como antes a havia apresentado à utopia marxista.

Coelho, um ser misterioso e intrigante, cujo enigma é decifrado apenas no final do livro, personifica o espírito da década. A cada aparição, abre novos horizontes de reflexão e perplexidade à patota. Coloca-a diante de novos enigmas, mas nem de longe acena-lhes com a solução, até porque não a tem ? e nem mesmo sabe se existe uma.

A Geração de 60 buscou Deus onde Ele não estava. E concluiu que o sonho, que nem sequer chegou a ter certeza de haver sonhado, havia acabado. É desse sonho hipotético, que se transmuta em desalento e ceticismo, onde ex-hippies e ex-marxistas acabam funcionários públicos ou operadores do mercado financeiro, que o livro trata.

Não por acaso, o cenário é um velório. E o enredo o testamento moral e existencial de uma geração.


(*) Ruy Fabiano é jornalista.



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