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La insignia
8 de outubro de 2004


Brasil

Martha Argerich, a deusa do piano


Luís Nassif
Folha de São Paulo. Brasil, outubro de 2004.


Meu tio assistiu a Beniamino Gigli quando se apresentou em São Paulo, em 1948, nem sei se no estádio do Pacaembu ou em um teatro do Brás. Conheço um senhor que ouviu o violinista russo Iossif Robertovich Heifetz, no auge da sua carreira. Eu mesmo ouvi Yehud Menuhin e, na minha primeira viagem internacional, assisti a Von Karajan em Salzburgo. Conheci velhos poços-caldenses que assistiram a apresentações de Gabrielle Benzanzoni em benefício da Sociedade Beneficente São Vicente de Paula. E velhos sanjoaneses que assistiram a recitais de Guiomar Novaes, quando jovem. Numa noite fria de Nova York, em um apartamento da rua 47, ao lado de João Lara Mesquita ouvi embevecido os últimos acordes de Menininha Lobo ao piano.

Mas, quando eu ficar bem velhinho, e netos ou bisnetos vierem perguntar o que de mais impressionante ouvi na vida, lhes direi, sem rodeios, que foi a apresentação de Martha Argerich na Sala São Paulo, neste ano da graça de 2004. Junto, estava Nelson Freire, eu sei. E meu coração canarinho se aqueceu quando ele abriu o programa. Mas, quando Martha entrou e começou a solar, o mundo ficou mais colorido e os sons foram se reinventando.

Martha tem 63 anos. Continua bonita, mas como foi linda! Nasceu em 1941, começou a aprender piano com cinco anos, com oito deu o primeiro concerto, com 16 anos começou sua longa carreira de vitórias em concursos, vencendo o Concurso Internacional de Música de Genebra e de Busoni.

Alguns anos antes, a Argentina ficara pequena para ela. Seguiu para a Europa, onde estudou com Friedrich Gulda, Nikita Magaloff e Michelangeli. Nos anos 70, uma nova geração de pianistas brasileiros começou a se destacar na Europa. Arthur Moreira Lima, Nelson Freire, Arnaldo Cohen, Roberto Szidon, João Carlos Martins, Amaral Viera, entre outros, surgiam em quantidade e qualidade maiores que as dos próprios violonistas brasileiros. Substituíam uma geração feminina notável, que começa com Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro, prossegue com Ana Stella Schic, Iara Bernette e segue com Clara Sverner e outras. Quantas vezes, na Escola de Comunicações e Artes da USP, nos embrenhávamos em discussões intermináveis sobre quem era a maior, Guiomar ou Magda.

Mas, já naqueles anos 70, a lenda de Martha Argerich começava a povoar nossos sonhos. Correu por aqui, não sei se é verdade, mas causou muito orgulho e satisfação ao país, suposto namoro entre ela e Moreira Lima, ambos especialistas em Chopin, ambos vencedores de alguns concursos que levavam o nome do mestre.

Quando Moreira Lima lançou seu histórico LP com composições de Ernesto Nazareth, quando alguém perguntava quem era ele, a gente fazia ar de entendido e dizia: "Um pianista brasileiro que namorou Martha Argerich".

A técnica de Argerich é inacreditável. Nas peças mais difíceis, as notas saem de seu piano como se fosse um manto de seda sendo carregado pelo vento. Ganham formas que vão se modificando como se uma brisa fina as tocasse. É um zumbido diáfano, que vai encorpando nos pontos mais candentes da peça, ganhando volume, forma, intensidade, a seda virando veludo e recobrindo a sala até se dissolver no ar. Em alguns momentos, lembrei-me da Fonte Luminosa do Jardim do Pálace, de Poços de Caldas. Como é possível aquela seqüência de arpejos, quatro, cinco notas repetidas indefinidamente, a mesma uniformidade, subindo e ralentando com a mesma intensidade?

Vendo no palco Martha e Nelson, Argentina e Brasil, tocando a quatro mãos a peça final, naquela sala de acústica perfeita, acompanhada por uma orquestra de nível mundial, deu-me a sensação de que, juntos, nossos países ainda hão de vencer a maldição secular do subdesenvolvimento.

A sofrida Argentina de minhas tias e meus avós, a orgulhosa Argentina que foi derribada ano a ano, governo a governo, estava ali, de queixo empinado, com a altivez típica dos portenhos, esbanjando talento, sofisticação e altivez.



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