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La insignia
12 de julho de 2004


O fôlego, o fole, o sopro


Nei Duclós
La Insignia. Brasil, julho de 2004.


«Fala o fole da sanfona
fala a flauta pequenina
que o melhor vai vir agora
que desponta a bailarina
Que seu corpo é de senhora
que seu rosto é de menina
Quem chorava já não chora
quem cantava desafina
que a dança só termina
quando a noite for embora.»
-Sidney Miller, em O Circo-

Romance é fôlego e embocadura. Um não sobrevive sem outro, assim como não se estabilizam numa obra sem a argamassa do talento, material perecível que poderia secar ao relento por falta de uso. O talento pode parecer fonte generosa de literatura, mas sendo argamassa também dá trabalho, pois é feito de insumos básicos, esses sim fartos. Como a água, a areia e a cal - que o exagero das comparações pode sugerir sensibilidade, coragem e lucidez -, eles ganham tessitura própria se forem misturados corretamente numa criatura ao nascer, ou quando se desenvolvem nos terrenos banhados pela Graça. Ao contrário da poesia, que é ar puxado para dentro e existe mesmo em respiração curta, o romance expira o mundo que inventa e com ele divide a loteria de permanecer ou sumir do mapa. O romance sai e é trabalhado por esse fole cultivado no torno duro do exercício, ferramenta que pode desafinar se não for bem torneada, e quebrar se não estiver à altura do esforço feito pelo autor.

Por sua formação e grandeza, Tailor Diniz está no avesso desse tipo de metáfora para seu ofício. Entretanto, por opção deste texto que aborda seu romance inédito, A Vampira do Lago, ele não escapa ao destino dos romancistas: ganha fôlego ao desenhar o canal por onde sairá seu sopro, e tem o cuidado, como todo escritor de grande porte, de deixar bem azeitadas as aberturas do seu teto, a realidade por onde entra o alimento que declara a guerra. Ciente da gravidade da tarefa, ele cultiva o talento não como jardim, mas como canteiro de obras. Seu edifício é orgânico, feito da palavra certa, da descrição completa, da rede fina e eficiente tecida em fios de civilizada competência. Um trabalho tão bem acabado que dispensa o elogio da resenha e nos obriga ao abismo do ensaio.

A composição das falas em A Vampira do Lago é uma obra admirável de engenharia literária porque nos engana o tempo todo. Primeiro, porque o depoimento pessoal é a descrição objetiva, se não dos fatos, pelo menos da geografia escolhida, o norte do Rio Grande do Sul rodeado por represas e traumatizado pela expropriação das hidrelétricas. Essa objetividade serve para nos encantar por termos acesso a lugares que nunca visitamos e ficam se descortinando nos mínimos detalhes na nossa frente. Mas serve também para nos enredar na trama que se desenrola na pequena cidade de Novas Trigais e assim nos confundir na viagem para impactar no desfecho. Artimanha de escritor, poderão dizer, mas é mais do que isso. É denúncia mesmo, pois a descrição da paisagem é nossa principal fonte de equívocos. E é denúncia porque esses equívocos condenam os homens desse lugar que, apesar de viverem num território expropriado pela tecnologia, insistem em enxergar o mundo ditado pelo chão que não existe mais, pelo menos não existe da mesma forma com que foi descrita desde tempos remotos.

Em segundo lugar, a presença do narrador tradicional, que aparece em capítulos alternados ao depoimento pessoal, serve para nos colocar diante de outra armadilha: a de que estamos seguindo o entrecho com a certeza emitida pelos contadores de histórias. Essa é mais uma denúncia, pois os causos contados estão enlameados pela linguagem xucra não do tradicionalismo (pode até parecer, na maior parte dos casos), mas pela maneira com que esse tradicionalismo é trabalhado pela divisão de classes. São os poderosos que se apropriam da linguagem crioula, adonando-se assim dos festejos e dos rituais cívicos, já que esses são reiterações de poder. Mas isso é desmascarado nas bordas dessa vivência, no bordel onde se desenrola o capítulo mais impressionante - quando há orgasmo e assassinato, pederastia e sedução, gargalhada e escândalo. É ali, neste capítulo feito de fogo, espinha dorsal por onde o leitor pode montar com segurança para sentir a fúria do animal em que o romance se transforma, que Tailor Diniz alcança o perfil raro desse espécime em extinção, o grande romancista, que por algum tempo foi colocado no passado, mas que sobrevive porque essa é uma arte que a humanidade conquistou e jamais vai abrir mão.

As falas coadjuvantes, que nos ajudam a montar no cavalo colocado festivamente na Tróia da nossa percepção desatenta, são também murais do tosco mundo onde vivemos. Os textos da imprensa falada e escrita desse Brasil profundo, crivados de lugares comuns como um São Sebastião exasperado de dor, são como barcos à deriva que cruzam as décadas parecendo que vão afundar, mas que mantém-se à tona com todas as suas misérias. Por não ser um catequista nem um moralista medieval, Tailor Diniz traduz esses textos para o encanto do seu romance, que pode ser comparado a um andor em direção às águas profundas do lago, lá onde jaz enterrado nosso maior tesouro, o que perdemos para sempre nesta vida ingrata.

Quando o leitor se der conta, será tarde demais. Sucumbirá diante desse artefato de cobre que acaba de esfriar depois de uma temporada no alto forno. Ficará mudo diante do tombo preparado pelo autor, que encarna o poder aparentemente mais frágil neste pampa dominado pela barbárie, mas que se revela o mais afiado, o mais profundo, o mais eficaz e o único que tem chances de permanecer: o das criaturas que vêem com olhos livres, que sentem sem as amarras da cultura, que observam sem participar da brutalidade e que por isso sofrem o destino para onde foram carregadas. Essas Ana Terras viajadas, essas índias despertas, esses garotos sem esporas. Essas flores precárias do pampa dominado pelo esterco.

Quando desaparecerem as bandeiras, as cornetas, os tambores e toda a tralha das lições mal apreendidas da História, este romance vai continuar sendo árvore no deserto, a que promete sombra mas nos banha de luz, a que promete água mas nos deixa sedentos, a que promete morrer mas sobrevive com seus galhos torcidos, sua estrutura perfeita e sua voz, inaudível quando não há o vento da leitura ou da edição, mas poderosa no dia em que brotar da terra como um prenúncio de tempestade. Para quem tiver medo diante dessa promessa, é bom lembrar que Tailor Diniz é dono de circo, onde os palhaços atiram machados nas costas dos outros para escandalizar os inocentes, e as bailarinas dançam sobre o trapézio mortal apenas para marcar o ritmo da orquestra e do trajeto da lua no rasgo da lona. O sangue que jorra também parece ser artificial, apesar do gosto espesso, do cheiro lúgubre, e desses corpos esquecidos de bruços e degolados até o osso. Só que no meio da festa existe sempre uma ária cantada por um tenor anônimo, uma orquestra de câmara com violinos inverossímeis e um apresentador sóbrio, elegante, prudente, impiedoso e irônico, que jamais vai nos dizer o quanto sofreu ou viveu antes de estar aqui, diante de nós, comandando o espetáculo .



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