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La insignia
21 de julho de 2003


Entrevista com Zilda Kessel

Tradição e modernidade: uma só voz


Fausto Rêgo
Rits. Brasil, julho de 2003.


Durante muitas gerações, a memória social se perpetuou graças à tradição oral. Muito do que se conhece hoje da história das populações indígenas e quilombolas atravessou os anos pela voz dos mais velhos. Mas o mundo mudou. Com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, surge um novo espaço para que cada um conte, preserve e mostre sua história. E fica a pergunta: qual é, agora, o espaço da tradição oral? Este é um dos temas do Seminário Internacional Memória, Rede e Mudança Social, que o Sesc-SP e o Museu da Pessoa realizam de 12 a 14 de agosto, no Sesc Vila Mariana, para discutir como a memória e a tecnologia - em particular a Internet - podem compor um novo canal de conhecimento e comunicação.

"As novas tecnologias não decretam o fim da oralidade, mas abrem outras possibilidades para a socialização e a preservação da narrativa e uma possibilidade de garantir que essas narrativas sejam preservadas", afirma a educadora Zilda Kessel, autora da tese "A Construção da Memória na Escola" (pela Escola de Comunicação e Artes da USP) e formadora do Museu da Pessoa. Nesta entrevista, Zilda, que coordena um dos painéis do evento, "Memória na Educação", reflete sobre o que chama de convergência de maneiras diferentes de preservar a memória. Para ela, a tradição oral não desaparece na Era da Informação. Apenas muda de lugar.


Rets - Qual a sua expectativa em relação ao seminário?

Zilda Kessel - Bem, minha área específica é memória e educação, foram esses os temas da minha tese na USP. A questão da memória vem emergindo como muito importante nessa área, com a multiplicação de projetos de memória local, nas comunidades. Hoje em dia, cada vez mais as pessoas percebem a importância de terem suas próprias histórias como tema e como essa construção de vínculos é importante para a própria auto-estima. Então é muito bom ver esse assunto sendo abordado e ter a possibilidade de troca de experiências. E a gente aproveita, também, para chamar outras pessoas que estão envolvidas na memória da educação.

Rets - O seminário é uma das primeiras iniciativas sobre esse tema, não?

Zilda Kessel - É a primeira iniciativa com essas características, juntando a memória, a educação e as novas tecnologias. É um momento muito especial, reunindo pessoas que estão pensando, refletindo sobre esse tema e desenvolvendo ações nessa área. Também é um ponto de partida para articulação de ações. Nosso compromisso é, a partir desse seminário, estabelecer uma articulação em rede. Não queremos que o processo acabe quando acabar o encontro.

Rets - Um dos painéis vai abordar as tradições orais e as tecnologias digitais e terá representantes de índios, quilombolas e rappers. É curioso, porque a expressão tradição oral remete à idéia de passado, das lendas, dos contadores de histórias, mas, ao mesmo tempo, nada mais atual do que a linguagem do rap. É possível fazer um paralelo entre essas duas pontas da tradição oral? Quais são os veículos da tradição oral dos nossos dias?

Zilda Kessel - Muitas vezes as pessoas identificam a tradição oral como algo ligado ao passado. Com a invenção da imprensa, a gente passou a contar com a possibilidade de fazer o registro da informação. Atualmente, com a chegada da Era da Informação, pode-se guardar praticamente tudo. Mas o fato de ter havido essa transformação não acaba com a tradição oral. Ela não desaparece, só muda de lugar. Antigamente, o saber necessário para exercer uma determinada profissão era transmitido no cotidiano. Isso mudou radicalmente, mas existem experiências que são basicamente orais, há um espaço que permanece. Especificamente na educação, há vários estudos que mostram como a aprendizagem é uma construção narrativa. O que acho que muda são os espaços de contar e dizer - é preciso reconstruí-los. As novas tecnologias não decretam o fim da oralidade, mas abrem outras possibilidades para a socialização e a preservação da narrativa e uma possibilidade de garantir que essas narrativas sejam preservadas - e não só as que estão nos livros. Trata-se de descobrir como utilizar essas tecnologias. É o que acontece quando os grupos de rap, mesmo sem estrutura alguma, conseguem gravar e divulgar o seu trabalho. E na própria Internet, que hoje permite que todo mundo seja editor e produtor de conteúdo.

Rets - A disseminação das tecnologias digitais, hoje, abre espaço para que todo mundo conte a sua história. Os blogs talvez sejam a melhor representação disso. A Internet será o repositório da memória do nosso tempo?

Zilda Kessel - Se formos olhar historicamente, vai havendo uma convergência de maneiras diferentes de preservar a memória. A Internet é um espaço muito importante para isso, desde que possa ser compartilhada e desde que o acesso seja democratizado. Os meios se somam. A preservação de som, imagem e texto permite que essa relação seja mais rica. Vejo com bons olhos, desde que quem produz a informação possa se reconhecer no que está lá, de alguma maneira. Isso permite a criação de vínculos. As tecnologias, em si, não são boas ou más, depende daquilo que a gente consegue fazer com elas. Nós vemos aqui, por exemplo, como é importante que uma criança consiga se perceber ao ver sua história retratada.

Rets - E o que o Museu da Pessoa tem procurado é abrir espaço para que as pessoas comuns contem a sua história, certo?

Zilda Kessel - Exatamente. É usar a tecnologia, dar voz e preservar a experiência de pessoas comuns. A História é uma construção de narrativas, feita de vários pontos de vista. Quanto mais pessoas tiverem sua experiência preservada, mais se garante a preservação da memória. No caso do Museu da Pessoa, a expectativa é que muitos possam falar para muitos. A Internet pode ser um espaço útil, desde que a gente faça uso conseqüente dela.

Rets - De que forma se inserem essas tecnologias na educação, hoje, já que é a escola que transmite a História oficial. Aliás, pode-se falar em História oficial quando as tecnologias abrem espaço para múltiplas versões?

Zilda Kessel - A tecnologia, em si, não garante nem inclusão, nem ensino democrático ou escola para todos. Pode, sim, contribuir, dependendo de como for usada. Se for apenas para transmitir informação, dizer que pelo fato de estar ali é verdade, então não está garantindo mudança. No nosso projeto, a gente oferece às crianças acesso à Internet, elas podem ver o que está ali e como a informação é construída. Isso garante mudança. Há projetos em que as crianças trocam informações com crianças de outras comunidades, e isso garante a visão de uma história rica. A gente tem percebido como é transformador propiciar o acesso a essas tecnologias, mas dentro de projetos conseqüentes. Só distribuir máquinas não adianta nada.

Rets - O professor Nelson Pretto, da Universidade Federal da Bahia, ao abordar o uso das tecnologias digitais na educação, lamenta a negação do aspecto lúdico dessas tecnologias por muitos educadores. A senhora concorda? A escola está acompanhando essa transformação?

Zilda Kessel - Seria leviano de minha parte dizer que conheço o que ocorre na escola, em geral. Mas conheço algumas práticas. Mais do que ensinar o uso de um programa ou outro, nosso papel é permitir que as pessoas se apropriem das tecnologias. O jogo e a música seriam interessantes, dependendo do contexto do uso. Acho que o aspecto lúdico tem possibilidades interessantes, mas afirmar qualquer coisa seria como repetir o antigo discurso de que ler gibi é ruim. Depende do uso!

Nosso grande desafio como educadores é encontrar maneiras - do ponto de vista pedagógico - de incorporar todas essas utilizações. A questão é descobrir como transmitir isso de forma a construir uma reflexão. É o que a gente procura fazer no Museu da Pessoa.

Rets - Vocês estarão lançando o novo Portal Instituto Museu da Pessoa durante o seminário, certo?

Zilda Kessel - O portal vai ser lançado logo no primeiro dia do seminário. O Museu da Pessoa nasceu há onze anos, com a perspectiva do uso da tecnologia para a coleta e a socialização dessas histórias, e foi se modificando com a mudança no uso das próprias tecnologias ao longo dos anos. O portal atualiza o objetivo do Museu da Pessoa: poder ter um fórum, imagens, sons, tudo articulado. Ele potencializa um objetivo, vem com uma porção de potencialidades e ferramentas. É um esforço de uso da tecnologia para a democratização.



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