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16 de fevereiro de 2002 |
Urariano Mota
A primeira boceta que eu vi foi o meu primeiro alumbramento. Digo vi, mas corrijo, entrevi. E isso foi melhor que se a tivesse visto despudoradamente descoberta, apresentada, como um prato do dia posto à mesa: "sirva-se, esta é a boceta".
(Passo a escrever miudinho, para que não me vejam.) Eu tinha catorze anos. Eu era casto de atos, mas possuía a imaginação e o pensamento repletos de tudo quanto me pintavam, reprimiam, e que eu desejava que viesse a ser o sexo. Quanta fome e ardor eu sentia. Eu disse formigamento, e formigamento é uma imagem própria. A glande me coçava como se transitassem nela miríades de formiguinhas. As formiguinhas depois se espaçavam, porque se dilatou a cabeça onde elas se esbarravam. Em trilha para o açúcar rumavam. Não é isto. Isto está parecendo tradução de processo fisiológico. Primeiro: o que é que eu quero dizer e não disse? - O que eu não disse é que até hoje o meu pensamento registra a presença de Matilde. Matilde era minha vizinha. Ela devia ter quinze anos. Carregarei até o fim dos meus dias a covardia de não tê-la fodido. Lembro que veio certo dia à minha casa pintar as unhas. Minha mãe havia saído. Há meses eu já lhe fazia a corte. Brincava de ser o seu namorado, agarrava-a, beijava-a. Ela recuava, debilmente. Então eu passei a me fazer de vampiro, para me roçar em seu pescoço. Agarrava-a de preferência por trás, quando ela se penteava. Da quase mordida eu ia ao beijo. Ela não respondia a meus carinhos, como hoje tenho a certeza de que gostaria, porque ela se deixava, não os interditava. "Você vai ser carinhoso com a sua namorada", um dia ela me disse. Então eu a beijava, no dorso, nos braços, no queixo, na face. Ela sorria, com os olhos umedecidos, e se imobilizava, como se estivesse hipnotizada. Seus olhos em êxtase, marejados, indicavam já que a sua vulva estava úmida, hoje eu compreendo. Na época eu apenas pressentia que ela me aceitava, e se deixava para eu fazer dela o que desejasse. Pelas costas passei então a abraçá-la, para que minhas mãos lhe deslizassem nos seios, a partir dos ombros. Os biquinhos dos seios ficavam intumescidos. Alisava-a nas coxas. E quanto mais ela se abria, expondo o seu limite de interdição, e clamando em sua região-limite, mais ela se abandonava. Doce, entreaberta, viscosa e visguenta. As nossas peles se grudavam. Nesse dia em que Matilde foi à minha casa, a pretexto de encontrar a minha mãe, certamente ela já sabia que minha mãe não estava. Antes que eu me preparasse para mais uma vez abraçá-la num assalto, ela se dirigiu ao quintal e, sentada num batente, pôs-se a pintar as unhas dos pés. Não lembro, vejo. Matilde dobrou um joelho, levou-o à altura dos seios, e nele apoiou o seu queixo. O outro joelho desceu lento, a saia abrindo-se como cortina. Eu ia me aproximar, mas a meio caminho deixei meu corpo cair sentado numa cadeira da sala. Matilde se achava a uns três metros à minha frente. O que mais me punçava era o saber que ela, enquanto lixava as unhas, me via. As mocinhas não usavam então calcinhas apertadas. Então eu vi. Entrevi. Ardor, eu bem queria o teu tormento com a serenidade que hoje me envolve. Entrevi: a boceta de Matilde desvendou-se peluda, fresca, afirmativa, em pêlos, que desciam no espaço livre de sua coxa. Pêlos castanhos, lindos. Um convite, um gentil convite, um chamamento, uma ordem à ruptura. Por que não acalmei os seus tufos rebeldes, acalmando-me também na sua calma? Por que não fodi Matilde, não a fodi como era necessário e imperioso, a mim, a meus desejos, e a ela, e à sua vontade? Rapazinho medroso, sensato, sensato como os medrosos, eu só via a ruptura como uma queda no abismo. Eu não via na ruptura o assalto e posse do destino com as minhas mãos. Mas ela possuiu lá a sua culpa. Por que não me convidou para ajudá-la, tocá-la, enquanto pintava as unhas? Eu sei. É que no seu convite residia também a esquiva da ruptura. Mostrou só o abismo, tão inocente, que infernalmente me chamava: "Lança-te daqui abaixo. Dou-te o poder de tudo isto, e a glória, porque isto me foi dado, e eu dou-o a quem eu desejar. Lança-te daqui abaixo. Vem, converte estes pêlos em alimento. São queimados e estorricados como nunca mais os verás. Lança-te". E abria, generosamente, o convite. A mim e a nenhum homem, a nenhum filho de Deus foi dado o poder de passar por um momento e saber que este momento que não se desfruta, está perdido. No ato do instante adiamos o seu gozo, como se eternamente desfrutável. Como era bom se pudesse voltar o beijo que não demos. O carinho que represamos. A ternura guardada se a pudéssemos hoje liberar, como era bom. "O sal é bom. Porém se o sal perder a força, com que se há de temperar?" . O sal é bom, e eu estava sendo sincero. Não sei, nem quero disto me lembrar, se na praça do mercado público eu me ajoelhei. Sei que disse a Elma, eu sou louco porque reencontrei a mulher que amei durante sessenta anos. Ela me respondeu: - Mas eu não te amo. Isso foi coisa ... - O quê? - Isso foi coisa da infância, ela me disse, cordialmente. E com mais cordialidade em sua arma de ferir: - Isso foi há muito tempo, Inocêncio. Passou. Eu já não te amo. Eu fiquei definitivamente louco: - O que você sabe da arte de amar, menina? - Menina.... Nós somos dois velhos, Inocêncio. Fiquei sem pensar, e lhe disse: - Você quer que eu arrase esta praça de abacaxis? Hem? Onde você já viu um homem velho com esta força? Eu quis pegá-la e levantá-la em meus braços como na infância. Quis. O querer é livre, mas o poder é determinado. Seja porque quando meninos o meu intuito era mais tangenciá-la em mim, subindo e descendo, ela, Elma, em meus braços, seja porque a senhora Elma engordou, e meu intuito no mercado era mais simplesmente deixá-la suspensa, como um troféu, seja porque eu não me dei antes umas flexões relaxantes, nos músculos e nos ossos, o certo é que não fui além de um impulso. Acho até que o impulso foi uma impressão interna. Para os demais devo ter posto as mãos na cintura de Elma e soltado uns gemidos. Ela dilatou os olhos, numa expressão conhecida, de cuidados de enfermeira: - Está vendo, Inocêncio? Você não está bem. Esqueça essa bobagem. Está vendo? Pra quê tanto esforço, não é? Senti no ar uma palmadinha. Eu sou mais alto, mas senti. Num reflexo, encolhi os ombros. Elma prosseguiu, sempre carinhosa, administrando gotas e palmadinhas : - É claro que você ainda não está velho, velhão. É um homem robusto, saudável. Mas não é mais nenhum menino, não é mesmo? Na sua idade o homem tem que ser realista. O que passou, passou. Vamos, deixe de esquisitice. Eu não era mais um homem. Eu me sentia um macaquinho amestrado. Nas suas palavras eu via o império da imperatriz, que ordenava: "Macaquinho, faço de você o que eu quiser". Tão gracioso e dócil a sua intenção me deixava. - Elma, o meu nome não é chico. - Eu sei que você é Inocêncio. - Eu quero dizer que nem sou macaco nem tenho nome de mico de circo. Você está me entendendo? - Você está no seu juízo, Inocêncio? - Perfeito. Perfeitamente. Ou você não entendeu ou eu não fui claro. Eu lhe disse que você foi e é o amor de minha vida. Faça disso o que quiser. Mas você não tem o direito de passar açúcar em minha boca: "Inocêncio, você é bonito ... Inocêncio você é forte, é uma gracinha ...". Isto eu não admito. Elma ficou a me olhar detidamente, de alto a baixo, no que me pareceu um exame detalhado de minha pessoa para me achar um rabo de macaco. Eu quase levanto o pesado pé, para não machucar o próprio rabo. - Eu mereço, ela me disse. Você é doido. E antipático. (Um nó se fez em minha garganta.) Como é que você me tira dos meus afazeres para vir me agredir? (Ela, a agredida!) Eu não tenho nada a ver com paixão recolhida de quem quer que seja. E eu, por acaso, tenho culpa de você ser doido? Hem? Se ela me dissesse naquele instante, Inocêncio, vá arranjar uma lavagem de roupa, eu seria mais feliz. Fiquei indeciso entre o mais desvalido choro e a raiva. Ah um beijo em sua face para lhe demonstrar o quão ternamente eu a queria! Esses atos, que não faço, me deixam mudo. Que palavras podem ser mais eloqüentes que uma ação? Elma continuava, em sua catilinária de baixo meretrício: - Se você não é Chico, eu também não me chamo de Tamarineira. Lugar de doido é na Tamarineira. Eu sou uma viúva, muito bem quieta no meu canto. E você ... você eu nem conheço. Eu nem sabia mais se você ainda existia. Vi você uma vez quando eu era menina. Não sei onde você mora, se trabalha ... - Elma, eu sou graduado em Matemática. Universidade Federal de Pernambuco. - E daí? De quê é que você vive? - Saiba a senhora que eu me aposentei ensinando matemática. Por incrível que pareça, vivo disso. - Antes vendesse charque no mercado. Tinha mais proveito. A nossa história, triste história, terminaria aqui. Havia um quê de verdade em sua bruta ignorância. Mas um chorinho, como um deus ex machina, começou a tocar no rádio do boxe do caldo-de-cana. Era meio-dia. Um choro, Pedacinho do Céu, encheu o ar e as nuvens de toda a Massangana. Isto me fez subir da humilhação, me fez descer da raiva. Me amoleceu extraordinariamente. Desciam pela rua os artistas que cantavam e tocavam no Centro Educativo Operário. Mais longe, havia um menino que desenhava a carvão na calçada. O traço todo da vida. O sol deixava as calçadas varridas retinindo nos olhos. O mesmo cheiro de terra depois da chuva, o conhecido cheiro da terra. Deus era pai e tinha as barbas brancas de nuvens nas nuvens. Deus tinha cabeça grande, um corpo de carneirinhos desfeitos no azul, esgarçados. As nuvens às vezes faziam pontos escuros, de olheiras, nos olhos de Deus luminosos com rugas. O céu era azul como agora, no céu que toca no rádio do boxe do caldo-de-cana. Elma está de organdi, tecido diáfano. Apesar de criança, pôs batom nos lábios. Então seus lábios não se moviam rumo a um pedido de silêncio, de enfermeira num corredor de hospício. Esses lábios de batom na infância me fortaleceram para o que eu lhe disse antes que o instante mágico do choro no rádio terminasse. Em razão do que lhe disse, tocando-a no braço, com o toque grato e terno da velha intimidade, antes que pedacinho do céu nos escapasse: - Elma, você continua tão bela quanto naqueles anos. Ela parou, e explodiu: - É assim que você reage?! - Elma, estudar matemática, para mim, foi o mais simples. Eu não sabia fazer outro desastre na vida. Ela virou o rosto para a avenida, e sem me olhar, exclamou: - Como fui grosseira! Depois voltou-se para mim: - Você me ajuda a carregar as frutas? O sol ardeu nos meus pés. Só então pude me assegurar que os olhos de Elma eram verdes como na infância. (*) Da novela "Japaranduba, 49" |
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