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3 de fevereiro de 2002 |
A Globo e o Rei Bufão Mário Maestri, Porto
Dom João VI gostava tanto de coxinhas de galinha que, após fartar-se com elas, guardava as que sobravam nos bolsos. A seguir, limpava as mãos gordurosas nas roupas. Era pouco amigo da limpeza corporal. Seu médico receitou-lhe banhos de mar, constrangido em mandá-lo tomar banhos gerais contra as micoses que agoniavam a real pessoa.
Há pouco interesse científico na elucidação do fundo de verdade dessas lendas históricas. É porém motivo de estudo o fato de que constituam talvez as mais difundidas e populares memórias do povo brasileiro, ao lado de lembranças sobre Tiradentes, sobre a Independência e sobre a abolição da escravatura. Não foi aleatória a escolha da chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, pela Rede Globo, para tema da mini-novela "O Quinto dos Infernos", estreada no dia 8 de dezembro. Nem deve surpreender que ela esteja tendo maior sucesso do que outras produções do gênero. Em 1995, a cineasta brasileira Carla Camurati alcançou grande sucesso entre o público brasileiro, em geral arisco ao cinema nacional, com a longa-metragem "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil". O filme repete, um por um, os lugares comuns sobre a fuga de Lisboa, a chegada ao Rio de Janeiro, os primeiros anos da Família Real no Brasil. Glutão simpático Na longa-metragem, dom João é um glutão simpático e indeciso e sua esposa, Carlota Joaquina, uma ninfomaníaca desbragada. Da avacalhação geral escapa, logicamente, dom Pedro, símbolo da nova nação, já que ser mulherengo, no Brasil, é quase um elogio. Palco de ordem escravista desapiedada retratada por fotógrafos insuspeitos como Rugendas e Debret, o Rio de Janeiro e sua sociedade, cenário e personagem coletivo da obra de Camurati, são apresentados como paraíso colorido onde, entre bananas e abacaxis, brancos e negros dedicam-se a cômicas peripécias e, logicamente, a aventuras, sexo e amor, como é próprio ao país tropical, abençoado por deus, que o Brasil pretende ser. Consolidação plástica do que há de mais trivial na leitura do passado brasileiro, o filme de Camurati é apresentado, diariamente, em centenas de sala de aulas de escolas e universidades como dessacralização da historiografia patrioteira por professores em geral interessados em suas disciplinas e alunos. São complexas as razões da quase amnésia popular sobre o passado brasileiro pré-Republicano. Durante três séculos, as capitanias luso-americanas viveram de costas uma para as outras, voltadas para Portugal - centro do poder e escala necessária do import-export colonial -, e para a África, fonte inesgotável do trabalhador consumido sem parcimônia. Colônias luso-americanas Nesse longo período, particularizado geograficamente, o Brasil era pouco mais do que uma abstração. Até a Independência, em 1822, o nativismo luso-americano foi sempre regional. Lutou-se e sonhou-se com a independência de Minas Gerais, de Pernambuco, da Bahia e jamais de um Brasil que pertencia ainda ao futuro. Era ainda mais radical a atomização social. Os nativos americanos e, sobretudo, as multidões de trabalhadores escravizados africanos e afro-descendentes eram mantidos à margem da comunidade civil de então. Uma situação que prosseguiu até a Abolição da escravatura, em 1888. O Brasil foi a última nação moderna a praticar a escravidão colonial. Nem mesmo a língua era elemento coesionador desse puzzle luso-americano. Mesmo após a autonomia política, o português, língua das elites, sofria a forte concorrência de línguas, línguas francas e koinés de origens nativas e africanas, de largo uso entre as classes subalternizadas. Em inícios de março de 1808, sem aviso prévio, mais de dez mil portugueses desembarcam no Rio de Janeiro, então atrasado burgo colonial de uns sessenta mil habitantes. Qualquer coisa como se 200 mil brasileiros chegassem, em uma semana, para se aboletarem nas melhores residências de Lisboa. As elites se mudam De certo modo, a fuga da Família Real, acompanhada do segmento superior do aparato estatal lusitano, temerosos da invasão francesa, do liberalismo português e da independência da colônia americana constituiu a primeira grande experiência nacional, o ponta-pé de partida do Brasil unitário. Fenômeno de impacto histórico único, o interregno tropical da Coroa lusitana deixou profundos registros na memória da população da cidade, da região e de todo o país. No Rio de Janeiro, sem gritos, a não ser os sussurros dos milhares de cariocas defenestrados de suas casas, a Coroa lusitana pôs fim ao regime colonial, decretando a liberdade comercial exigida pela Inglaterra. Promovidas logo a províncias, as capitanias brasileiras passaram a ter uma administração nacional, para o bem e para o mal, muito próxima e atuante. Fundou-se um Banco do Brasil. Uma casa da Moeda. A Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios. Criou-se uma Academia Militar. Franqueou-se ao público a rica Biblioteca Real, com sessenta mil volumes, que ainda continua no Rio de Janeiro, rico núcleo central da Biblioteca Nacional brasileira. O Rio de Janeiro moderniza-se Foram criados arsenais, fábricas, tribunais superiores de Justiça e Finança. Um Jardim Botânico. Uma Impressão Régia. Mandou-se vir importante Missão Artística Francesa, para dar um lustro cultural à atrasada cidade elevada à situação de mui digna sede do império lusitano. Abriu-se o país aos estrangeiros e promoveu-se a imigração de colonos suíços e alemães, sobretudo, na primeira grande democratização da posse da terra, até então monoliticamente latifundiária. Com ações militares, ampliou-se a ocupação dos sertões, em detrimento das comunidades nativas e iniciou-se política imperialista, sobretudo em direção ao Prata. A transferência da Família Real ao Rio de Janeiro não constitiui arranjo transitório, até os franceses debandarem Portugal. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o príncipe regente teria dito ao representante inglês que considerava "muito pouco provável" seu retorno a Lisboa. Compreensível decisão, vista a sorte que coubera aos reais parentes franceses e o valor das rendas brasileiras. Apenas treze anos mais tarde, triste e relutante, dom João abandonaria o Rio de Janeiro, em 24-6 de abril de 1821, pressionado pelo movimento constitucionalista português e escorraçado pelo filho, apressado em abocanhar a parte mais rica de sua legítima. Trocava assustado a já acolhedora Rio de Janeiro - agora com 110 mil habitantes! - por um país turbado pelas dissidências figadais. Rompimento de relações O fato de ter limpado os cofres brasileiros - 200 milhões de cruzados! - e determinado que o Banco do Brasil trocasse os papéis de seus quatro mil acompanhantes por ouro sonante, assim como a guerra contra seus sujeitos rebeldes e a grossa soma que se fez pagar para reconhecer a Independência - 600 mil libras esterlinas! - estremeceram para sempre as relações do monarca com os ex-súditos americanos. Após 1822, tomadas de lusofobia, opostas ao envolvimento de dom Pedro nas questões nacionais lusitanas, as elites senhoriais brasileiras dedicaram-se à compreensível execração de tudo que cheirasse ex-Metrópole, chegando ao extremo de propor nominar de brasileiro o português falado no grande império. Talvez esse estado de espírito se tenha incorporado à memória das elites sobre o ex-monarca, já que seu filho e herdeiro, também português, era o herói brasileiro de então. É também compreensível que, na época, dominada pelas visões providencialistas da história, se vissem as vacilações do absolutismo no Brasil como resultado da pusilanimidade política de dom João, e não como produtos de um giro inexorável da roda da história que a Revolução do Porto teve a ilusão de corrigir. O defenestramento do príncipe português, em 1831, pelos grandes proprietários escravistas, cortou, fundo, os últimos laços entre o Brasil e Portugal - corte que ainda não cicatrizou completamente. A Regência que seguiu a Abdicação foi momento de descentralização e autonomia relativas das províncias, pouco contribuindo ao unitarismo brasileiros. Centralização escravista A centralização conservadora executada, a partir de 1840, com a entronização de Pedro II e o advento do Segundo Reinado, nasceu da convergência dos grandes interesses escravistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Bahia, e não de uma superação da autonomia econômico-social das províncias. A profunda singularidade das regiões e uma organização social que mantinha inconclusa a construção da nacionalidade, ao manter de fato e constitucionalmente o trabalhador escravizado à margem da cidadania, impediam experiências que consubstanciassem uma memória histórica nacional. A Abolição da escravatura, em 1888, pôs fim à centralização imperial, nascida da defesa da ordem negreira. A seguir, em 1889, impôs-se uma ordem republicana que primou pela autonomia federalista dos Estados e pelo profundo caráter elitista e oligárquico. Apenas com a Revolução de 1930, e o forte impulso da indústria e do mercado nacionais, em torno de Rio de Janeiro-São Paulo, o Brasil assumiu conteúdo crescentemente unitarista, conhecendo então fenômenos políticos e culturais nacionais capazes de produzirem fatos e personagens que se materializassem na memória da população O nascimento do Brasil A nova situação produziu protagonistas como Luís Carlos Prestes, Getúlio Vargas, João Goulart, etc. que materializam, a ferro e fogo, na memória popular, experiências históricas de cunho profundamente nacional. Na ereção do seu panteão privado, o Estado republicano alçou à dignidade de figura excelente do passado colonial Joaquim José da Silva Xavier, o "tira-dentes", bode expiatório da conspiração senhorial pela independência republicana das Minas Gerais, executado em 1792, nos primeiros momentos da regência de dom João. Fincava-se assim mais um cravo na cruz da memória lusitana no Brasil. Mitigadas nas últimas décadas, as diversidades regionais não são mais o grande empecilho à formação de uma consciência histórica nacional baseada na reflexão sobre as origem e um destino comum. As diversas origens da população brasileira não alcançam a fundir-se devido a um contexto que nega nos fatos a construção de um destino comum para a nacionalidade. No Brasil atual, no contexto de população escolarizada apenas formalmente, a reflexão sobre o passado nacional é exercício em processo de marginalização crescente. Fora algumas excepções regionais, no Brasil de hoje, a gestão do presente pouco depende da administração do passado. Sem passado e futuro Em todos os níveis, a população brasileira convive com um conhecimento angustiosamente lacunar e assistemático do passado. Num sinistro processo de reificação, a consciência da população tende cada vez mais a ignorar a existência de um passado e de um futuro, como fenômenos relacionados, para viver mergulhada num nebuloso e ininteligível presente. A mini-novela "O Quinto dos Infernos" trabalha sobre esse pano de fundo. Uma memória histórica da população trivializada e uma forte incapacidade nacional de concatenar de forma mais complexa e coerente os fatos passados, conhecidos quanto muito como anedotas folclóricas isoladas. Que os descendentes do último imperador brasileiro protestem contra a interpretação dos fatos históricos apenas apoiará o marketing global. Para multidões de brasileiros será uma surpresa que haja no país família que reclame o direito a um trono que ignoram - ou quase - que tenha existido no passado. Além da Guerra contra o Paraguai, num desses tantos paradoxos da história, a única memória realmente sólida do Império é a da princesa Isabel, que terminou levando a fama de emancipadora dos cativos, após seu pai e avô terem assentado, por 66 anos, seus reinos sobre as costas largas e suadas do negro escravizado. Monarquia escravista Ao contrário de Portugal, no Brasil, monarquia não rima com nenhum momento histórico do qual a população tenha agradáveis lembranças ou gratas ilusões. Não perguntem ao brasileiro comum o nome do pretendente ao trono brasileiro. Em verdade, não façam a pergunta nem mesmo a um historiador profissional. A resposta não será sabida devido à ignorância dos primeiros e ao desinteresse dos segundos num desdobramento familiar da história política passada que, na Itália ou em Portugal, conquista a atenção de um considerável público, geralmente informado sobre essas realezas de faz-de-conta pelas revistas de frivolidade. No Brasil, por vontade popular, somente os reis momos têm direito ao trono, e isso apenas por alguns dias, enquanto todos podem ser príncipes e duquesas, pierrots e arlequins no império da fantasia do asfalto! Brasil e Portugal A trivialização, folclorização e descontextualização da história deixam inevitavelmente graves seqüelas. Em forma geral, aprofundam a incapacidade de refletir sobre o devir social e os nexos necessários entre passado, presente e futuro. Contribuem para a produção de cidadania que vive em um presente opaco de raízes e razões fantasmagóricas. No caso particular, certamente aprofundarão ainda mais a já grande ignorância brasileira do que foi e do que é a sociedade portuguesa, do muito que une e do não pouco que separa essas duas nações unidas, inexoravelmente, nem que seja pelo uso e abuso de uma mesma língua. Ao apresentar as trapalhadas do rei português bonachão nas telinhas brasileiras, mais uma vez, a Rede Globo estará apenas saciando sua fome pantofágica para, após, limpar, como sempre, as mãos gordurosas na rarefeita e mal-remendada memória histórica brasileira. (*) Mário Maestri, 53, é doutorado em História pela UCL, Béelgica, e professor do programa de Pós-Graduação em História da UPF, Brasil. E-mail: maestri@via-rs.net |
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