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20 de junho de 2001 |
Da solidariedade à participação
Carta de Albert Camus a Roland Barthes
Caro Senhor,
Por sedutor que me pareça, não posso compartilhar do seu ponto de vista sobre A Peste. Claro está que todo comentário é legítimo na crítica de boa fé; ao mesmo tempo, aventurar-se tão longe quanto o senhor faz é tão permissível quanto relevante. Mas parece-me que em qualquer obra há evidências que o autor tem o direito de mencionar a fim de ao menos indicar os limites em que pode se desdobrar o comentário. Afirmar, por exemplo, que A Peste funda uma moral anti-histórica e uma política da solidão implica, penso eu, cair em contradições e sobretudo deixar de lado certas evidências; resumo aqui as principais: 1º A Peste, que gostaria que fosse lida de várias perspectivas, tem por conteúdo evidente a luta da resistência européia contra o nazismo. A prova disso está no fato de que, sem que o inimigo seja nomeado, todo mundo soube reconhecê-lo, e em todos os países da Europa. Acrescentemos que um longo trecho d'A Peste foi publicado sob a Ocupação num volume de combate e que essa circunstância bastaria por si só para justificar a transposição que adotei. Em certo sentido, A Peste é mais do que uma crônica da resistência; em todo caso, não é menos que isso. 2º Comparada a O Estrangeiro, A Peste marca, sem discussão possível, a passagem de uma atitude de revolta solitária ao reconhecimento de uma comunidade de cujas lutas é imperativo tomar parte. Se há evolução do Estrangeiro à Peste, ela se deu no sentido da solidariedade e da participação. 3º O tema da separação (cuja importância no livro o senhor percebeu muito bem) é esclarecedor quanto a este ponto. Rambert, que incarna o tema, renuncia justamente à vida privada para se juntar ao combate coletivo. Entre parênteses: este personagem bastaria para mostrar o que pode haver de factício na oposição entre o amigo e o militante. Pois uma virtude é comum aos dois: a fraternidade ativa, que afinal de contas nenhuma história jamais pode dispensar. 4º Além disso, A Peste termina com o anúncio e a aceitação das lutas vindouras. Ela é um testemunho "do que houve que fazer e que sem dúvida [os homens" deveriam ainda fazer contra o terror e sua arma incansável, a despeito de seus conflitos pessoais...". Eu poderia estender ainda mais meu ponto de vista. Mas se me parece bem possível considerar insuficiente a moral em ação n'A Peste (seria então o caso de dizer em nome de qual moral mais completa) ou igualmente legítimo criticar sua estética (muitas das suas observações esclarecem-se pelo fato de eu não acreditar no realismo em arte), parece-me ao contrário bastante difícil afirmar, como faz o senhor à guisa de conclusão, que o autor recusa a solidariedade com a nossa história presente. Difícil e, permita-me dizê-lo com amizade, um pouco entristecedor. Seja como for, a questão que o senhor propõe ("Que fariam os combatentes d'A Peste frente à feição demasiado humana do flagelo?") é injusta, uma vez que deveria ser formulada no passado, ocasião em que recebeu resposta - positiva. O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições - pois o terror tem várias -, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos. É sem dúvida isso mesmo que me reprovam: que A Peste possa servir a qualquer resistência contra qualquer tirania. Mas não há como reprovar-me, não há sobretudo como acusar-me de recusar a história, se não sob condição de declarar que a única maneira de entrar na história está na legitimação de uma tirania. Sei que não é esse o seu caso; quanto a mim, levo minha perversidade ao ponto de pensar que resignar-se a uma tal idéia significa na realidade aceitar a solidão humana. E longe de me sentir preso a um carreira de solidão, tenho ao contrário a sensação de viver para e por uma comunidade que até agora nada na história foi capaz de minar. É isto, muito sucintamente, o que desejava dizer-lhe. Para concluir, gostaria tão-somente de assegurar-lhe que esta discussão amistosa não diminui em nada a estima que tenho por seu talento e por sua pessoa. |
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