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La insignia
17 de abril de 2001


Castro Alves e a escravidão


Sidnei Schneider*
Fenestra. Brasil, abril de 2001.


Dizeis, senhores, à lava,
Que não rompa do vulcão.


Nos últimos anos surgiu mais uma tese para tentar desqualificar Castro Alves como poeta. O professor Flávio Kothe teve seu artigo publicado nos principais jornalões, mas agora reclama falta de espaço na mídia, talvez para evitar qualquer sugestão de envolvimento das suas idéias com as que patrocinaram a entrega do nosso patrimônio. Pelo simples fato de ter traduzido Karl Marx, sente-se capaz de usar o seu arsenal teórico, porém gera desastre sobre desastre e, na prática, auxilia os interesses dos que querem sufocar a auto-estima dos brasileiros para melhor apossar-se do país.

A principal dificuldade do professor é com os fatos, a história e a literatura; coisa pouca. O Navio Negreiro, segundo ele, seria um mero subproduto de Heirich Heine (1797-1856), combativo poeta alemão autor de Navio de Escravos. Enquanto Heine denunciava a acumulação capitalista a partir da transformação do ser humano em mercadoria, o nosso insigne poeta, segundo esse tipo de raciocínio, lutava apenas contra a escravidão.

Ora, se Heine vivia na Europa colonialista, e enfrentou dignamente os tubarões de seu tempo, Castro Alves viveu num país colonizado direta ou indiretamente por tais magnatas e dedicou a sua existência para romper com o atraso que, naquela época, mais nos deixava sujeitos à dominação forânea. O que impedia o nosso desenvolvimento não era uma pujante economia industrial e capitalista, mas exatamente a ausência dela, a infame utilização de seres humanos para o trabalho escravo, base de uma economia de baixíssima produtividade. Se Castro Alves e os brasileiros de então tivessem deixado de lado a luta pela abolição e se dedicado a lutar contra um capitalismo em geral, o que a rigor o Brasil ainda não havia experimentado, estariam fugindo da realidade, e estaríamos hoje, provavelmente, menos desenvolvidos e, portanto, ainda mais submetidos à ganância internacional.

Os ingleses, após enriquecerem com o tráfico de escravos, o ouro brasileiro e demais riquezas produzidas pelo trabalho escravo, passaram, no último minuto da história, quando nada mais restava a fazer, a defender o seu fim.

Sustentar a luta contra a dominação inglesa, seguramente, não seria se postar a favor da escravidão só para contrariá-los. Na verdade, a luta dos brasileiros - desde Zumbi, passando por Castro Alves, até José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Luís Gama - é que gerava contrariedades nos ingleses. Livrar-se da escravidão era a forma concreta de lutar contra aquela dominação, tanto que, sem o regime escravocrata, o Império, que não era exatamente um bastião de defesa dos interesses nacionais, deixou de fazer sentido, e veio a República, coroada pela Revolução de 30, que, finalmente, nos livrou do imperialismo inglês e industrializou o país.

Quanto à acusação de plágio, o próprio raciocínio que argumenta a diferença entre os poemas a invalida. São obras distintas, tendo em comum, apenas, a dança dos escravos sobre o tombadilho, o que já havia anotado a crítica especializada.

Há quem argumente, contudo, que Castro Alves denunciou o tráfico de escravos quando ele já não existia, que expressava os interesses das classes dominantes, que representava o cânone imperial, que no fundo não era tão anti-escravagista assim, etc, etc. Basta dizer que O Navio Negreiro, para além da denúncia de todo o tráfico, foi escrito quando o tráfico regional se acentuou como nunca, por volta de 1865.

As famílias de escravos eram divididas; os indivíduos, brasileiros natos, eram apartados do seu meio e vendidos para os cafeicultores do sul, à beira do colapso por falta de mão-de-obra, numa reedição ainda mais violenta e desumana do que já ocorrera no comércio transatlântico, porque objetivava, também, quebrar a espinha da resistência negra à escravidão. As classes dominantes estavam mais dominantes do que nunca, o Império as expressava: quando a sublevação de negros em Salvador e por toda Bahia atingiu um auge, com fugas de escravos, violência e assassinatos de revoltosos, Castro Alves produziu Saudação a Palmares.

Sem levar em conta a História, é verdade, fica difícil perceber o que há de majestoso, irônico e ameaçatório às forças escravocratas no verso "Salve!... País do bandido!" ou visualizar um líder negro no alto de uma rocha-montanha a insuflar à luta uma multidão de escravos fugitivos nos versos finais de "Palmares! a ti meu grito!/ A ti, barca de granito,/ Que no soçobro infinito/ Abriste a vela ao trovão./ E provocaste a rajada,/ Solta a flâmula agitada/ Aos uivos da marujada/ Nas ondas da escravidão!". No meio da crise, quando os ânimos escravocratas estavam exaltados, o poeta passa a considerar, pioneiramente, os quilombos como o vetor histórico do abolicionismo. Uma quantidade de poemas como este mostram que ele via na luta dos próprios escravos o motor e a vanguarda principal da libertação.

Se "deu voz aos que não tinham voz", como escreveu um crítico, é na luta destes que depositou suas esperanças. "Era um bronze de Aquiles furioso/ Concentrando no punho a tempestade", o líder negro de Sangue de Africano. Sua poesia não escamoteava a contradição básica da sociedade da época, aquela que opunha senhores de escravos e escravos. Ao contrário, seus versos foram produzidos e declamados no fragor da batalha.

Quanto à forma, numa época sem microfone e amplificador, o poema já era produzido tendo em vista a declamação para um grande número de pessoas em praças e auditórios, embora, por incrível que pareça, exista quem queira diminuir sua obra em função dessa qualidade. Épico por excelência, não foi menor na lírica, como dá mostras Adormecida.

Não por acaso, aquele que aos dezesseis anos já havia escrito A Canção do Africano, é o nosso poeta mais popular.

Leitura recomendada: Além da obra do poeta, sempre importante, ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, encontrável em sebos, e A segunda morte de Castro Alves, genealogia de um revisionismo, do professor Mário Maestri, edição da Universidade de Passo Fundo.


* Sidnei Schneider é autor de Plano de Navegação (poesia) e Versos Singelos - José Martí (tradução).



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